HISTÓRIA

Entenda como foi a participação dos EUA no golpe de 64 (e o que ainda pode ser revelado)

A partir do começo da década, país temia que Brasil se tornasse socialista e influenciou em nossa política

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Kennedy: desde 1961 o presidente dos EUA atuou para que o Brasil não seguisse o exemplo de Cuba ou China - Reprodução

Durante mais de uma década, falar sobre envolvimento dos EUA no golpe que levou os militares ao poder em 1964 era considerado mera teoria da conspiração. Tudo mudou em 1976, quando foi revelado o conteúdo de uma comunicação entre o embaixador estadunidense no Brasil entre 1961 e 66, Lincoln Gordon, e seu governo.

"Tanto eu quanto meus assessores acreditamos que nosso apoio deve ser dado aos golpistas para ajudar a impedir um desastre grande aqui – que pode transformar o Brasil na China na década de 1960", dizia a carta, datada de 27 de março de 64, quatro dias antes do golpe.

Esse foi o primeiro fio de um novelo que não para de ser desenrolado e que explica como nossa última ditadura (1964-85) contou com a conivência e apoio dos Estados Unidos. A carta de Gordon é evidência da operação Brother Sam, que usaria forças militares dos EUA para apoiar a derrubada do governo João Goulart a favor de golpistas como o general Castelo Branco.

Discutidos com os presidentes dos EUA John F. Kennedy e Lyndon Gordon, os planos não precisaram ser postos em práticas – o governo Jango caiu sem resistência, como explicam historiadores estudiosos do tema ouvidos pelo Brasil de Fato.

Estratégias dos EUA antes de 64

"É possível apontar ações dos EUA no Brasil que antecederam o golpe e buscavam afastar a possibilidade de avanço do socialismo", explica Marcus Dezemone, da Universidade do Rio de Janeiro. "O primeiro foi a 'Aliança Para o Progresso', de 61."

"O projeto injetou dinheiro para fazer propaganda americana, principalmente em governos estaduais de oposição, como Carlos Lacerda (Guanabara, atual estado do Rio de Janeiro), Magalhães Pinto (Minas Gerais) e Ademar de Barros (São Paulo). O objetivo era fortalecer a oposição, para que Jango chegasse às eleições de 65 fraco, sem condições de eleger sucessor ", diz ele.

"A segunda medida foi financiar o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que produzia conteúdos anticomunistas, como documentários transmitidos em cinemas antes do filme principal, trazendo temas como O Problema Cuba, que procuravam impedir a 'cubanização' da nossa sociedade", explica. O IBAD produziu, além de filmes, peças para rádio, TV e novelas.

"O dinheiro que os EUA colocaram nas nossas eleições parlamentares de 1962 foi maior do que o valor gasto na campanha presidencial deles do ano anterior, vencida por Kennedy. A ideia foi eleger legisladores pró-EUA que fariam oposição a João Goulart."

A quarta frente investiu no chamado soft power (poder de influência): "Políticos e pessoas influentes da sociedade como Mário Covas e Ulysses Guimarães eram convidados para irem aos EUA com tudo pago, para verem as instituições funcionando, construir uma  mentalidade favorável ao país", diz Dezemone. O pesquisador lembra que a estratégia foi repetida no início do século, tendo como convidados integrantes do Judiciário, entre eles figuras como Sérgio Moro e Deltan Dallagnol.

Ele diz que o último elemento foi a aproximação entre os militares dos dois países, após a Segunda Guerra Mundial, "quando nosso Exército abandonou o modelo francês como referência organizacional, afinal eles haviam sucumbido rapidamente aos alemães".

"Criou-se nos anos 1940 a Escola Superior de Guerra, com grande intercâmbio com os EUA, que formou os oficiais que tomaram o poder em 1964", diz Dezemone.

O pesquisador estadunidense James Green, uma das maiores autoridades no tema, disse ao Brasil de Fato que os EUA "julgaram errado Jango, pensando que ele estaria interessado em uma revolução socialista, apenas porque ele sabia como lidar com políticos de esquerda".

"Decidiu-se aí o apoio a um golpe, que ocorreria um pouco depois, em abril ou maio de 64. Mas quando os acontecimentos se precipitaram em 31 de março, Gordon [o embaixador no Brasil] interviu para que o então presidente dos EUA, Lyndon Johnson, reconhecesse imediatamente a legitimidade do novo governo", disse ele.

"Os EUA iriam mandar uma força militar para apoio aos golpistas caso houvesse resistência, guerra civil. Mas não foi necessário e o país passou a negar qualquer envolvimento", explica.

Os EUA abriram então as torneiras financeiras para nossos governos militares, ajudando na construção de grandes obras, como a rodovia Transamazônica e a ponte Rio-Niterói, e levando a um aumento de nossa dívida externa.

Simultaneamente, a agência de espionagem dos EUA, a CIA, ajudou a depor inúmeros governos na América Latina e a aprimorar os aparelhos repressivos nesses países, sob a justificativa de combate ao comunismo.

Mudança de clima

As negações ocorreram até 1976, quando o mencionado primeiro fio do novelo foi puxado à luz. Mas por que àquela época?

"Por vários motivos", explica Green. "Havia uma politização por causa da guerra do Vietnã, o surgimento de uma nova geração crítica à política externa dos EUA e uma crise moral após as revelações de corrupção do governo Nixon, em 1973, com o Watergate."

"Foram eleitos deputados democratas que defendiam que os EUA não deveriam apoiar governos totalitários na América Latina – houve tentativas no Congresso americano de cortar ajuda ao Brasil desde 72 – e  Jimmy Carter, eleito presidente em 76, dizia que um dos critérios para que um país seja reconhecido seria o respeito aos direitos humanos, o que pressionou o governo Geisel a suavizar a repressão no Brasil."

O acadêmico frisa que esse movimento foi exceção na política externa dos EUA e a "normalidade" voltaria em 1980, com a presidência do republicano Ronald Reagan.

Mas mesmo sob a adminstração do cowboy Reagan, a abertura brasileira rumo à democracia e a divulgação do envolvimento estadunidense em nossos assuntos foram movimentos irrefreáveis a partir dos anos 1980.

Fim do novelo?

Desde então, milhares de documentos já foram revelados e há pressão de congressistas estadunidenses – como a democrata Alexandria Ocasio-Cortez – para que outros mais sejam liberados pelo Departamento de Estado do país. James Green é responsável pelo programa Opening Archives (Abrindo os Arquivos, em português), conduzido em parceria pelas universidades Brown e estadual de Maringá (PR), que publica de forma organizada os documentos que já vieram à luz.

"Já disponibilizamos 55 mil documentos, faltam ainda 20 mil e estamos pedindo a liberação de outros 1,5 mil", explica o acadêmico, que se diz, entretanto, pouco otimista quanto a revelações bombásticas.

"Não acredito que vamos descobrir nada de muito inesperado. Ainda assim, mesmo que não revelem nada de mais, é importante em nome da transparência", diz ele.

Dezemone vai pela mesma linha. "Não creio que a gente tenha mais alguma revelação que irá mudar a interpretação geral da historiografia. Mas começaram a surgir, por exemplo, documentos que reconhecem que o governo dos EUA tinham conhecimento da tortura como prática institucionalizada, e podemos ter nos próximos anos mais documentos nesse sentido", diz ele.

Futuro

O historiador brasileiro faz a ressalva de que sua profissão se sai bem melhor em interpretar o passado do que prever o futuro. Ainda assim, mostra certo otimismo quanto à ideia de que a aliança entre militares de Brasil e Estados Unidos não é algo inquebrantável, destinado à eternidade.

"Essa é apenas uma construção histórica, nem sempre foi assim e, consequentemente, não tem por que continuar para sempre. O Exército Vermelho venceu o nazismo no campo de batalha, os maiores exércitos do mundo são comunistas."

"Não há incompatibilidade natural entre forças armadas e comunismo", diz Marcus Dezemone.

Edição: Nicolau Soares