Distrito Federal

Racismo ambiental

Catadores de recicláveis, alvo de despejo pelo GDF, ficam desabrigados horas antes de temporal

Ocupação fica no Setor Noroeste, um dos bairros mais caros de Brasília localizado a 11 km do Palácio Central

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Moradoras da ocupação de catadores de lixo, Raimunda Nonato (à direita) ao lado de Claudete Alves Amorim, com seu bebê de 2 anos - Camila Araujo

Catadoras e catadores de recicláveis que moram em uma ocupação urbana no setor Noroeste, localizado a 11 km do Palácio do Planalto, foram alvo de uma nova operação de despejo pelo Governo do Distrito Federal (GDF), horas antes do temporal que atingiu Brasília na noite desta sexta-feira, 9 de fevereiro. 

“O governador não se sensibiliza com as crianças, nem com os idosos e ou com o sofrimento de moradores da ocupação do Noroeste”, afirmou Raimunda Nonato, conhecida como Joelma, liderança comunitária do acampamento. No período da tarde, em conversa com o Brasil de Fato DF, ela contou que em 2023, uma criança teve os pés e as mãos amputados após contrair uma pneumonia durante um outro despejo.

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Não é a primeira vez que as famílias da ocupação de catadores são despejadas. Sem terem para onde ir, a situação se repete todas as vezes: eles começam a desocupar antes mesmo da chegada dos tratores, para guardar as tábuas dos barracos e alguns móveis, e voltam a armar as casas no local em seguida.

O GDF declarou que "desobstrui área pública no Noroeste". Segundo matéria veiculada pela Agência Brasília, "71 barracos precários em madeirite e lona" foram "desconstituídos". "Agora, durante o feriado de Carnaval, a Secretaria da Proteção da Ordem Urbanística do DF (DF Legal) e a Polícia Militar farão o monitoramento da área para evitar que haja reocupação até a retomada da ação", diz o informe.

Em visita à ocupação antes do despejo, o deputado distrital Gabriel Magno (PT) que acompanha a situação das famílias, junto com os deputados Erika Kokay (PT), Fábio Félix (PSOL) e o presidente da Câmara Legislativa Wellington Luiz (MDB), declarou que a Casa Civil, do Governo Federal, chegou a ligar para o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), para convencê-lo de suspender a operação. 26 famílias que moram ali serão contemplados pelo programa Minha Casa Minha Vida no bairro Sol Nascente, com data prevista para deslocamento em 15 de abril, e que outras 600 poderão ser destinadas ao bairro Itapoã e São Sebastião. 

“Mas o governador não se comoveu, num momento que é agravado pelo surto de dengue e muita vulnerabilidade. Preferiu o trator”, afirmou Magno. 


GDF afirmou, por meio da Agência Brasília, que 'desobstrui área pública no Noroeste' / DF Legal

Segundo o chefe da Casa Civil, Gustavo Rocha, que esteve à frente das negociações para a retirada, "o GDF não deixou essas famílias desassistidas, ofertando benefícios e serviços socioassistenciais, bem como a garantia dos estudos”. Os ocupantes do local e a 1ª Vara da Infância e da Juventude foram informados da operação 72 horas antes.

Ainda segundo o GDF, a Secretaria de Educação (SEEDF) realizou 69 cadastros de crianças e adolescentes das famílias do assentamento, afirmando que os estudantes "serão contemplados com nova matrícula ou transferência escolar e que será disponibilizado transporte escolar àqueles que precisarem".

Já a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), segundo o órgão, acompanhou a remoção das famílias que viviam na ocupação do Noroeste para dar o suporte socioassistencial necessário. Para minimizar perdas e danos, foram disponibilizados, desde quarta, 8, auxílio em situação de vulnerabilidade temporária, no valor de R$ 408, e o benefício excepcional para pagamento do aluguel, com parcelas de R$ 600 por até seis meses, a partir da saída da ocupação.

Ingrid Samara, 23, moradora da ocupação, mãe de uma criança de cinco anos, afirma que não recebeu nenhum tipo de auxílio e que não foi contemplada com apartamento ou auxílio aluguel. Claudete Alves Amorim, 25 anos, mudou-se para a ocupação com 2 anos de idade e vive sua vida toda lá. Mãe de um menino de 2 anos, ela aguardava o despejo na tarde de ontem temendo a chegada da chuva. “Não sabemos como vamos ficar”.

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Nas redes sociais, Fábio Félix escreveu notícias “desesperadoras” das famílias despejadas após o temporal. “Pessoas agora sem lona e sem nada. No meio de uma enxurrada de água e junto com várias crianças e adolescentes”.

 

O temporal que atingiu Brasília no início da noite provocou alagamentos em diversos pontos da Asa Norte e de outras regiões administrativas. Locais como a tesourinha da quadra 110 e o Eixão Norte, na altura da 112, registraram carros debaixo d’água, e na Universidade de Brasília, salas de aulas e laboratórios ficaram alagados. 

A deputada distrital Erika Kokay também esteve no acampamento na tarde de ontem e disse, em vídeo divulgado nas redes sociais, que tentou articulações com o GDF para que não houvesse a operação de despejo e que o problema fosse resolvido sem prejuízo para as crianças. “É o governo da doença, da morte e do 'desabrigamento'. Com tantas crianças sem moradia, vão ter dificuldade de se manter nas escolas. Um espetáculo de horror.”

 

Em 13 de outubro de 2023, uma segunda-feira, a Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal (DF Legal), chegou a iniciar um processo de desocupação. Por volta das 13 horas, a ação iniciada às 9h foi interrompida depois que a 1ª Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal determinou a suspensão do despejo.

A decisão liminar expedida pelo juiz Evandro Neiva de Amorim naquele momento considerou o risco no desalojamento de crianças e adolescentes do local de moradia, com impacto nos estudos, já que a maioria deles está matriculada em escolas da região. Dessa vez, não houve tal consideração. A reportagem solicitou um posicionamento do GDF e a matéria será atualizada quando e se houver resposta.


Sem local para armazenar coleta, moradores da ocupação convivem com o lixo / Camila Araujo

A Defensoria Pública do DF acompanha a situação há anos. De acordo com o defensor Ronan Figueiredo, o trabalho do órgão é de tentar barrar o despejo judicialmente e, caso não seja possível, acompanhar a operação para evitar violações de direitos humanos. “A gente já parte do pressuposto que é uma operação que vai violar direitos humanos”, disse. 

Cerca de 400 metros do acampamento de catadores, dentro de uma mesma porção de vegetação nativa na Área de Relevante Interesse Ecológico Cruls (ARIE Cruls), indígenas Guajajara, da aldeia Tekohaw, organizaram o “Bloco da Resistência Indígena”, temendo que a ação do Governo do Distrito Federal chegasse até ali.

O Noroeste, que se tornou um dos bairros mais caros do DF com a chegada de empreendimentos imobiliários na região, abriga ao menos 6 aldeias indígenas e um acampamento de catadoras e catadores há mais de 20 anos.

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Edição: Flávia Quirino