MST 40 anos

Macali, Brilhante e Natalino: a retomada da luta pela terra durante a ditadura que deu origem ao MST 

Famílias que participaram das ocupações históricas entre 1979 e 1981 relembram como a força coletiva venceu a repressão

Brasil de Fato | Ronda Alta (RS) |

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Governo militar reprimiu e tentou conter a permanência das famílias na Fazenda Brilhante - Arquivo

As sementes daquele que mais tarde viria a se chamar Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram plantadas por famílias camponesas que decidiram lutar por terra em plena ditadura militar. 

A partir de 1979, um conjunto de ocupações de fazendas improdutivas em diferentes estados deu corpo ao movimento, fundado oficialmente em 22 de janeiro de 1984. Duas primeiras áreas ocupadas nesse período de efervescência e mobilização, as granjas Macali e Brilhante, no Rio Grande do Sul, tornaram-se marcos na história do movimento, que celebra 40 anos de existência. 

Dois anos mais tarde, em 1981, o acampamento da Encruzilhada Natalino ficaria marcado na história por reunir mais de 500 famílias sem-terra na beira da estrada e enfrentar a repressão da ditadura militar, representada pelo notório torturador Major Curió.

“O MST é fruto da luta social no campo brasileiro durante todo o século 20 e ele foi se organizando depois e no meio da ditadura”, resume a liderança histórica do movimento João Pedro Stedile, em entrevista ao podcast Três Por Quatro, do Brasil de Fato.

“Quando começaram a soprar os ares da redemocratização do país, a classe trabalhadora perdeu o medo e, diante da crise daquela época, começou a se organizar tanto na cidade como no campo”, afirma Stedile, que já em 1979 atuou na organização das famílias que ocuparam Macali e Brilhante. 

O sucesso daquelas lutas recoloca o tema da reforma agrária na ordem do dia. A ideia de repartir terras, encampada pelo presidente João Goulart (1961-64) e combatida com violência pela ditadura desde o golpe de estado em 1964, reencontrava-se com o povo disposto a se organizar em busca de direitos.

Rumo à terra prometida 

O final dos anos 1970 não reviveu a luta pela terra somente para os camponeses. Após séculos de suplício, em toda a região norte do Rio Grande do Sul, indígenas organizaram levantes para expulsar invasores. 

Foi assim na terra indígena no município de Nonoai. Cerca de mil famílias agricultoras foram incentivadas a ocupar aquelas terras através de arrendamento à Funai, e depois terminaram expulsas pelos kaingangs em março de 1978. Milhares de colonos despejados, literalmente da noite para o dia, passam a vagar sem-terra pelas rodovias do estado. 

“Os colonos tinham entrado lá a mando de políticos inescrupulosos que davam direito a ocupar a terra indígena em troca de voto”, relata o padre Arnildo Fritzen – hoje aos 81 anos –, um dos personagens mais reconhecidos por sua atuação na organização da luta pela terra na região. 

“Os indígenas lutaram, seguramente, dez anos para terem sua terra, até que, por fim, eles mesmos tomaram iniciativa e colocaram esse povo para a rua”, relembra o padre. “Aquilo me chamou muita atenção, como uma organização tem força e como um povo desorganizado simplesmente tem que sair.”

Sem experiência prévia, os colonos trataram de se organizar, por necessidade. A repercussão do caso na imprensa fez com que o governo gaúcho tivesse de negociar uma solução para os sem-terra.

A proposta – que se repetiria à exaustão nos anos seguintes por ser conveniente aos planos da ditadura de expansão da fronteira agrícola – era a de reassentar as famílias em terras, também indígenas, no Mato Grosso. Mas boa parte das famílias exigia que a nova terra fosse no Rio Grande do Sul.


Em plena ditadura, famílias expulsas das terras indígenas em Nonoai (RS) organizaram as primeiras ocupações de terra no norte do Rio Grande do Sul / Marco Couto 

Padre Arnildo Fritzen relembra de um trecho da Bíblia que o determinou a ajudar na organização do povo sem-terra, em vez de praticar assistencialismo “que não resolve o problema”. Trata-se de uma passagem de Moisés – que ele lembra ter lido aos sem-terra abrigados em sua paróquia – em que o apóstolo conduz pelo deserto o povo escravizado no Egito em busca da terra prometida, da libertação. 

“Vejam vocês a minha grande surpresa. No que eu li o texto, foi como que um relâmpago. Todos disseram: ‘Esses escravos somos nós, Deus está falando para nós’”, conta. 

“Até que eles concluíram que aquele Moisés era um coletivo hoje, éramos nós.” A partir daquele momento, o padre esteve junto do coletivo, que escreveria a história da luta pela terra no Brasil. 

Ele acompanhou o grupo à Porto Alegre para negociar com o governador e, diante da esperada falta de solução, também esteve na linha de frente quando, na primeira hora de 7 de setembro de 1979, 110 famílias ocupam a granja Macali – uma área de 1,6 mil hectares. 

“Se eu posso recordar o passado, foi uma das cenas mais bonitas que eu vi na minha vida, 42 caminhões lotados de gente na estrada até chegar na Macali”, rememora. 


Após a ocupação, a batalha foi longa para as famílias da Macali e da Brilhante começarem a produzir alimentos / Itamar Garcez

No dia da Pátria, para despistar os militares 

Foi o padre Arnildo quem rezou a primeira missa no local, na manhã da sexta-feira 7 de setembro, feriado nacional, enquanto ainda eram construídos os primeiros barracos de lona. 

“Se imaginava que as forças da repressão estariam envolvidas com os desfiles militares. E sempre depois dos desfiles, eles ganhavam dois ou três dias de folga”, explica João Pedro Stedile sobre a escolha da data. “Foi justamente isso que aconteceu. A polícia só apareceu lá uma semana depois”, conta.

A repercussão na imprensa e a resistência das famílias acampadas foram, segundo Stedile, determinantes para o sucesso da ocupação. “Imediatamente, repercutiram a notícia da ocupação que causou o pandemônio, em plena ditadura.” 

Obrigado a negociar, o governo passou a tratar do processo de assentamento. 

“Essa terra era muito pouco produtiva, porque era tudo campo, barba de bode, coisas assim”, relembra a agricultora Lídia Souza sobre os primeiros dias de acampamento. “Não era fácil para uma mãe”, conta. Hoje com quatro filhos e cinco netos – todos criados com o sustento daquela terra conquistada – ela recorda: “Era um grande aperto, os barracos eram pequeninhos, tinha que botar tudo, dormir todo mundo junto, as crianças.” 


Casal Oliveira dividiu o o barraco de lona com 4 senhoras, 10 homens e 17 crianças no primeiro ano da ocupação da Granja Macali / Pedro Stropasolas

A vez da Brilhante 

Motivados pela experiência bem sucedida das famílias da Macali  que já se organizavam para plantar seu primeiro “lavourão” coletivo , outras 70 famílias ocuparam, exatamente 18 dias depois, a fazenda vizinha, de 1,4 mil hectares, conhecida como granja Brilhante.

“Lá foi mais sofrido, mais repressão, e foi muito mais duro. Fome, miséria e o governo não querendo atender ninguém”, narra o padre Arnildo. A granja Brilhante estava arrendada pelo governo gaúcho ao todo-poderoso presidente da Federação das Cooperativas de Trigo e Soja (Fecotrigo), Ary Dionísio Dalmolin. 

“Medo dos militares a gente tinha, mas só que nós estávamos aguerreando, para nós era uma guerra. Eu falei isso na frente do governador”, conta Lucival Brachak, hoje aos 80 anos, um dos ocupantes da Brilhante que foram a Porto Alegre em busca de alternativas após a expulsão da terra indígena em Nonoai. 

“Para nós era uma guerra, a guerra da fome. A gente não tinha mandioca, não tinha batata, não tinha nada, e a gente dependia de plantar para dar para os filhos”, relembra Brachak. 

Impedidas de cultivar a terra nos primeiros meses de ocupação, as famílias dependeram da solidariedade para suprir as necessidades básicas. 

Terezinha Brachak, mãe de 6 filhos e avó de 6 netos, viveu ao lado de Lucival e das crianças pequenas a incerteza dos dias de frio e chuva nos barracos de lona. “A vida era sofrida, mas a gente sempre dividia, e ainda sobrava para alcançar para quem às vezes não tinha”, conta. 

“A gente se sentia feliz, porque o que eu tinha, a gente tinha, a gente sabia dividir, era assim que a gente vivia.” 


O casal Brachak com a única foto que restou do primeiro barraco erguido na antiga Fazenda Brilhante, em 1979 / Pedro Stropasolas

Reforma agrária, já! 

A luta organizada pela reforma agrária não era novidade no Rio Grande do Sul. As granjas Macali e Brilhante pertenciam à área de um antigo latifúndio, a fazenda Sarandi, já desapropriado em 1962 pelo então governador Leonel Brizola. A luta pela terra naquele momento era protagonizada pelo Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master).

A reforma agrária de Brizola e a prometida por João Goulart dias antes do golpe foram cortadas pela ditadura militar. 

Ainda sem saber, aquelas famílias de agricultores que agora reativavam a luta pela terra, em sua busca por meios de sobrevivência colocavam o debate sobre a necessidade de reforma agrária de volta no cenário nacional.

Estavam sendo plantadas as sementes que se tornariam o MST, hoje presente em 24 estados do país, e responsável pela organização de 400 mil famílias assentadas, além de outras 70 mil acampadas em busca da conquista da terra.

“Nós tivemos o privilégio de, na formação do movimento, conhecer muitas das lideranças que tinham sido líderes dos outros movimentos camponeses que nos antecederam”, afirma João Pedro Stedile, ao citar como exemplos as Ligas Camponesas, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), o Master, as pastorais da Igreja Católica e outras experiências organizativas anteriores à criação do MST, em janeiro de 1974. 

“Quando surge o MST, com essa sigla, ele já vem construindo seu programa e objetivos a partir também das lições históricas desses movimentos que infelizmente haviam sido derrotados, destruídos, inclusive com muitos líderes assassinados, torturados, exilados com a ditadura empresarial-militar.”

 

Padre Arnildo Fritzen participou da reunião que deu origem ao MST em 1984 e se tornaria uma das figuras mais marcantes da luta pela terra na região / Arquivo e Memória do MST

Natalino contra Curió 

A política agrária dos anos de ditadura havia acelerado a mecanização das lavouras e a expansão dos monocultivos, sobretudo de soja. O resultado foi uma multidão de trabalhadores rurais desempregados e um novo ciclo de concentração da posse da terra. 

Na segunda metade da década de 1970, quase 500 mil agricultores perderam emprego na região Sul. As propriedades com mais de 100 hectares já ocupavam 60% da área cultivável. Em algumas regiões do Rio Grande do Sul, as pequenas propriedades representavam 5% do total. 

A grande propriedade se consolidou como uma aliada do autoritarismo político. De 1979 a 1984, o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais denunciou cerca de 1,1 mil conflitos envolvendo cerca de 120 mil famílias rurais. 

A resolução do problema da terra para as famílias da Macali e da Brilhante estava longe de solucionar o cenário desigual da região.

E se os olhos dos coronéis já estavam atentos à organização dos sem-terra na região, arregalaram de vez quando, em janeiro de 1981, famílias iniciaram um acampamento na rodovia vizinha à Macali e à Brilhante, que liga Passo Fundo a Ronda Alta. 

Em poucos dias, eram 500 famílias acampadas em uma extensão de mais de um quilômetro de estrada. Não tardou, a ditadura designou um de seus mais notórios torturadores para parar a mobilização popular. 

O Major Curió licenciou-se da Serra Pelada (PA) e comandou uma intervenção por mais de um mês na Encruzilhada Natalino, entre 31 de julho e 31 de agosto. 

“Ele tentou comprar as lideranças, essa foi a primeira estratégia dele”, conta a educadora Maria Salete Campigotto, uma das acampadas da Natalino. 

“A segunda foi começar a ameaçar: ‘se vocês não quiserem ir para o Mato Grosso ou para a Bahia, vão embora, porque nós vamos passar um trator de esteira, derrubar os barracos e quem estiver dentro nós enterramos junto’”, relata. 


Anos mais tarde, Curió (à direita) se tornaria o primeiro réu, no Brasil, devido a crimes cometidos por agentes do Estado na ditadura. Respondeu por assassinato, tortura e ocultação de cadáveres na Guerrilha do Araguaia. / Arquivo e Memória do MST

Padre Arnildo novamente, estava lá, ao lado dos que lutavam. Em sua visita diária ao acampamento, passou a ter de encarar Curió, que também fazia questão de se colocar ao lado do religioso durante as missas. “Para entrar eu tinha que ir lá na central do comando dele e ele queria saber o que que eu ia fazer, com quem ia falar e por quê.” 

Curió passava com tratores pela estrada, levantava poeira e sujava a água para consumo das famílias. “Ele fez várias torturas, que vamos precisar de dias para contar tudo”, assevera o padre.

“Eles começaram a dar banho nos cavalos e soltar esterco dentro das nossas fontes de água”, relata Campigotto. 

“E aí no meio começou a morrer criança”, lamenta Arnildo. “Cada criança que morria, refletíamos no coletivo sobre por que tudo isso acontece, para as pessoas entenderem que estávamos no caminho, mas que nós temos adversários que querem a morte, não querem a vida.” 

“A mística religiosa foi sem dúvida o que sustentou toda luta para enfrentar o Curió”, conclui o padre. 

Ao final da intervenção, metade das famílias havia resistido no local. Outra parte aceitou migrar para o Mato Grosso.


Boletim Sem Terra denunciava à população a morte de crianças no acampamento Encruzilhada Natalino por negligência do Estado / Arquivo e Memória do MST


Em maio de 1981, primeira edição do Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra denunciava situação precárias das famílias no Encruzilhada Natalino / Arquivo e Memória do MST

 A luta se expande 

Em outubro de 1983, Campigotto e outros companheiros conquistam a terra sonhada com a criação do assentamento Nova Ronda Alta. 

“Nós passamos uma resistência muito grande, e com muito apoio”, relata Campigotto ao destacar o papel da igreja, de acadêmicos e dos sindicatos. “Já tínhamos o apoio desses sindicatos, que começavam a ser sindicatos autênticos, não mais aqueles sindicatos apelegados, mas já tomados por pessoas que pensam em uma sociedade diferente”, relata ela.

“A Encruzilhada Natalino abre uma visão muito grande da importância da luta pela terra”, explica. “Inclusive, nossas pessoas, do próprio acampamento, foram trabalhar nas favelas de São Paulo, do Rio de Janeiro, discutindo a importância da luta pela terra”, conta a professora, que há 40 anos se dedica a construir a educação dentro do MST. 

Através das palavras de Campigotto, das famílias de Macali, Brilhante, Natalino, e de tantas outras ocupações que aconteceram naqueles anos, a luta pela reforma agrária — e por justiça social — voltou à boca do povo, cresceu e perdurou sob a bandeira do MST.


Moradora e professora no Acampamento Encruzilhada Natalino, Campigotto hoje é coordenadora do Instituto Educar, uma parceria entre o MST e a UFFS / Rodrigo Chagas

A efervescência da luta pela terra narrada nesta reportagem foi o contexto que permitiu a criação do movimento, em janeiro de 1984. 

Conhecedora profunda dos 40 anos de história do MST e dos anos que antecederam a criação do movimento, a educadora Campigotto usa da sua experiência para lançar um olhar ao futuro. “Enquanto houver gente sem terra, nós não podemos parar, esse é o nosso foco. Enquanto tiver terra acumulada, nós não podemos parar.” 

“Se são 30, 40 ou 50 anos eu não sei, não vou estar lá, mas precisamos continuar, por que nossa luta vai além da luta pela terra, é a luta da justiça social, é a luta para que se elimine a fome deste país, a luta para que tenhamos igualdade. É por isso que eu acho que o movimento tem muitos e muitos anos pela frente”, esperança. 


Já assentada em Ronda Alta, Campigotto continuou a lecionar para as crianças sem terra / Terra para Rose/Tete Moraes

Edição: Matheus Alves de Almeida