Assista ao vídeo

Cuba: por que Fidel Castro demorou 2 anos para declarar a revolução socialista?

"Playa Girón determina, de certa forma, o caráter socialista da Revolução Cubana" , afirma historiador

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
16 de abril de 1961, Fidel Castro - Cubadebate

Pouco mais de dois anos se passaram desde o triunfo da Revolução Cubana, em janeiro de 1959, antes que Fidel Castro declarasse o caráter socialista do movimento. A declaração ocorreu no crítico mês de abril de 1961, em meio à tentativa de invasão por mercenários para derrubar a revolução: a Invasão da Baía dos Porcos.

Foi em 16 de abril de 1961 a primeira vez que Fidel Castro se referiu à Revolução Cubana como uma revolução socialista. A primeira revolução socialista triunfante na América Latina e no Caribe que sacudiu a História para sempre. Naqueles dias dramáticos, o povo humilde de Cuba decidiu enfrentar até as últimas consequências sua decisão de ser livre. Escolhendo o único caminho possível para a independência: o socialismo. 



Em entrevista ao Brasil de Fato, o historiador Raúl Rodriguez, diretor do Centro de Estudos Hemisféricos e dos Estados Unidos (CEHSEU), afirma que, desde o início, a Revolução Cubana se propôs a alcançar "um verdadeiro processo democrático e a independência em relação às potências estrangeiras". 

"A Revolução Cubana é uma autêntica revolução social, produto de um processo histórico que data da época da luta anticolonial contra a Espanha e da luta contra o que podemos chamar de neocolonialismo por parte dos Estados Unidos", explica Raúl Rodriguez. 

"Os primeiros anos da Revolução foram anos de busca. Onde diferentes ideias e matizes sobre qual modelo seguir convergiram na luta. Sempre com um olho no programa Moncada, isto é, que as transformações que sempre tivessem o objetivo de alcançar maior justiça social. Eram transformações que tinham como objetivo reduzir a pobreza e alfabetizar a população. Mas para atingir esses objetivos do ponto de vista social, era necessário mudar a estrutura econômica".

Durante o processo revolucionário, diferentes organizações se uniram na luta contra a ditadura de Fulgencio Batista, que governou o país entre 1952 e 1959. No entanto, essas organizações tinham maneiras diferentes de entender o processo revolucionário e como a luta contra a ditadura deveria ser realizada. 

Por um lado, destacava-se o Movimento 26 de Julho, que havia realizado o ataque ao Quartel Moncada em 1953. O movimento era liderado por Fidel Castro, junto com seu irmão Raúl, e algumas das figuras mais famosas da Revolução Cubana: Camilo Cienfuegos, Ernesto Che Guevara, Vilma Espin e Haydée Santamaría, entre outros.

Também teve enorme importância o Directorio Revolucionario 13 de Marzo, uma organização estudantil clandestina fundada em 1956 por José Antonio Echeverría, então presidente da Federación Estudiantil Universitaria. Assim como o Partido Socialista Popular - que era o nome adotado pelo Partido Comunista Cubano - uma organização mais próxima das posições defendidas pela URSS.

"Apesar de suas diferenças, todas essas organizações buscavam uma mudança necessária na evolução histórica de Cuba em direção a uma sociedade mais inclusiva, com justiça social e uma posição externa que não fosse de submissão aos ditames do imperialismo norte-americano", afirma Rodriguez.

Segundo explica, essa luta por maior independência e justiça social rapidamente encontrou resistência e rejeição tanto das potências imperialistas quanto das próprias classes dominantes de Cuba. Como resultado, o processo revolucionário foi armado com a ideia de que "sob as condições do hemisfério ocidental e da estrutura cubana, somente o socialismo poderia garantir a independência de Cuba". Uma ideia que Rodríguez defende como válida até hoje.   

De acordo com ele, essa relação entre "independência nacional" e "transformação da estrutura social e econômica" se deve ao fato de que "tanto a burguesia cubana quanto os setores dominantes tinham uma enorme dependência dos Estados Unidos, o que os tornava uma espécie de sócio menor na estrutura de dominação imperialista, incapaz de romper sua dependência sem romper sua própria estrutura de propriedade".  

Cuba foi um dos últimos países a conquistar a independência do império espanhol na América Latina e no Caribe. A independência política só foi conquistada em 1898, e imediatamente sofreu a intervenção dos Estados Unidos. A partir desse momento, Washington estabeleceu uma forte presença de tutela política e econômica na ilha. Inclusive, durante a ditadura de Batista, a ilha ficou conhecida como "o cassino dos Estados Unidos".

Foi somente após o triunfo da Revolução em 1959 que a pequena ilha do Caribe, localizada a apenas 145 quilômetros dos Estados Unidos, começou a avançar rumo à sua independência.

Contra-golpe

Após a queda da ditadura de Fulgencio Batista, a Revolução foi confrontada com atos de terrorismo e sabotagem para derrubá-la, atos que se multiplicaram sob os auspícios dos Estados Unidos. A violência contrarrevolucionária chegou a tal ponto que aviões estadunidenses bombardearam plantações de açúcar, o principal setor econômico de Cuba, e chegaram a disparar contra civis, ao sobrevoar Havana.

"Os primeiros anos da Revolução foram anos repletos de momentos muito tensos e críticos. Foram anos em que foi exercida muita violência contra a Revolução, o que resultou na invasão da Baía dos Porcos", diz Rodriguez.

A invasão da Baía dos Porcos - também conhecida como invasão de Playa Girón - foi uma operação militar na qual cerca de 1.500 mercenários, treinados e financiados pela CIA, tentaram invadir Cuba em abril de 1961. O plano havia sido ordenado diretamente pelo presidente dos EUA, Dwight D. Eisenhower, um ano antes, e depois continuado por John F. Kennedy.

Na maior parte, esses grupos contrarrevolucionários estavam integrados por jovens universitários de classes privilegiadas ligados a grupos católicos de direita, antigas famílias de proprietários de terras e à estrutura militar de Batista. 

A operação de invasão começou o 15 de abril de 1961. Nas primeiras horas daquela manhã, oito aviões B-26 dos EUA bombardearam aeroportos militares em diferentes cidades cubanas. 

Horas depois, o embaixador cubano Raúl Roa tomou a palavra na sede da ONU em Nova York, declarando aos presentes: "Um clamor unânime está sacudindo toda Cuba hoje, ressoando em nossa América e reverberando na Ásia, África e Europa. Minha pequena e heroica pátria está reencenando a clássica luta entre Davi e Golias. Soldado dessa nobre causa, na frente de batalha das relações internacionais, permita-me espalhar esse clamor no austero areópago das Nações Unidas. Pátria ou Morte, venceremos!" 

Roa acusou formalmente os Estados Unidos diante do mundo de patrocinar uma invasão contra Cuba. Mas , à época, essa acusação foi negada por Washington. Cinquenta anos depois, em agosto de 2011, documentos da CIA foram desclassificados, detalhando a participação de Washington nas operações. 

No dia seguinte aos bombardeios, uma multidão se reuniu na Necrópole Cristóbal Colon, o cemitério mais importante de Havana. Milhares de pessoas de todas as partes se reuniram para chorar e se despedir de seus mortos assassinados nos atentados. 

Alfredo Guevara, fundador do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), registrou com sua câmera o choro desconsolado de um grupo de mulheres: o instante de um abraço em busca desesperada de consolo.  As imagens acompanham a peregrinação de luto de uma multidão que acompanha os caixões desde os degraus da Universidade de Havana até o local do enterro. 

A poucos metros da entrada do cemitério, Fidel sobe a um improvisado palco. Não era a primeira vez que a emblemática esquina da rua 12 com a 23 testemunhava a dor de um povo. Rodeado por milicianos, o rosto de Fidel não escondia sua tristeza. Observa alguns jovens abrindo caminho em meio à multidão, aproximando-se com o que parece ser um pedaço de madeira. 

"Vítima do bombardeio criminoso, o miliciano Eduardo Garcia escreveu o nome Fidel com seu próprio sangue antes de morrer", diz a voz em off do noticiário da ICAIC, enquanto as imagens o mostram recebendo o pedaço de madeira com seu nome. Ali, sob o sol escaldante de Havana, Fidel pronuncia um incendiário discurso que é transmitido ao vivo pelo rádio. 

"O que os imperialistas não podem nos perdoar é o fato de estarmos aqui. E que fizemos uma revolução socialista debaixo do nariz dos Estados Unidos. E nós defendemos esta Revolução Socialista com esses fuzis", exclamou diante dos aplausos e gritos da multidão armada com fuzis belgas e tchecos. 

Foi a primeira vez que Fidel proclamou o caráter socialista da Revolução. Naquele mesmo dia, ele ofereceria uma das definições mais importantes da Revolução Cubana.

" Companheiros trabalhadores e camponeses: esta é a revolução socialista e democrática dos humildes, com os humildes e para os humildes. E por essa Revolução dos humildes, pelos humildes e para os humildes, estamos prontos para dar nossas vidas". 

Apenas algumas horas depois, às 3h15 da madrugada do 17 de abril, 1.500 mercenários, treinados e financiados pela CIA, desembarcaram em Playa Girón. Fidel, junto com os principais líderes da Revolução, viajou até a região para lutar ao lado de centenas de voluntários. 

Após 48 horas de luta, as milícias revolucionárias cubanas (formadas principalmente por camponeses e trabalhadores voluntários) conseguiram prender e capturar cerca de 1.189 invasores. Playa Girón foi a primeira grande derrota militar dos EUA na América Latina e no Caribe.


Fidel na invasão da Baía dos Porcos / Fidel Soldado de Ideas

A vitória de Playa Girón

"Playa Girón determina, de certa forma, o caráter socialista da Revolução Cubana. Foi um momento decisivo que definiu claramente pelo que Cuba estava lutando, tanto contra a antiga classe dominante cubana quanto contra o imperialismo norte-americano", reflete Raúl Rodriguez.

A partir desse momento, a Revolução passou por vários períodos em sua busca pela construção do socialismo, sempre tendo em mente os pilares que moldaram o processo desde o início: justiça social, acesso igualitário à educação, saúde e segurança cidadã.

Rodriguez afirma que "não houve um modelo fixo de 1959 até agora. Houve ajustes e muitos momentos de debate interno sobre como dar continuidade a esse processo. E isso tem sido uma constante ao longo das décadas de 60, 70, 80 e até hoje."

Seis anos após a queda de Batista, em 1965, as três organizações que lideraram o processo revolucionário e lutaram em Playa Girón - o Movimento 26 de Julho, o Diretório Revolucionário e o Partido Socialista Popular - uniram-se para formar o Partido Comunista de Cuba (PCC).

"O processo de institucionalização da Revolução foi muito longo. Durante os 15 anos após Playa Girón, a constituição de Cuba continuou sendo, embora com algumas emendas, a de 1940. Uma constituição que era muito avançada para a época, mas que não tinha caráter socialista. A primeira constituição que definiu o caráter socialista da Revolução Cubana foi adotada em 1976, por meio de um processo de consulta popular do qual participaram amplos setores da população", explica Rodriguez.

O tempo da Revolução

O discurso de 16 de abril de 1961 não apenas proclama o caráter socialista da Revolução, mas também oferece uma das definições mais importantes do próprio significado do socialismo a ser construído.

Para Fidel, a Revolução é um processo que deve ser sempre reconstruído: diariamente, diante de cada ato e em diferentes contextos. Como processo histórico, ela não pode ser reduzida a um evento.

Dessa forma, Fidel entende que o momento da revolução é, por definição, sempre um momento crítico. A revolução é, acima de tudo, a irrupção histórica das massas que tomam em suas próprias mãos as rendas de seu próprio destino.

Por isso, a definição de Fidel evoca os excluídos como os criadores desse épico histórico. A Revolução é, acima de tudo, um projeto que deve ser realizado. Um projeto dos humildes, feito pelos humildes e cujo fim são os próprios humildes. O líder da revolução cubana não confunde razões de Estado e de governo com o Projeto Histórico. Por mais necessárias e importantes que sejam essas razões.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho