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Como garimpeiros ilegais usam a internet de Elon Musk para escapar da fiscalização

Starlink se tornou vital para os invasores em terras Yanomami, de onde o governo tenta expulsá-los há mais de um ano

Brasil de Fato | Londrina (PR) |
Garimpo no rio Uraricoera, na Terra Indígena Yanomami - Bruno Kelly/Amazônia Rea/HAY

Em vídeo publicado na rede social TikTok, uma influenciadora do garimpo mostra instrumento de trabalho vital: uma antena de internet via satélite.

“Aqui, essa internet que nós usamos é da Starlink. Ela sozinha localiza o sinal via satélite. Hoje em dia, a tecnologia está muito avançada, tá muito fácil para você ficar conectado”, afirma a jovem no vídeo, em tom descontraído. 

Esse é um exemplo de como a internet da Starlink, do bilionário Elon Musk, potencializou a mineração clandestina na Amazônia ao levar conexão rápida e móvel a locais remotos.

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O Ibama afirmou ao Brasil de Fato que a popularização do serviço nos garimpos ilegais dificulta a fiscalização ambiental e facilita a logística garimpeira, com transporte de alimentos, combustível e outros insumos voltados à atividade ilegal. 

“Todo acampamento, todos os barcos, todas as dragas [de garimpo] têm antena Starlink. É amplamente difundida essa internet dentro do garimpo”, disse o coordenador de operações do Ibama, Hugo Loss.

“A gente tira a antena e corre para a mata” 

Só no mês de março de 2024, o Ibama apreendeu 25 antenas da Starlink. Todas estavam em garimpos ilegais. Depois da apreensão, os equipamentos ficam armazenados com o órgão ambiental e não podem ser reutilizados, já que são vinculados ao CPF do comprador. As antenas que não podem ser apreendidas, por estarem em locais muito remotos, são destruídas pelos agentes federais.

No vídeo publicado no TikTok, a influenciadora garimpeira explicou por que a Starlink é tão importante para a categoria:

“A gente não pode mais ficar sem internet por causa da operação [de fiscalização ambiental]. A gente tem que estar ligado. Tem que estar participando dos grupos, tem que estar informado. Porque, quando vai ter operação, a gente é avisado. E a gente corre. A gente pega a antena [da Starlink], tira as coisas mais importantes e [se esconde dentro da] mata”, postou a mulher, que se apresenta como cozinheira de um garimpo. 

Com a Starlink, as operações de fiscalização tiveram a eficácia diminuída, segundo o coordenador de operações do Ibama. 

“Uma vez que a fiscalização pousa num garimpo, essa informação corre para todos os outros garimpos simultaneamente e em tempo real. Isso faz com que eles consigam fazer a retirada dos equipamentos. Muitas vezes eles jogam os motores e as escavadeiras hidráulicas na água para evitar que a gente faça a destruição”, relatou Hugo Loss.

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“Buru subindo sentido garimpo” 

O Brasil de Fato localizou uma troca de mensagens em um grupo virtual privado de garimpeiros ilegais que exemplifica como os mineradores trocam alertas sobre operações do Ibama. No áudio transcrito abaixo, um homem informa sobre a chegada do “buru”, gíria para helicóptero.

“Buru subindo sentido garimpo, buru subindo para o garimpo, para cá para o [Rio] Uraricoera”, diz o áudio que circulou em vários grupos de WhatsApp aos quais a reportagem teve acesso.

Uraricoera, rio citado no áudio, é uma das áreas mais predadas pelo garimpo na Terra Indígena (TI) Yanomami, que permanece um reduto de extração ilegal de ouro, mesmo com a operação do governo federal que tenta há mais de um ano liberar a TI de invasores. 

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Antenas da Starlink são mais portáteis do que a concorrência 

Quando o Ibama chega, os garimpeiros fogem levando os objetos mais importantes, que são o ouro extraído ilegalmente e as antenas da Starlink. Os equipamentos fabricados pela empresa de Musk são muito mais leves e portáteis do que os fornecidos pelo principal concorrente no mercado de internet na Amazônia, a norteamericana Viasat. 

No vídeo, a influenciadora garimpeira do TikTok mostrou que a antena da Starlink não está fixada ao solo com parafusos, conforme orienta o fabricante. O motivo, segundo ela, é tornar a fuga mais ágil. 

"Se colocar todos os parafusinhos aqui, gente, quando chegar a operação [de fiscalização ambiental], vai ser muito difícil para tirar, [vai ter que] ficar desparafusando. Então é só feito assim, e na hora que a operação chega, a gente tira aqui rapidinho, bota no braço e sai correndo”, publicou a garimpeira. 

Outra estratégia é pintar as antenas, que são brancas, com a cor preta. A intenção é dificultar que elas sejam avistadas pelos helicópteros da fiscalização.

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Especialista defende bloqueio de sinal

O garimpo ilegal provoca uma crise humanitária na Amazônia, espalhando doenças e gerando conflitos e mortes em aldeias indígenas.

Na guerra da Ucrânia, Elon Musk já declarou ter cortado o sinal da Starlink, para interromper um ataque ucraniano a uma frota naval russa. Na Faixa de Gaza, a Starlink foi impedida pelos Estados Unidos e por Israel de fornecer o sinal de internet aos palestinos.

O Instituto Socioambiental (ISA) defende que o mesmo seja feito no Brasil, como afirmou ao Brasil de Fato o geógrafo e pesquisador Estevão Senra. 

“Em tese, a mesma estratégia usada em outros países poderia ser empregada aqui: identificar quais são esses pontos que estão dentro do perímetro da Terra Indígena e quais não são associados às demandas comunitárias. A partir disso, você já identificaria os pontos clandestinos e suspenderia o sinal desses pontos”, apontou Senra. 

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Musk não cumpriu promessa de internet em escolas 

A Starlink chegou ao Brasil em 2022 por meio de uma parceria entre Musk e o governo de Jair Bolsonaro. Na época, o bilionário anunciou que iria disponibilizar a conexão para 19 mil escolas sem internet na Amazônia. O Brasil de Fato conseguiu confirmar que apenas três escolas estaduais no Amazonas receberam sinal de internet por meio da parceria.

Procurado, o Ministério das Comunicações disse apenas que não tem contratos com a Starlink.

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Crescimento acelerado 

A Starlink cresce de forma muito mais acelerada no Brasil do que no resto do mundo. Em 2023, o tráfego de internet da empresa triplicou em todo o planeta, mas aumentou 17 vezes no Brasil, segundo a Cloudflare, empresa americana que monitora o uso global da internet.

Um levantamento da BBC Brasil mostrou que a empresa tem clientes privados em 90% dos municípios da Amazônia.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lamenta que Musk continue a expandir os negócios, enquanto o garimpo ilegal devasta comunidades indígenas.

“Eu [se referindo a Elon Musk] tenho muito dinheiro, então posso fazer o que quiser, onde eu quiser. Não me importa se a minha ferramenta tecnológica [Starlink] está causando mortes ou favorecendo crimes organizados. Eles vão continuar. Portanto, acredito que realmente precisamos abordar isso. Denunciar. Dizer que é uma coisa criminosa”, defendeu Gilmara Fernandes, missionária do Cimi em Boa Vista (RR).

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Outro lado

O representante da Starlink no Brasil, Vitor Urner, disse ao Brasil de Fato que não está autorizado a falar em nome da empresa. A Anatel não respondeu se tem planos para bloquear o sinal da Starlink em garimpos ilegais. 

Edição: Rodrigo Chagas