Inteligência

Especialista alerta para riscos nos usos de programas de espionagem no Brasil

Em entrevista ao Brasil de Fato, diretor da Data Privacy Brasil Rafael Zanatta alerta para problema 'sistêmico' do país

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Sede da Abin, em Brasília
Sede da Abin, em Brasília - Antônio Cruz/Agência Brasil

Revelado em 2023, o escândalo do uso pela Abin do software de espionagem First Mile para rastrear aparelhos celulares de forma indiscriminada durante o governo de Jair Bolsonaro expôs os riscos de um mercado de programas espiões utilizados por governos, seja o federal, seja dos estados. Mais ainda, revelou como o tema é pouco debatido no país e, segundo especialistas, trouxe à tona a necessidade de se discutir mudanças nas regras de uso e auditagem destes sistemas.

Para Rafael Zanata, diretor da ONG Data Privacy Brasil, especializada em proteção de dados pessoais e que estuda os riscos destas tecnologias de espionagem, o problema vai muito além do First Mile e envolve uma mudança na cultura de uso e fiscalização destes programas.

"Não é só o First Mile o problema. O problema é sistêmico, estamos falando de uma conduta, de práticas de contratação, de práticas de inteligência, uso de softwares, que não estão conectadas com o dimensionamento dos riscos que elas produzem”, afirma Zanatta.

Para ele, o enfrentamento a este cenário envolve vários atores públicos e privados e passa por mudanças na Lei da Abin, nas práticas de contratações de órgãos públicos e até por uma eventual mudança na Constituição para deixar mais explícito o papel das atividades de inteligência no país. "A Constituição não fala de inteligência, fala só sobre estrutura de segurança pública, mas já que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que as atividades de inteligência estão sobre o regime do Estado Democrático de Direito, acho que a Constituição poderia fazer essa missão explícita, isso ajudaria bastante", afirma.


Rafael Zanatta, da ONG Data Privacy Brasil / Divulgação

Especialista no tema, Zanatta é advogado, com doutorado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a proteção coletiva dos dados pessoais no Brasil e membro da Rede Latino-Americana de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Em entrevista ao Brasil de Fato, ele discorreu sobre o cenário do uso das tecnologias no Brasil, os desafios que temos que superar e como podemos pensar em alternativas baseadas em casos bem-sucedidos de países desenvolvidos.

Para ele, a operação da Polícia Federal sobre o First Mile foi positiva por dar visibilidade ao debate e provocar a discussão entre as autoridades. Chamada de Última Milha, a operação foi deflagrada em outubro de 2023 e levou ao afastamento do número três da Abin até então, Paulo Maiurino, e de outros quatro funcionários da agência, além de ter levado à prisão de dois agentes. A operação foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e tramita sob sigilo na corte.

De acordo com o especialista, desde a Copa do Mundo de 2014, o Brasil vem ampliando a aquisição e uso de softwares de espionagem. Foi no governo Bolsonaro que estas contratações se intensificaram e a estrutura de inteligência teria ficado mais opaca, com a ampliação do Sisbin, Sistema Brasileiro de Inteligência, que reúne diferentes órgãos que compartilham informações sensíveis entre si. Em paralelo a isso, o governo Bolsonaro teria, segundo Zanatta, ampliado os casos de dispensa de licitação e de decretação de sigilo para os contratos destes tipos de software.

No governo Lula, segundo o especialista, a Controladoria-Geral da União tem contribuído para reverter esse quadro e editou normas que preveêm, dentre outros pontos, a publicidade nestes tipos de contratações. Ainda assim, Zanatta avalia que o país precisa avançar em vários pontos.

Arcabouço democrático

Para Zanatta, uma boa saída para o Brasil seria se espelhar nos exemplos internacionais e aplicar na prática um entendimento recente do Supremo Tribunal Federal, ao negar em 2021 uma autorização dada pelo governo Bolsonaro para que a Abin pudesse ter acesso indiscriminado aos dados dos Detrans sobre os 76 milhões brasileiros que possuem CNH no país. No julgamento, o tribunal entendeu que a atividade de inteligência faz parte do Estado Democrático de Direito e deve estar submetida a premissas democráticas.

"A solução que os países encontraram é que o sistema de inteligência tem que estar dentro de um arcabouço democrático. Isso é um pilar essencial, não pode ter o campo de exceção, isso é inegociável. Você tem que ter exame constante de razoabilidade, proporcionalidade, e você tem que ter alguma estrutura política de controle sobre como as decisões de contratação de tecnologia vão surgir ali", afirma o especialista.

Ele explica que, com o avanço tecnológico, cada vez mais estas tecnologias e softwares terão capacidade de levantar e processar grandes volumes de informações sensíveis sobre as pessoas. "A tecnologia gera um monte de capacidade nova. Então tem que ter uma cautela sobre a antecipação destes riscos. E isso você vai ter que fazer com um procedimento administrativo, não tem jeito, será necessário fazer regramento interno nos órgãos que dependem destas tecnologias, um protocolo: quem usa, como usa, com quais condições, com quais logins de acesso, com quais controles internos", explica.

Premissas básicas

Neste sentido, a ONG defende que sejam levadas em conta quatro premissas básicas na contratação e uso destes tipos de softwares. A primeira delas é a necessidade, isto é, o órgão de inteligência teria que demonstrar que tentou obter as informações por outros meios de investigação, mas não conseguiu.

A segunda é a adequação, ou seja, demonstrar que para aquela investigação específica determinado software oferece as condições adequadas para auxiliar as necessidades do órgão de inteligência. Em terceiro lugar, teria que ser levado em conta o princípio da proporcionalidade, isto é, o grau de potencial violação aos direitos de várias pessoas tem que ser proporcional ao risco que a Abin ou outros órgãos de inteligência estejam investigando.

Em quarto lugar, a ONG entende que é necessário que haja accountability, ou seja, a prestação de contas às autoridades responsáveis sobre as atividades dos órgãos de inteligência. No Brasil, existe a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), que te entre suas atribuições a fiscalização das ações da Abin.

Segundo Zanatta, porém, os parlamentares da comissão não têm conhecimento suficiente sobre os diferentes softwares e os riscos que eles oferecem. A ONG chegou a fazer um levantamento a partir das atas das reuniões da comissão para avaliar o trabalho dos parlamentares e percebeu que eles, no geral, gastam mais tempo com embates políticos e trocas de acusações do que com análises técnicas e aprofundadas sobre os usos de ferramentas de pesquisa de informações e espionagem.

"A CCAI poderia se organizar e decidir 'vamos fazer um trabalho de investigação de um ano e meio, vamos usar recursos públicos, trazer pessoal de segurança pública, vamos fazer um relatório exemplar, colocar balisas sobre o uso destas tecnologias', mas não fizeram isso. Ao invés disso, se ocuparam de discursos e debates políticos mais performáticos", conta o pesquisador.

Espionagem e soberania nos outros países

Zanatta lista como boas referências para o debate no Brasil os casos de Alemanha e Estados Unidos, dois países desenvolvidos e que têm enfrentando o desafio de equilibrar o uso de modernas tecnologias para garantir a segurança pública com a preservação de direitos da população.

Na Alemanha, segundo Zanatta, foram feitas mudanças recentes na legislação e foi instituído um sistema por meio do qual as atividades de inteligência são acompanhadas por uma comissão de parlamentares de diferentes partidos designados para isso e que assumem o compromisso de não falar sobre as atividades de inteligência que eles fiscalizam. "Isso gera um tipo de accountability democrática, porque, enfim, a inteligência vai saber que tem, sob condição de confiança, um grupo de parlamentares olhando o que ela está fazendo", explica o diretor da ONG.

Já nos Estados Unidos, a iniciativa vem sendo adotada pelo próprio governo federal, por meio das chamadas ordens executivas do presidente Joe Biden para vetar a contratação de determinadas empresas de tecnologias que tenham cometido abusos no usos dessas tecnologias. Segundo o diretor da ONG, essas medidas de Biden estariam sendo inspiradas por motivos geopolíticos dos Estados Unidos.

"Se o governo dos Estados Unidos faz vista grossa e deixa que qualquer tipo de software seja usado por qualquer governo, isso implica uma capacidade muito maior de governos que não são amigos dos Estados Unidos de utilizarem sistemas de inteligência de espionagem muito avançados", afirma. "Uma das formas de manter uma certa ordem mundial, digamos assim, é se estabelecer um mercado legítimo para esse tipo de espionagem. Porque, na regra do vale tudo, os Estados Unidos saem perdendo", explica o diretor da ONG.

Ele cita ainda estudos feitos pelo professor americano Steven Feldstein que mostram que nos últimos anos as contratações de Spywares, os softwares de espionagem, tem crescido mais em países autoritários, como os Emirados Árabes Unidos e Sudão.

Neste cenário, ele entende que os órgãos que utilizam programas de espionagem, como o Ministério da Justiça, poderiam adotar uma postura semelhante à dos EUA ao lidar com as empresas que produzem e vendem estas tecnologias. "O Ministério da Justiça precisa ter protocolos, indicações como o governo Biden está fazendo, de dizer 'olha, certos tipos de fornecedores, certos tipos de software não pode usar', porque isso significa que você vai colocar a segurança nacional em risco, os direitos fundamentais em risco", afirma.

"Então, tem responsabilidade para todo mundo, temos universidades, com pesquisadores que precisam fazer mais pesquisa sobre o tema. O Ministério da Justiça tem que se mexer, editar protocolos, e o Congresso tem que reforçar a legislação e colocar a CCAI para trabalhar", conclui.

Edição: Rebeca Cavalcante