Terra e moradia

Parecer divulgado pelo CNJ aponta acordos e diálogo como solução para conflitos fundiários

'Documento pode ser ponto de partida para a construção de políticas públicas', defende autor

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Judiciário brasileiro busca estabelecer soluções consensuais para despejos e desocupações; registros de violência são comuns nos processos de desapropriação
Judiciário brasileiro busca estabelecer soluções consensuais para despejos e desocupações; registros de violência são comuns nos processos de desapropriação - Ingrid Barros

A solução de conflitos fundiários no Brasil vem passando por uma mudança de paradigmas desde a pandemia da covid-19 que tem potencial de reverter o histórico de violência e conflitos em situações dessa natureza. Embora ainda haja um caminho longo para que o país consiga fazer com que as soluções consensuais sejam padrão nesses processos, o Judiciário já disponibiliza algumas diretrizes e determinações.

Na mais recente delas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) disponibilizou um parecer sobre a celebração de acordos (acesse aqui), que possam garantir o direito à moradia, mas também compensação em espécie para quem tem o título das áreas ocupadas.

O documento orientador foi produzido pelo advogado Georges Abboud, mestre, doutor e livre-docente em Direito pela PUC-SP e professor de Direito Processual Civil e Direito Constitucional. Ele traz elementos que podem ser aplicados tanto para conflitos rurais quanto urbanos e propõe uma "nova visão" sobre o papel da administração pública nesses acordos.

"Problemas dessa magnitude só podem ser resolvidos mediante atuação conjunta dos Três Poderes e da própria sociedade, numa relação heterárquica, a partir da qual o Estado pode se valer do conhecimento social e de certas situações já consolidadas para se desonerar de criar políticas públicas ex nihilo (do nada)", diz o parecer.

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O documento reflete sobre a necessidade de construção de políticas "arrojadas, que devem ser levadas à cabo, inclusive no bojo das próprias demandas concretas, em parceria com a população atingida". No texto, o professor cita a consolidação e aprimoramento de programas e campanhas que já são implementados pelas próprias comunidades das ocupações coletivas.

Ele traz exemplos do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para ilustrar essa possibilidade. "Em conjunto, MTST e MST são sabidamente responsáveis pela promoção de diversas ações que visam promover o bem comum a partir da utilização de terras até então improdutivas ou sem qualquer função social."

O parecer lembra iniciativas como o programa Cozinhas Solidárias do MTST, que tem mais de 15 unidades em onze estados para distribuição de alimentos saudáveis a populações vulneráveis. Ele ressalta também a cadeia produtiva do MST, que agrega centenas de cooperativas, agroindústrias, quase 2 mil associações e centenas de milhares de famílias assentadas e acampadas.

"MTST e MST são apenas dois exemplos da fecundidade das ações espontâneas tomadas pelos integrantes de diversas ocupações coletivas que podem contribuir para a implementação das políticas públicas necessárias à concretização dos princípios constitucionais elencados pelo autor da ação, e isso não só a partir de uma eventual regulamentação a ser fornecida pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade como, também, mediante acordos em demandas concretas nas quais são discutidos conflitos fundiários específicos."

Em entrevista ao Brasil de Fato, Abboud falou sobre o parecer e sobre a atenção do Judiciário brasileiro ao tema. Confira os principais pontos a seguir ou ouça a conversa na íntegra no tocador de áudios abaixo do título desta matéria.

Acordos possíveis 

"O parecer busca dar uma nova visão, que permita soluções consensuais para conflitos fundiários. A maior parte dos exemplos de conflitos são rurais, mas, em tese, o parecer poderia servir tanto para conflitos fundiários urbanos ou rurais.

Ele tem dois grandes pontos. Um é como a ação no Supremo pode ser finalizada por meio de um acordo em que a União Federal participe, para criar uma política judicial e pública de soluções consensuais de problemas fundiários.

Também - independentemente da ação do Supremo - para cada conflito fundiário que exista no Brasil, coletivo ou individual, o parecer busca estabelecer como não há impedimento legal, como é lícito e correto que a administração pública custeie determinados acordos nesses conflitos fundiários, em que você tem um proprietário de um lado e famílias ocupando esse imóvel.

Às vezes essa ocupação já existe há 15, 20 anos e é faticamente quase irreversível retirar as famílias, porque não tem uma política ou onde colocá-las e o proprietário não pode ficar simplesmente sem nenhuma indenização.

Todo o parecer busca - orientado pela jurisprudência recente do Supremo e pelas inovações legislativas - demonstrar sistematicamente porque são permitidos esses acordos, que não são acordos que a lei veda e que não precisaria de uma lei para permitir esses acordos.

É uma forma de dar a base normativa e tranquilidade, para que tanto o poder público quanto o próprio judiciário admitam a celebração desse tipo de acordo, quando as partes concordarem, claro."

Mudança de paradigma 

"Temos uma primeira grande mudança de paradigma. Historicamente, tanto a legislação quanto os livros de direito constitucional tinham um tabu doutrinário, que se refletia na prática, de que não existe a possibilidade de celebração de acordos em jurisdição constitucional quando estamos falando de controle de abstrato. Ou seja, não se pode celebrar acordo no Supremo quando você está discutindo constitucionalidades de atos e leis, porque é direito indisponível e etc.

É uma visão obsoleta. Sim, é viável o acordo, principalmente quando esse acordo é uma técnica mais adequada para proteger direitos fundamentais, para impedir conflitos entre entes federados. Por exemplo, aquele impasse entre União e estados sobre o ICMS, foi celebrado no acordo no Supremo.

No último um ano e meio, houve uma revolução paradigmática na jurisdição constitucional brasileira, em que o Supremo incorporou essa tese do acordo. Sempre fui entusiasta dessa ideia e acho que ela tem dado certo. Essa ADPF que trata da questão da remoção de ocupações desde a pandemia é um espaço profícuo para que a Advocacia Geral da União, União federal, sociedade civil, Procuradoria Geral da República, possam estabelecer diretrizes.

Essa é a primeira grande mudança. Nós tivemos reforma na legislação brasileira, em especial na lei de introdução ao direito brasileiro, que também quebraram aquelas regras que diziam que a administração pública não pode celebrar acordo em vários temas, como um tabu. Mesmo a nova lei de improbidade diz que em matéria de improbidade você pode celebrar acordo.

É uma reforma que traz a outra. O Supremo rompe e evolui, vai para um novo patamar que aceita a celebração de acordos. Por consequência, isso é um indicativo para, em uma ação civil pública, você celebrar acordos com mais liberdade em que a União participe. Uma solução consensual de litígios para temas que não são puramente patrimoniais e que envolvam dispêndio de indenização pelo poder público, coletividade, direitos naturalmente indisponíveis, direitos de propriedade, chegar a soluções dialogadas. Ninguém leva tudo, mas ninguém perde tudo.

É uma clássica solução que pacifique e se transforme em políticas públicas, que podem interessar muita gente. Vai fazer circulação de riquezas, aquisição e distribuição de terras. Ela pode ser uma das ferramentas para acabar com essas disputas fundiárias, que, além de ruins do ponto de vista econômico, geram insegurança jurídica e, mais importante, conflitos sociais."

Na prática

"O CNJ é o órgão administrativo mais relevante do judiciário brasileiro, conectado diretamente ao Supremo. A questão da disputa fundiária está no radar dos órgãos jurídicos mais relevantes do país como um dos problemas que o Brasil tem a ser pacificado, a ser resolvido. Como todo problema complexo, demanda múltiplas soluções e o parecer busca trazer uma tese da solução dialogada e celebração de acordo.

Esse parecer é de uso público, pode ser usado em qualquer conflito. É um documento que pode ser juntado em um processo a qualquer momento, fazendo a referência. Por exemplo, se a administração pública não participa desse conflito fundiário, ele pode ser usado para intimar, para mostrar que o CNJ está tratando desse tema e que há um raciocínio jurídico que diz que o poder público tem que estar acompanhando esse conflito. Inclusive, pode ser o artífice da construção da solução, tem presença fundamental.

Ele pode ser usado pelos movimentos sociais que estariam, mas pelo próprio usuário que pode preferir a indenização e não esse conflito que perdure eternamente. Há um parecer que diz que pode haver indenização de uma forma lícita, pela administração pública diretamente. Mesmo que no início fosse um processo possessório e não de desapropriação. O parecer defende que, por acordo, mediante homologação judicial com a participação da União, mesmo conflitos possessórios podem ser transformados em desapropriação indireta. Essas burocracias de formalidade, o nosso direito hoje permite que elas sejam superadas."

A importância do Supremo

"A cobertura do Supremo tem sido feita de maneira muito enviesada, mas, no Judiciário, o Supremo tem sido o grande protagonista da ideia de proteger direitos. A liminar da pandemia e toda a política de proteção e apaziguamento das lutas fundiárias tem o Supremo como um ponto fundamental.

Muitas vezes nós esquecemos de toda a proteção de direitos que o Supremo proporciona ao Brasil. A proteção democrática e redução de conflitos. Isso muitas vezes se perde e é importante sabermos, porque tudo parte de precedentes do Supremo para construção dessa solução dialogada."

Ponto de partida

"O parecer é uma manifestação de uma opinião de um professor sobre um tema. O que significa? Significa que o parecer vale pelo prestígio de quem o fez e pelo prestígio dos argumentos que estão colocados ali. Ele não é vinculante, ele não é uma lei, ele não é uma resolução, ele não é um ato formal do poder público.

O que ele demonstra? Ele demonstra que o CNJ e o Supremo estão preocupados com esse tema. Isso está no radar, principalmente do CNJ, que é formador de políticas públicas judiciais. Provavelmente isso está na mira de ser trabalhado no futuro, para se transformar em uma resolução, uma orientação definitiva do CNJ, aí ele se torna uma política de observação obrigatória para os judiciários.

Hoje, ele é, vamos dizer assim, um ponto de partida para uma construção dessa política pública entre a administração, Executivo, Judiciário e a resolução dos casos. Mas já houve decisões em sentido muito próximo do que o parecer defende. Então, pode servir para dar um conforto e subsídio teórico e informativo para que se construam esses acordos, enquanto isso não se transforma numa política consolidada e oficial em âmbito nacional.

Edição: Nicolau Soares