Minas Gerais

Coluna

Financiamento à pesquisa e relações de gênero: a exclusão das pesquisadoras-mães

Imagem de perfil do Colunistaesd
Apenas 35,6% dos pesquisadores com a bolsa de produtividade em pesquisa concedida pelo CNPq são mulheres. - Foto: Freepik
Critérios atuais excluem mulheres do perfil de excelência em pesquisa

Às vésperas do Natal o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq publicou o resultado de um dos seus mais concorridos editais de financiamento à pesquisa científica no país, o de Bolsa de Produtividade em Pesquisa.

Dado o sempre limitado orçamento do órgão quando comparado à demanda por recursos, mais uma vez houve muito mais gente frustrada em suas demandas do que pessoas atendidas, ainda que muitas propostas não apoiadas tenham sido consideradas de alta qualidade pelos Comitês Assessores.

Mas não é apenas isso que tem sido objeto de consideração da comunidade científica brasileira. Os resultados do Edital trouxeram à baila, mais uma vez, velhas questões.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui :: 

O que define o que é uma atuação excelente em uma área específica como, por exemplo, a pesquisa científica? Talvez seja mais elucidativo colocar a pergunta em outros termos: quem decide quais pesquisadores são excelentes?

Uma boa resposta a essa pergunta nos levaria a observar, entre outros aspectos, qual a trajetória de formação, a origem socioeconômica, a cor e o gênero das pessoas que estão oficialmente autorizadas a dizer quem são os pesquisadores excelentes.

Há poucas mulheres nessas posições de poder. Para se ter uma ideia, em uma das instâncias de consagração da excelência em pesquisa no Brasil – a bolsa de produtividade em pesquisa concedida pelo CNPq acima evocado – há apenas 35,6% de mulheres. Daí que os itens que entram na análise – e o próprio perfil esperado – privilegie as formas de atuação que são características de pesquisadores homens. E é bom lembrar que, em um ambiente hostil às mulheres, as poucas pesquisadoras que conseguem entrar nesse rol são pressionadas a se enquadrar.  

Injustiça histórica

As razões para isso são históricas. Data de 1887 o registro da primeira mulher a se formar no ensino superior no Brasil e essas instituições já existiam no país desde o início do século XIX. Em 1940, as mulheres representavam 19% dos estudantes universitários. Em 1970, esse percentual passou para 42,5%. Naquele mesmo ano, apenas 29,2% do corpo docente no ensino superior era composto de mulheres.  E foi preciso esperar até 1982 para que o país tivesse a primeira mulher a assumir a reitoria de uma universidade.  

Se o passar do tempo tem ampliado a possibilidade de que mulheres frequentem espaços acadêmicos e posições de poder no meio científico, o fato é que isso não acontece por um processo que possa prescindir de protestos e ações enfáticas de repúdio. Muitas mulheres protestaram no passado e seguimos tendo que repudiar a desigualdade de gênero na academia.  

Portanto, continua necessário explicitar que o menor percentual de mulheres com bolsa de produtividade em pesquisa não expressa falta de competência e compromisso das pesquisadoras e, sim, uma injustiça histórica.

Os critérios atuais excluem um grupo enorme de mulheres que não podem – ou não querem – se enquadrar no perfil de excelência em pesquisa construído há séculos quase exclusivamente por homens brancos (a desigualdade racial é também uma questão antiga cujo debate é igualmente urgente!).

Maternidade e exclusão

Um dos grupos que tem sido duramente excluído são as pesquisadoras-mães. Nesse caso, uma primeira e poderosa exclusão é a autoeliminação. Sim, quando uma pesquisadora tem filhos, sente que suas chances no espaço acadêmico diminuem muito e, com maior ou menor nível de consciência, vai desistindo e se encolhendo.

Seria preciso, portanto, para além de conhecer o percentual de candidaturas de mulheres à bolsa produtividade que foram recusadas, também considerar quantas pesquisadoras deixaram de concorrer porque a maternidade parece para si próprias incompatível com esse tipo de competição.

Entre as que seguem tentando conciliar a função materna e as exigências acadêmicas, as dificuldades não tardam a se apresentar. Pesquisadoras-mães enfrentam muito mais obstáculos, por exemplo, para participarem de congressos acadêmicos, uma das exigências tácitas para se tornar um pesquisador excelente.

Pouca gente observa o quão desgastante e caro é para uma pesquisadora-mãe ir a um evento. Se leva os filhos, tem que levar toda uma estrutura, alguém para cuidar deles e isso custa muito. Se eles ficam e a pesquisadora vai, é preciso colocar em funcionamento uma complexa logística durante o período de ausência e isso custa caro.

Sem contar a fatura que chega em forma de culpa pelo peso extra que a cultura coloca nas costas das mães e que se expressa frequentemente em uma frase com aparência de inofensiva: “E onde você deixou os seus filhos?”. Aqui vai uma dica: colegas pesquisadores (homens e mulheres), não façam essa pergunta a pesquisadoras-mães! É simplesmente desnecessária.

Pesquisadoras-mães, em geral, não têm como “aproveitar” o horário do almoço para fazer aquela reunião rápida de trabalho e precisam encerrar o expediente às 17h, para dar tempo de buscar os filhos na escola. Depois compensam essas horas de trabalho das 4h às 6h da madrugada. Sim, é isso que acontece. E daí dormem menos e, se dormem pouco, têm mais dificuldade de se concentrar (como qualquer ser humano) nas muitas atividades de leitura e escrita intensiva que constituem as atividades de pesquisa.

Pesquisadoras-mães não podem aproveitar parte do final de semana ou o feriado de carnaval para adiantar aquele artigo que falta terminar. As horas de uma pesquisadora-mãe são disputadas entre as infinitas festas de aniversário dos amiguinhos, as matinês de foliões que não cansam de pegar confete do chão e jogar de novo para cima e as muitas idas ao parquinho.

Isso significa dizer que, ao contrário do que acontece com outros pesquisadores, para uma pesquisadora-mãe, o final de semana não é um momento de descanso nem a ocasião de produzir um pouco mais. É uma jornada longa ao final da qual a exaustão é real.

Muitos abraços dos bracinhos curtos dos filhos pequenos, muita felicidade por poder vê-los crescer e muitas fotos para eternizar a memória desse período corrido, mas também cheio de amor? Sim, tudo isso é verdade. E, na minha opinião, tem que continuar sendo assim. Nós, pesquisadoras-mães, temos que poder continuar exercendo a maternidade com o que tem de bom e de difícil nessa função.

O que não tem que continuar como está é o fato de que somos penalizadas porque, enquanto temos filhos pequenos, temos menos tempo para as atividades acadêmicas.

Não produzimos pouco e nossa produção não tem pior qualidade por isso. Apenas é preciso reconhecer que não temos condição de preencher o longo e diversificado check list que atualmente se apresenta como condição para o reconhecimento da excelência acadêmica.

Excelência acadêmica: construção social

O que é preciso é que se aceite a variedade de formas de atuação como igualmente adequadas para a atuação competente e produtiva no espaço acadêmico. E, mais que isso, é preciso assumir que uma pesquisadora-mãe vai passar alguns anos tendo como foco algumas atividades e deixando outras para integrar à rotina depois que os filhos crescerem: publica artigos, mas não vai a eventos; assume a coordenação do programa de pós-graduação, mas orienta menos estudantes por vez; não faz pós-doc no exterior, mas escreve um livro.

A ideia de excelência acadêmica é uma construção histórica e social, portanto, necessariamente moldada por quem tem posições destacadas nesse jogo em cada época.

É preciso construir coletivamente a compreensão de que podemos ser pesquisadoras-mães excelentes. Mas isso não pode significar que tenhamos que imitar a trajetória de excelência construída por homens.

 

Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.

--

Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

--

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida