História e política

Para acirrar campanha pelo Essequibo, Venezuela leva general que combateu ingleses ao Panteão Nacional

No século 19, Antonio Sifontes liderou tropas venezuelanas no território que hoje está em disputa com a Guiana

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Maduro pediu que Forças Armadas sigam 'exemplo de Sifontes' e defendam o país 'de qualquer império' - Prensa presidencial

A disputa com a Guiana pelo território do Essequibo tem tomado conta de todas as esferas da vida pública da Venezuela, inclusive a dos debates sobre a história. Em um movimento recente que misturou construção de memória nacional e agitação política, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, decidiu incluir o general Domingo Antonio Sifontes no Pantão Nacional.

O local é reservado para abrigar os restos mortais dos venezuelanos considerados heróis do país e, no caso de Sifontes, a defesa do Essequibo o transformou em um.

Em 1895, o general liderou tropas venezuelanas em uma batalha vitoriosa contra ingleses que tentavam ocupar parte do território venezuelano que hoje faz fronteira com a Guiana. Naquela época, o país, que se tornaria independente apenas em 1966, ainda era um território sob dominação colonial do Reino Unido.

Oito anos antes da batalha, o governo do presidente venezuelano Antonio Guzmán Blanco havia rompido relações diplomáticas com Londres, justamente pela declaração unilateral britânica dos territórios fronteiriços El Callao, Guasipati e El Dorado como pertencentes aos seus domínios. O último havia sido fundado pelo próprio general Sifontes durante seu serviço na região.

Ambos países viveram anos de tensões diplomáticas e militar até que no dia 2 de fevereiro de 1895, tropas inglesas decidiram tomar um posto militar venezuelano na fronteira e, de madrugada, chegaram a hastear a bandeira britânica em El Dorado.

A ação foi respondida militarmente por Sifontes e sua tropa, que repeliram os invasores e chegaram a prender um oficial britânico. O feito elevou o general venezuelano á condição de herói local e defensor da fronteira ocidental do país.

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"Era um período de profundas crises políticas", explica o historiador venezuelano Carlos Franco. Ao Brasil de Fato, o pesquisador e professor da Unearte diz que esse episódio protagonizado por Sifontes ocorre pouco antes da assinatura do primeiro documento que tentou definir a soberania do Essequibo, o chamado Laudo Arbitral de Paris, hoje contestado por Caracas.

"Aquela foi uma ação de defesa de um território diante da pretensão britânica e representou um momento prévio que agudizou a necessidade de buscar uma solução jurídica e diplomática", diz.

Uso da história na política

Entretanto, apesar do governo reduzir a nomeação de Sifontes ao Panteão a uma escolha meramente histórica, analistas apontam para as mensagens políticas presentes na decisão.

"Elevar Sifontes ao Panteão Nacional diz respeito aos esforços do Estado venezuelano em associar o imaginário do cidadão atual a uma reivindicação histórica que tem uma sustentação jurídica, mas também histórica", diz Franco. Os restos mortais do general foram exumados e atravessaram o país durante quatro dias em cortejo militar, saindo do estado Bolívar e chegando à capital Caracas no dia 9 de janeiro.

Para o historiador, há uma clara intenção política por trás da escolha de Sifontes e do momento em que ela se deu pois "é para isso que se criam políticas de memória e instituições da memória com objetivos claros". "Nesse caso, sobre o tema da Guiana Essequiba, em termos políticos, essa tem sido a linha do Estado venezuelano e a história tem um papel fundamental nela, é uma política de Estado, uma ação política", explica.

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Por outro lado, a situação política interna na correlação de forças partidárias também deve ter alguma influência na maneira como o governo Maduro vem conduzindo a questão da defesa do Essequibo. Essa é a opinião do sociólogo venezuelano Ociel López, que disse ao Brasil de Fato que levar Sifontes ao Panteão "gera uma coesão importante".

"Talvez não gere votos, mas sim uma narrativa, um relato importante para o governo que temos que levar em conta", afirma. As eleições presidenciais devem ocorrer em outubro e, segundo López, o governo vem apostando em criar uma plataforma de campanha "nacional, mais do que apenas socialista ou chavista".

"Sifontes era uma pessoa que reconhecia a problemática do Essequibo e que há mais de 100 anos estava defendendo de maneira ativa o território contra a Inglaterra. Hoje, não há um só opositor que tenha coragem de criticar Sifontes ou uma decisão deste tipo tomada pelo governo", disse.

Ainda há risco de conflito?

Durante a cerimônia de inclusão de Sifontes no Panteão, Maduro foi acompanhado do alto comando das Forças Armadas e se dirigiu às tropas dizendo que o general do século 19 é "um exemplo de valores que temos que levar até o último soldado, da última unidade militar".

"[Vocês] sempre têm que estar prontos para seguir o exemplo do general Sifontes e defender a terra venezuelana, a soberania do país, de qualquer império ou de qualquer oligarquia traidora", disse o presidente.

Em dezembro do ano passado, durante reunião em São Vicente e Granadinas, os presidentes venezuelano e guianês haviam se comprometido a não utilizar a força para resolver a disputa, mas o acordo foi abalado após um navio da Marinha britânica ser enviado à Guiana no dia 24 do último mês.

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Caracas respondeu com exercícios militares e, em janeiro, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, chegou a receber a visita do ultradireitista Mike Pompeo, ex-secretário de Estado dos EUA durante o mandato de Donald Trump e um dos principais idealizadores da política de "pressão máxima" contra a Venezuela.

As atitudes voltaram a estremecer as relações entre os países, embora López acredite que Washington deve começar a advogar pela normalidade até novembro. "O presidente Joe Biden precisa de estabilidade econômica no Caribe para vencer as eleições nos EUA e a tendência é a Casa Branca dirimir tensões", afirma.

Edição: Nicolau Soares