Coluna

Apartheid palestino e sobrevivência em Gaza: uma história de violência e inferiorização

Palestinos deslocados da área próxima ao hospital al-Shifa, chegam ao campo de refugiados de Nuseirat no centro de Gaza - AFP
A mídia, por sua vez, é um importante ator político-econômico, não uma ferramenta imparcial

*Por Aline Herrera Vasco, Bruna Muriel, Jéssica Batista, Isabella Tardelli Maio e Michele Ferreira de Oliveira

Em recente discurso, Lula evidenciou estar de acordo com a denúncia, feita pela África do Sul, de que Israel estaria cometendo crime de genocídio com os seus contínuos ataques à Faixa de Gaza. Neste artigo, exploramos as raízes históricas do conflito, a lógica da desinformação em andamento e a inferiorização vivenciada pelo povo palestino que, como outros do Sul Global, veem suas demandas serem sistematicamente desconsideradas pelas instituições políticas e jurídicas hegemônicas.

No dia 19 de fevereiro observamos a mídia brasileira entrar em polvorosa após o presidente Lula realizar a seguinte afirmação: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”. Com este discurso, Lula escancarou o seu apoio à África do Sul, que em 29 de dezembro apresentou uma ação à Corte Internacional de Justiça (CIJ) acusando o Estado de Israel de estar cometendo crime de genocidio com os seus contínuos ataques à faixa de Gaza.

Conforme nos lembra Gilberto Maringoni (2024), quando o chefe da nona economia do mundo faz uma afirmação como esta, não estamos diante de um fenômeno meramente retórico. Ela obriga os atores políticos a se posicionar, “impacta governos, partidos e a opinião pública global. Aqui o verbo é o gesto!”. E gestos se fazem absolutamente necessários, considerando que o conflito, prestes a completar sete meses, já ceifou milhares de vidas. De acordo com o Departamento de Saúde de Gaza, desde outubro de 2023, 21 dos 35 hospitais da região foram fechados, além de terem ocorrido mais de 270 ataques israelenses a instituições médicas e a destruição de 45 ambulâncias. Israel perdeu cerca de 1.139 pessoas, enquanto na Faixa de Gaza o número de mortos ultrapassa 28.064.

Em 07 de outubro de 2023 o mundo assistiu o ataque de integrantes do grupo armado “Movimento de Resistência Islâmica”, o Hamas, ao Estado de Israel. Após atravessarem as fronteiras da Faixa de Gaza, os membros da organização - identificada como terrorista pelos Estados Unidos, Japão e países da União Europeia - mataram, feriram e sequestraram centenas de cidadãos do país judeu. Após o ataque, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, declarou guerra ao grupo. Mas sem se restringir a este, desde então, bombardeia constantemente hospitais, escolas, padarias, caminhões com suprimentos, supermercados e farmácias da Faixa de Gaza, matando crianças, mulheres e civis.

As origens do conflito só podem ser compreendidas, entretanto, a partir de uma digressão histórica que avance no tempo, chegando até o ano de 1917, quando o governo britânico expressou seu apoio à construção de um Estado judeu permanente na região da Palestina através da Declaração Balfour. Endossado pela Liga das Nações, organização que antecede a criação das Nações Unidas, a construção da antiga pátria na região foi impulsionada sem considerar a relação da população árabe com o seu território. A tensão entre árabes e colonos judeus se intensificou nas décadas seguintes e, em 1947, em uma tentativa de solucionar a questão, a ONU votou a favor da divisão da Palestina em dois Estados, um árabe e outro judeu. A criação do Estado de Israel não foi bem recebida na região, como era de se esperar, e em 1948 as forças do Egito, Síria, Líbano, Iraque e Jordânia atacaram o território recém-criado, inaugurando a primeira da série de guerras e conflitos árabe-israelenses que adentraram o século 21, culminando no atual conflito na Faixa de Gaza.

É importante destacar que para além do apoio da Grã-Bretanha, Israel recebeu - e ainda recebe - grande suporte dos Estados Unidos da América. Foi o país que mais recebeu cumulativamente recursos estadunidenses desde o fim da Segunda Guerra Mundial, cerca de US$ 260 bilhões, dos quais mais da metade foi designada como auxílio militar. Além disso, os EUA utilizam reiteradamente o poder de veto que possuem, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, barrando sistemáticamente as tentativas de aplicação de sanções a Israel pela ocupação ilegal a partes do território palestino.

Todo este histórico impede que a guerra na Faixa de Gaza seja considerada inesperada. Inclusive porque a tensão entre as autoridades palestinas e israelenses já vinha escalando ao menos desde 2007, à medida que o Hamas se fortalecia na região e, concomitantemente, o movimento de bloqueio à Gaza era impulsionado pelo governo israelense sob apoio da comunidade internacional. Nesse cenário, o controle israelense na Faixa de Gaza evoluiu para uma total vigilância do território por vias aéreas, terrestres e marítimas, com o monitoramento da entrada e saída de indivíduos, serviços e bens, incluindo o fluxo de itens básicos para a sobrevivência humana, como água, alimentos, medicamentos e energia.

Há décadas os moradores da Faixa de Gaza vivenciam condições insalubres e precisam da autorização de Israel para ações cotidianas, como estudar e trabalhar. A opressão sofrida cotidianamente, assim como do esgotamento das alternativas políticas e pacíficas de solução do conflito é, inclusive, uma das razões para o fortalecimento do Hamas.

Segundo informações publicadas pela Anistia Internacional, em 2008, 30% da população de Gaza não tinha acesso à água potável, 80% dependia de ajuda internacional e 90% da indústria local já tinha colapsado. Em 2022, 15 anos após o início do bloqueio, a UNRWA relatou que a mesma fatia de 80% da população ainda dependia de ajuda internacional, 64,4% vivia em insegurança alimentar e 81,5% dos indivíduos estavam abaixo da linha de pobreza nacional.

Estes dados evidenciam a amplitude do drama do sistema de apartheid existente na região. Segundo o relatório Israel’s Apartheid (2022, p.13) publicado pela Anistia Internacional, o conceito pode ser entendido “como um sistema de tratamento discriminatório prolongado e cruel por um grupo racial de membros sobre outro com a intenção deste último ser controlado”. A Human Rights Watch faz coro à denúncia: “as autoridades israelenses já ultrapassaram essa linha [de ocupação] e hoje estão cometendo os crimes contra a humanidade de apartheid e perseguição”. Por se tratar de uma política sistemática de punição coletiva estabelecida como um crime de guerra pela Convenção de Genebra de 1949, portanto, o Estado de Israel deveria ser punido como tal.

É importante destacar que, para além da guerra tradicional, uma guerra de narrativas está em curso, através do qual notícias falsas ou distorcidas são divulgadas com o intuito de influenciar a opinião pública. Embora não seja uma novidade, a prática vem ganhando cada vez mais espaço nos embates da política internacional.

Cresce vertiginosamente o número de pessoas que carecem de compreensão sobre os temas que estão em voga, os divulgam e debatem intensamente, alimentando a “onda de desinformação”. O objetivo, aqui, é menos contribuir para a reflexão sobre os fenômenos, e mais angariar likes de seguidores nas redes sociais. O diretor-executivo do Centro de Combate ao Ódio Digital, Imran Ahmed, destaca o papel da busca indiscriminada e antiética por seguidores e da falta de controle das plataformas sobre o conteúdo, o que implica inclusive a recomendação por parte do algoritmo para que perfis falsos sejam seguidos.

A mídia, por sua vez, é um importante ator político-econômico, não uma ferramenta imparcial cujo objetivo limita-se a informar. Entretanto, ao invés de apresentar e debater as raízes do conflito na Faixa de Gaza, diversas agências de informação, especialmente estadunidenses e britânicos, tratam a guerra a partir de uma perspectiva a-histórica e acrítica. Mas a superação das tensões que duram mais de um século depende da demolição das barreiras invisiveis do racismo e da discriminação, e a mídia pode contribuir, neste sentido, para uma maior compreensão mais aprofundada sobre as reivindicações do povo palestino por reconhecimento e respeito. Sintetizadas no lema “Palestina Livre”, tais reivindicações estão vinculadas tanto à resistência ao colonialismo de ocupação perpetuado por Israel, quanto ao colonialismo enquanto colonialidade (Anibal Quijano, Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina, 2005). Ou seja, a resistência à sistemática subalternização que este povo, e outros do sul global, sofreu e sofre no âmbito da modernidade capitalista e colonial.

Edward Said, na obra “Orientalismo”, explica o processo de invenção desta imensa região, à leste da Europa, tão exótica quanto inferior. Esta inferiorização, entre outras razões, permitiu que as reivindicações do povo palestino fossem desconsideradas - ou, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos (Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes, 2004), “produzidas como não existentes” - pelas instituições jurídicas, políticas e científicas hegemônicas que, em última instancia, tratam palestinos/as, africanos/as e indígenas pelas lentes do menos humano, do atraso e da ignorância.

A declaração de Lula que abre este texto, foi realizada durante a entrevista coletiva de encerramento de sua viagem à Etiópia. Certamente muitos dos etíopes que estavam por ali sentiram-se contemplados pela fala do presidente, assim como os cidadãos dos países árabes e de outros da África subsaariana, muitos dos quais habituados a serem tratados pela comunidade internacional pelo viés da sub/desumanização vivenciada, também, pelos palestinos de Gaza e outros tantos grupos, povos e nações do Sul Global.

A longa duração do conflito, no lugar de aventar soluções, parece esgotá-las. Se antes Gaza era “a maior prisão a céu aberto” do mundo, hoje, aos olhos do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, é o “maior cemitério a céu aberto, um cemitério para dezenas de milhares de pessoas e também um cemitério para muitos dos mais importantes princípios do direito humanitário”. O povo palestino é titular do direito inalienável à autodeterminação e, neste sentido, a sua luta por libertação nacional encontra respaldo no direito internacional. Qualquer solução que vá contra isso é ineficaz e injusta.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Lucas Estanislau