MEMÓRIA E VERDADE

Operação Marumbi: a maior marca da ditadura militar no Paraná

Foram presas e torturadas mais de 100 pessoas acusadas de reorganizar o PCB no estado

Curitiba (PR) |
Presos e condenados na Operação Marumbi, da esquerda para a direita: Antonio Brito, Diogo Afonso Gimenes, Osiris Boscardin Pinto, Ildeu Manso Vieira, Mario Gonçalves Siqueira e Narciso Pires. - Foto: Arquivo Pessoal

O período do regime militar, que esteve vigente entre os anos de 1964 e 1985, estabeleceu no Brasil um ciclo político marcado pelo autoritarismo e pelo desrespeito aos direitos constitucionais. No Paraná, a maior marca da ditadura militar se deu especialmente no ano de 1975, na Operação Marumbi: a operação mais violenta do estado.

Iniciada em 12 de setembro de 1975, as ações de repressão duraram cerca de um mês e tinham o propósito de prender pessoas acusadas de rearticular o Partido Comunista Brasileiro (PCB) no Paraná. A ação abrangeu pelo menos 12 cidades: Londrina, Paranaguá, Curitiba, Mandaguari, Ponta Grossa, Maringá, Arapongas, Apucarana, Rolândia, Guarapuava, Cianorte e Paranavaí. 

A Operação Marumbi prendeu e torturou mais de 100 pessoas, desse total, 65 foram indiciados, dando início ao Inquérito Policial-Militar nº 745 (IPM 745). Através dessa documentação, pesquisadores identificaram a construção de um discurso que enfatizava o crime político cometido pelos militantes do PCB e a tentativa de mostrar o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) como um partido infiltrado pelo comunismo.

“A Operação Marumbi é o resultado do fortalecimento da oposição à ditadura nos anos 70. Em 1974 a economia estava começando a entrar em colapso, havia o começo da inflação, do desemprego, o arrocho salarial e isso capitalizou um crescimento do MDB, o partido de oposição à ditadura. O MDB ganhou boa parte das cadeiras na votação para deputado no Paraná e isso despertou os piores temores da ditadura”, conta o pesquisador e historiador Luiz Gabriel da Silva. “Havia também o apoio do PCB aos candidatos do MDB. A ditadura interpretou isso como uma infiltração comunista, eles achavam que o PCB tinha se rearticulado e que iria tomar o poder”, acrescenta.

No Paraná, muitas pessoas foram submetidas a torturas devido às suas posições políticas divergentes daqueles que estavam no mando autoritário. Além disso, não eram apenas os militantes que sofriam com o autoritarismo, mas também suas famílias e amigos, que se sentiam indefesos e ameaçados por aqueles que acreditavam defender a ordem social e política do país.

Impacto em toda a família


Na última fileira está Ildeu Manso Vieira e três de seus filhos, abraçados durante um dia de visita ao presídio do Ahú. / Foto: Arquivo Pessoal

Ildeu Manso Vieira, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro, teve uma trajetória repleta de fugas motivadas pela sua militância, sempre acompanhado de sua família. Em 1971, com sua esposa, Nair, e quatro filhos, se mudam para Curitiba. Nesse período, toda a família sofre intensamente com a repressão do regime militar.

“É impressionante como um revolucionário coloca a sua família em risco, não se cria família sob a ditadura”, relembra Julio César Manso, filho de Ildeu.

Vieira foi preso em 14 de setembro de 1975, no marco da Operação Marumbi. “Ainda me lembro daquele dia, ele poderia ter fugido, mas preferiu avisar um camarada que estava na rodoviária. Na verdade era uma emboscada e ele e meu irmão foram foram presos, encapuzados e levados para o Quartel da Rui Barbosa”, conta Julio.

No Quartel do 15º Batalhão do Exército, localizado na praça Rui Barbosa, Ildeu Manso Vieira e seu filho mais velho, que na época estava com 17 anos, sofreram tortura física e psicológica. “Meu irmão conta que via meu pai caído no chão, eles tinham a ideia de transformar indivíduos em subsistência. Ameaçavam meu pai e diziam que toda família seria torturada e ele seria o responsável”, diz Julio.

No início da Operação Marumbi, o estado do Paraná recebeu torturadores profissionais de São Paulo e do Rio de Janeiro, que tinham como objetivo ensinar métodos mais eficazes de tortura aos policiais paranaenses. Pesquisadores e ex-presos políticos relatam que esses indivíduos atuavam na suposta Clínica Marumbi, localizada no centro de Curitiba.

“Após a prisão, entraram na nossa casa e nos mantiveram em cárcere privado. Vasculharam tudo, todas as páginas de todos os livros, mas não encontraram nada. Nessa época minha mãe não permitia material que pudesse ser prova contra a família dentro de casa”, fala.

No dia seguinte, o filho mais velho, Ildeu Manso Vieira Júnior, foi liberado do quartel e retornou para casa. “Quando ele chega em casa diz: ‘papai não volta mais, ele está morto’. Neste momento, a gente chorou e se abraçou, os policiais riram e falaram ‘quem mandou ser comunista’”, conta o filho.

Perseguido pela ditadura militar


Narciso Pires em comício relâmpago na Rua XV, em 1979, durante Campanha da Anistia. / Foto: Arquivo Pessoal

Outro militante político preso e torturado durante a Operação Marumbi foi Antônio Narciso Pires de Oliveira. Sua trajetória tem início em Apucarana, no Centro-Norte do Paraná, onde mantinha uma intensa militância no movimento estudantil.

Após algumas prisões e acostumado a viver na clandestinidade, Narciso é convidado a integrar o PCB e ajudar na reorganização do partido no Paraná, no ano de 1974. “Embora fosse crítico ao PCB, acabei aceitando porque não existia mais organizações de esquerda, todas tinham sido trucidadas e a esquerda havia aderido ao MDB”, conta Narciso Pires, ex-militante.

Posteriormente, foi convidado a estabelecer uma gráfica para o partido em Apucarana, destinada à impressão do jornal comunista “Voz Operária”. “Os equipamentos da época eram muito grandes e pesados, então busquei uma alternativa e inventei um novo aparelho de impressão, no qual imprimi duas versões do jornal. Este foi o motivo pelo qual fui condenado”, afirma Narciso.

O equipamento criado, conforme Narciso, teria um custo atual de aproximadamente 100 reais e era capaz de imprimir as edições em duas cores, vermelho e preto. Uma verdadeira revolução para a rápida impressão e distribuição do jornal.

A polícia política da época começou a procurar e perseguir todos os militantes de Apucarana que tinham relação com o PCB e a distribuição do jornal, mas Narciso conseguiu avisar alguns colegas e fugir. Contudo, seu irmão foi preso e torturado com a seguinte mensagem: ou Narciso se entregava ou eles iriam prender e torturar toda a família. 

Ao se apresentar para a polícia, ele foi sequestrado e levado clandestinamente, com os olhos vendados, para o Quartel de Apucarana. “Lá fui torturado durante toda a noite e transferido para Curitiba, onde fui mantido em um local clandestino, supostamente na Clínica Marumbi. Cheguei de olhos vendados e nunca soube exatamente onde estava”, revela Narciso.

Torturas

Durante a Operação Marumbi, os tipos de tortura mais relatados foram o pau-de-arara, os choques elétricos, o telefone, os afogamentos, a caveira do dragão e injeções de substâncias químicas na corrente sanguínea, para que os presos políticos ficassem em estado de sonolência. 

“As torturas nessa época foram brutais, foi a operação mais violenta da história do Paraná. É importante destacar que isso acontece em um momento de contradição, porque o governo Geisel havia dado início à suposta abertura lenta, gradual e segura do Brasil”, observa o pesquisador Luiz Gabriel.

A primeira fase policial do IPM 745 foi marcada por longos períodos de incomunicabilidade dos presos políticos. Nesse momento, os militantes não conseguiam sequer ser avistados por seus advogados, não tinham banho de sol e sofriam com violações sistemáticas dos direitos humanos.

“Fomos divididos em dois grupos, os que tinham curso superior foram levados para o Quartel da Polícia Militar e os que não tinham foram para o Presídio do Ahú. Eles tinham medo que pudéssemos influenciar os presos comuns”, conta Narciso.

Ele lembra que a diferença entre as prisões era muita. Enquanto no Ahú os presos podiam circular livremente pelo pátio e ter banho de sol constante, no quartel era raro ver a luz.

“Nós ficamos em uma cela úmida e fechada. Banho de sol era só quando a tropa de choque estava disponível. Eles vinham, faziam um círculo e nós ficávamos rodeados de cachorros, fuzis e metralhadoras, tudo para impedir que fugíssemos”, lembra Narciso.

Durante a fase policial, a incomunicabilidade e o uso recorrente de práticas de tortura eram estratégias comuns. Os depoimentos dos presos políticos eram obtidos em um ambiente de extrema tensão e ameaça, levando-os a assinar declarações mesmo que discordassem do conteúdo.

“Eu era torturado e dizia para mim mesmo: ‘eu aguento mais um pouco, aguento mais um pouco’ e assim fui aguentando. Tenho certeza que foi isso que me deu condições de suportar”, conta.

Julio Manso, filho de Ildeu, relembra o momento em que reencontrou o pai após muitos dias de incomunicabilidade e tortura. “Nós fomos para o Quartel da Polícia Militar para um dia de visita, lembro que eram muitos familiares esperando seus pais, maridos, irmãos. Eu estava muito ansioso pelo reencontro e fui dar uma volta pelo quartel. Na parte de baixo, perto de onde havia um campo de futebol, avistei um pavilhão grande, subi nos muros e olhei pela janela, dali eu vi todos os presos juntos e andando como se fossem zumbis, sem cabelos, desnutridos e sem energia, parecia um campo de concentração. Eram prisioneiros barbarizados pelo tempo e a tortura”, lembra Julio.

“Meia hora depois eles aparecem um por um, foi um encontro brutal. Meu pai tinha um terror na cara, muito abatido, magro e desnutrido, conversava conosco achando que tudo estava sendo gravado”, revela.

A ação penal


Em 1977, na prisão do Ahú, sentados: Ildeu Manso Vieira, Narciso Pires e Afonso Gimenes; em pé: Osiris Boscardin Pinto, Mario Siqueira, Antonio Brito Lopes. / Foto: Arquivo Pessoal

Apesar das evidências de tortura durante a fase policial, os inquéritos seguiram com seu curso legal e foram encaminhados às auditorias militares. Este relatório destacava as acusações e o nível de responsabilidade de cada indivíduo envolvido no suposto crime contra a segurança nacional. Assim, dava-se início à segunda fase do processo: a ação penal, a ser conduzida perante o Poder Judiciário.

“Depois de serem condenados pela justiça, os militantes vão para o presídio do Ahú. E o presídio dá, de certa forma, um alívio porque é onde as pessoas podem receber visitas constantes das famílias. O diretor do presídio nessa época era Eliseu Furquim, uma pessoa que, embora ele fosse um agente da repressão, atuava respeitando os direitos humanos”, destaca o pesquisador Luiz Gabriel da Silva.

Na segunda fase do processo, a maioria dos presos políticos da Operação Marumbi ressaltaram em depoimento o uso de violência e brutalidade que os feriram fisicamente e emocionalmente. Vários advogados de defesa solicitaram a anulação do processo devido às alegações de tortura de seus clientes nas instalações do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e do Departamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI).

Entretanto, a sentença proferida pela Auditoria da 5ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM) sobre os envolvidos no IPM 745 não encontrou fortes fundamentos nos argumentos da defesa.

O processo foi finalizado no dia 6 de outubro de 1977 e resultou na condenação de 16 pessoas e na absolvição de 45. Entre os condenados estava Ildeu Manso Vieira, por três anos, e Antônio Narciso Pires de Oliveira, por dois anos.

“Foram três anos visitando meu pai no presídio todos os sábados. Esses encontros foram maravilhosos para mim e essenciais para minha militância, a forma que eles se organizavam no coletivo era muito forte e me trouxe muitos aprendizados”, conclui Julio Manso.


Banho de sol dos preso políticos, em 1977. / Foto: Arquivo Pessoal

Ildeu Manso Vieira faleceu nos anos 2000, vítima de um câncer no intestino. “Dois anos antes de morrer ele escreveu um livro sobre as sequelas da tortura, durante a escrita descobriu que a primeira causa de morte daqueles que foram torturados era o câncer no intestino, mas na época ele ainda não tinha o seu diagnóstico”, diz o filho emocionado.

Antônio Narciso Pires de Oliveira nunca se afastou na militância e hoje, com 74 anos, coordenado o grupo Tortura Nunca Mais e mantêm um dos maiores acervos de documentos relacionados à ditadura militar no Brasil.

Fonte: BdF Paraná

Edição: Pedro Carrano