Extrema direita

'Milei quer deixar a ciência nacional morrer', denuncia comunidade científica argentina

Pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato alertam que institutos científicos podem parar de funcionar na metade do ano

Brasil de Fato | Habana (Cuba) |
Protesto na argentina afirma: "A educação e a ciência não estão à venda" - Telam

O setor de ciência e educação da Argentina está em uma situação alarmante. Desde que assumiu o governo, o ultradireitista Javier Milei adotou medidas de austeridade que ameaçam a continuidade dos espaços de pesquisa e as carreiras de milhares de cientistas no país. 

Assim que assumiu o cargo, o governo de ultradireita decidiu rebaixar o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que foi transformado em uma secretaria. Além disso, sob o pretexto de solucionar a grave crise econômica pela qual o país está passando, o governo decidiu que durante este ano aplicará o orçamento público de 2023. Como a Argentina é um dos países com a inflação mais alta do mundo, tal medida significa uma liquefação do orçamento real.

Nesse contexto, o Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (Conicet), o principal órgão dedicado à promoção da ciência e tecnologia na Argentina, projeta que o orçamento anual só é suficiente para cobrir as despesas até junho. Depois disso, não haverá mais dinheiro para manter os 300 institutos federais de pesquisa do país.

A falta de orçamento já levou a demissões de funcionários administrativos na instituição e ao adiamento de chamadas para bolsas de estudo e promoções na carreira de pesquisa. Nesse contexto, a comunidade científica adverte que o atual corte de recursos do sistema de ciência e tecnologia equivale a deixá-lo morrer.

A situação preocupante motivou várias manifestações de protesto contra o governo. Enquanto isso, várias associações de cientistas declararam que participarão da greve geral com a qual as organizações centrais de trabalhadores enfrentarão as medidas do governo nesta quarta-feira (24).

Em conversa com o Brasil de Fato, Cecília Gárgano, doutora em história e pesquisadora do Conicet, alerta que "a situação é realmente crítica".

Segundo a pesquisadora, os cortes fazem parte de "um contexto geral de subjugação e estigmatização dos trabalhadores do Estado em geral, e do setor científico em particular". Gárgano ressalta que esse contexto teve um capítulo importante durante o governo de Mauricio Macri (2015-2019) e foi radicalizado no discurso atual da extrema direita.

"Há uma estigmatização muito forte do papel da ciência. Essa estigmatização tem a ver com sustentar que se o conhecimento não gera lucros, se não é diretamente comercializável, então é um conhecimento que não é válido ou útil", afirma.

Assim como outras forças de extrema direita em todo o mundo, os libertários argentinos não escondem seu desprezo pela ciência. Nas redes sociais, os seguidores de Milei multiplicam notícias falsas sobre pesquisa e ciência no sistema estatal argentino, que eles consideram inútil. Esses preconceitos foram alimentados durante sua campanha. Tanto que o ultradireitista chegou a prometer publicamente que fecharia o Conicet, considerando que o sistema científico argentino "não produz nada".

A ameaça fez soar o alarme não apenas na comunidade científica do país, mas também em nível global. A prestigiosa revista acadêmica internacional Nature dedicou um editorial alertando que "reduzir o apoio à saúde e à ciência não deve ser uma opção nas eleições da Argentina", ressaltando que "prosperidade, bem-estar e crescimento de longo prazo" só são possíveis por meio de "investimento em pesquisa".

A ideia do presidente de extrema direita de que o sistema científico da Argentina "não produz nada" não condiz com os próprios méritos que a ciência do país acumula. Em 2023, pelo quinto ano consecutivo, o Conicet ficou em primeiro lugar entre os órgãos públicos dedicados à pesquisa na região, de acordo com o ranking Scimago Institutions.

"Essa direita virulenta pretende reduzir a ciência a uma ciência mercantilizada e empresarial, ligada ao grande capital", explica Gárgano. "Dessa forma, sua ideia de 'produtividade científica' está associada ao lucro direto dos setores privados concentrados. Nesse sentido, a produção pública de medicamentos ou a pesquisa em áreas da saúde que não são lucrativas para as grandes empresas farmacêuticas são consideradas pouco importantes e estigmatizadas como 'improdutivas'. Na mesma linha, considera inútil que um país pesquise seu passado recente, suas identidades culturais ou seus sistemas educacionais, só para dar exemplos."

Na opinião de Gárgano, o que o governo de Milei está tentando promover são "cientistas-empresários" que estabelecem acordos e buscam financiamento privado. Um modelo de desenvolvimento da ciência que "prejudica diretamente a soberania científica do país".

As reformas do sistema científico que o governo de Milei pretende implementar não estão isoladas do projeto proposto pelo país para a Argentina. "O governo tem uma diretriz muito clara que prioriza a concentração econômica e o aumento da desigualdade social", diz Gárgano, alertando que esse modelo de país só é possível "com o aumento da repressão e da perseguição a todos aqueles que são afetados ou se opõem a essas políticas".

Jovens em situação de precariedade 

Desde criança, Lucas Kreiman sempre quis ser um cientista. Ele não se lembra de um momento em que lhe perguntaram o que ele queria ser quando crescesse sem responder "cientista". No entanto, foi durante seus anos de ensino médio que seu fascínio pelo funcionamento dos seres vivos despertou. 

Atualmente, é um jovem biólogo e doutorando no Conicet. Sua especialização é em teoria evolutiva, que ele considera "a teoria organizadora da biologia". Todos os seus estudos, desde a primeira graduação até o doutorado, foram realizados no sistema público de ensino. Até o meio do ano, ele deve defender sua tese de doutorado.

Longe de desfrutar das últimas etapas do processo, seus dias se dividem entre o trabalho como pesquisador e a participação junto a dezenas de outros estudiosos em atividades de defesa da ciência. Junto com outros pesquisadores, ele faz parte de um grupo de "jovens pesquisadores em empregos precários" que lutam por seus direitos trabalhistas.

Em conversa com o Brasil de Fato, Lucas ressalta que "esta não é a primeira vez que a direita ataca duramente a ciência argentina. A ciência na Argentina está na vanguarda na região e no mundo, e isso dá ao país uma soberania que a direita tem tentado destruir repetidamente".

Lucas relembra episódios da direita argentina contra a ciência. Em 1966, a ditadura de Onganía interveio nas universidades e ordenou que a polícia destruísse um dos centros de pesquisa argentinos mais importantes, onde estava localizado o primeiro computador desenvolvido na América do Sul. O evento é lembrado como "a noite das bengalas longas" e produziu a primeira grande "fuga de cérebros", como é conhecido o exílio em massa de cientistas do país. 

Anos mais tarde, durante a década de 1990, o governo neoliberal de Menem manteve uma política de severo corte de verbas para a educação e a pesquisa científica. A pesquisadora Susana Torrado foi uma das cientistas que alertou sobre as consequências que as políticas neoliberais teriam. As advertências de Torrado não foram bem aceitas pelo governo, e o então ministro da economia, Domingo Cavallo, respondeu mandando pesquisadores "lavar a louça". Durante esses anos, os cientistas não puderam continuar suas pesquisas e ocorreu outra grande fuga de cérebros. Cavallo foi funcionário público durante a última ditadura militar e atualmente é um dos economistas que assessoram o governo de Javier Milei. 

"Entre os cientistas que tiveram que sair estava meu codiretor, que seguiu sua carreira nos EUA. É muito triste ver a mesma coisa acontecendo agora". A história de seu codiretor é a história de centenas de cientistas que, apesar de impedidos pelas políticas neoliberais de desenvolver suas atividades no país, decidiram retornar assim que as oportunidades se abriram novamente na Argentina, mesmo que essa escolha significasse ganhar muito menos dinheiro do que no exterior.  

Agora, mais uma vez, as crescentes dificuldades econômicas do país, juntamente com a ameaça de fechamento de centros de estudo e pesquisa, estão colocando em risco a possibilidade de milhares de jovens poderem se dedicar à ciência. "Muitos colegas são forçados a se mudar para o setor privado de pesquisa, onde a pesquisa é feita de uma maneira diferente e com propósitos diferentes". 

A maioria dos casos que ele menciona não são uma escolha livre, mas a única maneira possível de seguirem suas carreiras. Na esfera privada, só há espaço para pesquisas que tenham um motivo de lucro privado imediato. A pesquisa básica, como a realizada por Lucas, apesar de sua importância para a sociedade e a ciência em geral, não tem lugar.

Além dessa situação complexa, há incertezas sobre a continuidade do Conicet e dos institutos científicos federais. O corte no orçamento significa que centenas de acadêmicos, que decidiram contribuir e apoiar a Argentina, terão suas carreiras interrompidas. 

"Estou prestes a terminar minha formação de doutorado. Mas aqueles que ainda precisam terminar não sabem se conseguirão. Essa situação, que deixa tantas pessoas sem perspectivas, é muito angustiante. Muitos estão pensando em deixar o país como alternativa. E quanto mais pessoas saem, mais complicado é trabalhar sem o apoio coletivo do processo científico", lamenta.

Edição: Matheus Alves de Almeida