Coluna

Dez anos de 'inverno' reacionário

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No Brasil há uma situação reacionária desde 2016, mas a correlação de forças já estava evoluindo muito mal desde 2014 - Foto: Joedson Alves/ Agência Brasil
Enquanto a extrema direita não for derrotada, não se abrirá uma nova situação

Quando o mar está calmo qualquer um pode ir ao leme

Provérbio popular português

Vivemos tempos turbulentos. O maior erro da esquerda brasileira, tanto dos partidos mais moderados como das correntes mais radicais, nos últimos dez anos, foi a subestimação da extrema direita. Quem não sabe contra quem luta não pode vencer. O maior peso da fração do agronegócio foi desvalorizada, o alcance de radicalização da maioria da classe média desconsiderada, a fratura da classe trabalhadora assalariada com contratos depreciada, a expansão da influência das igrejas evangélicas neopentescostais desdenhada, e o lugar da liderança de Bolsonaro desacreditada. A diminuição do perigo se expressou até em polêmicas herméticas e na dificuldade de caracterizar o bolsonarismo como neofascista. 

A vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022, a despeito de muito apertada, foi sobre valorizada, relativizando a composição de um Congresso Nacional ainda mais reacionária do que aquele eleito em 2018, além da vitória da extrema direita para governador nos três Estados do triângulo estratégico do Sudeste. A questão é: por quê?

O objetivo de uma análise de conjuntura é facilitar um posicionamento. Não é nunca simples, porque estamos sempre em um momento no fluxo do tempo, em que se manifestam tendências e contratendências, mas em graus distintos. Estamos entre o que foi e o que será. Os "pés" estão no presente, mas a cabeça deve operar em um nível de abstração mais elevado. Não devemos nos deixar iludir pelos nossos desejos. O futuro é uma aposta sobre as lutas que virão, mas está em disputa. Não é possível atribuir sentido ao presente sem considerar de onde viemos. O passado tem muita força. Portanto, uma interpretação do período.

Um dos mal entendidos mais comuns sobre os critérios de periodização é o esquematismo. O maior perigo é a simplificação exagerada, e não o contrário. Este erro consiste em resumir ou reduzir as escalas de classificação às medidas de temporalidades lineares: épocas seriam mais longas do que etapas, e etapas seriam, por sua vez, mais longas do que situações, e, finalmente, as conjunturas seriam as fases mais breves. Em suma, longa duração, média duração, curta duração e prazos breves. 

Este tipo de esquema não é o melhor. Perde-se o critério marxista que analisa a realidade a partir da luta de classes. Sendo este o critério de avaliação, a avaliação deve estar orientada pela identificação e calibragem das vitórias e derrotas. Mas o estudo da correlação de forças não deve ser um alibi para evitar táticas que exigem correr riscos. Não é possível uma estratégia de esquerda sem correr riscos. Não é possível lutar para mudar o mundo sem correr riscos.  

Imaginar que é possível mudar a vida para as amplas massas trabalhadoras e populares sem considerar a reação dos inimigos de classe seria uma ingenuidade imperdoável. Um exemplo: independente do juízo que cada um de nós possa ter sobre o governo do PSUV e Nicolás Maduro na Venezuela, mais ou menos crítico, parece evidente que não é razoável desconsiderar que o país estve sob um terrível cerco imperialista ininterrupto implacável, e não caiu. Subestimar o que a burguesia "histórica" venezuelana está disposta a fazer, depois de tudo o que articularam em associação com o imperialismo norte-americano desde o golpe militar fracassado de 2002 é um absurdo. Considerar que a os capitalistas venezuelanos têm algum compromisso com um regime de democracia liberal, quando não escondem que querem privatizar a PDVSA não é, minimamente, razoável. Mas há um padrão nas hesitações da esquerda: a subestimação da ferocidade contrarrevolucionária do inimigo de classe.

Mesmo no Brasil, um país incomparavelmente mais complexo, se os governos liderados pelo PT tivessem anulado as privatizações, por exemplo, ou se tivessem feito uma reforma tributária que penalizasse a burguesia com impostos sobre o patrimônio ou as heranças, podemos prever as possíveis represálias. Por muito menos, o governo Dilma Rousseff foi vítima de mobilizações de massas reacionárias, e o impeachment foi aprovado no Congresso Nacional sob um pretexto jurídico fake de "bicicletas fiscais". 

O trabalho teórico exige a construção de esquemas, evidentemente, mas eles devem ser elásticos, quando a questão é a interpretação das etapas. O drama do nosso tempo presente para a esquerda reformista ou revolucionária é que lutamos em uma etapa em que o espaço para reformas diminuiu abruptamente, e para revoluções quase desapareceu. O avança não são as forças do mundo do trabalho, mas os neofascistas.

As fases ou períodos histórico-políticos não têm um padrão regular. O sentido ou dinâmica contraditória de épocas, etapas e situações convivem em simultaneidade dentro de amálgamas instáveis, que são o próprio movimento de transformação. O trabalho de periodização está entre os mais difíceis, porque resume em uma síntese explicativa uma infinidade de análises, sem as quais não teria qualquer significado. 

A desigualdade dos tempos que se alternam em simultaneidade é quase uma regra, e não uma exceção. O esforço de síntese, sem o qual não há como procurar explicações bem sustentadas é, portanto, complicado. Enfrentemos o problema de frente: assim como ocorre a confusão de mudança de etapa com a mudança de época, existe também o perigo de uma má interpretação das relações entre etapas e situações. As épocas históricas são definidas por critérios, essencialmenmte, objetivos, portanto, econômico-sociais, e são, necessariamente, períodos relativamente longos. Uma época pode ter medidas seculares. 

Poderíamos, portanto, afirmar, aparentemente, que a polêmica sobre época seria o terreno onde as margens de erro seriam, em princípio, menores. Ledo engano. A discussão sobre a natureza de época está entre as querelas mais "insolúveis", não só entre marxistas, como, aliás, a atual discussão sobre o significado da lenta decadência dos EUA ilustra à exaustão. 

O capitalismo vai conhecer na terceira década do século 21 um mini-boom impulsionado pela nanoteccnologia, micro-chips, inteligência artifical, robotização, bio-tecnologias? Vai conseguir abrir o caminho para uma vertiginosa transição energética? A Troika será capaz de absorver a China no centro do poder munidal por uma via de negociações? Ou caminhamos para um novo crack financeiro em função do super-endividamento de famílias, empresas e Estados? As guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza sinalizam um acirramento de conflitos no sistema internacional de Estados?    

Quais seriam então as grandes dificuldades? Ocorre que a aceleração dos tempos históricos, um dos traços mais importantes do século 20 exige uma perspectivação relativa, sem a qual todo esforço de periodização se perde. Existem anos que valem por décadas na evolução político-social de uma sociedade. Na mesma proporção, existem décadas que, pela intensidade dos confrontos na luta de classes, correspondem a períodos imensuráveis, em termos comparativos. 

As etapas são fases essencialmente político-sociais, e não têm uma duração "padrão" que possa ser previamente estipulada, porque correspondem a um período em que a correlação de forças entre revolução e contrarrevolução se manteve estável, portanto, a refração deste processo central se expressou, também, na relação entre Estados no sistema internacional. 

As etapas podem se prolongar por décadas, como ocorreu na etapa de 1945/1989, ou podem ser muito mais curtas como entre 1917/23. A etapa aberta entre 1917/1923 foi a do triunfo da revolução de outubro, e se fechou com a derrota da revolução alemã. A etapa aberta entre 1923/1944 foi a da vitória do estalismo na URSS e do nazi-fascismo na Itália e Alemanha. A etapa aberta em 1944/1989 foi a da derrota do nazi-fascismo, e da vitória das revoluções anticapitalistas nos países da periferia, e se encerrou com o triunfo dos processos de restauração capitalista. A etapa aberta em 1989/1991 pela restauração capitalista, se estendeu até 2014, e foi a das revoluções políticas democráticas, ou dos fevereiros recorrentes, concentrados na periferia, com a queda de ditaduras na Indonésia e Filipinas. O fim das ditaduras na América Latina tinha já ocorrido nos anos oitenta. Depois do fim da URSS os EUA aceitaram testar regimes democrático-liberais na Ásia e até em alguns países africanos. 

Paradoxalmente, podemos ter, também, situações políticas nacionais mais longas do que etapas históricas mundiais. E é preciso não esquecer, que o sentido de uma etapa no cenário internacional ou regional pode ser contraditório com a dinâmica da situação nacional de um país. 

Assim, a título de exemplo, como um exercício do emprego destas categorias, poderíamos dizer que em 1964, abriu-se no Brasil uma etapa contrarrevolucionária, que permaneceu até o final dos anos 70. Ao longo dessa etapa, ocorreram várias mudanças de situação. Essas mudanças se traduziram em transformações no regime político: bonapartismo reacionário entre 64 e 68, depois bonapartismo contrarrevolucionário ou semi-fascista até 1974/76. Em 1977/78,  abriu-se uma situação pré-revolucionária no interior de uma etapa contrarrevolucionária. Poder-se-ia objetar que não há dialética que explique esse paradoxo. 

Mas este aparente enigma, o sentido assimétrico do signo entre etapa e situação, é o que permite explicar a mudança de etapas. Esta explicação resulta não só dialeticamente coerente, mas satisfatória, se considerarmos que situações transitórias são, por definição, muito contraditórias. E a situação aberta entre 1978/82 reúne os fatores "clássicos" de uma situação transitória. Nesse sentido, preparava as condições para uma mudança de etapa que estava por se dar, mas que poderia ter sido bloqueada, porque os processos estão sempre em aberto, e as dinâmicas podem ser interrompidas no curso das lutas.

A ditadura militar, a forma do regime, entrou em lenta agonia, vindo finalmente a sucumbir, com as Diretas em 1984. Claro que a visão retrospectiva facilita a análise: se alguém escrevesse em 1981, no calor dos acontecimentos, depois da derrota duríssima da greve no ABC, quando das intervenções do governo Figueiredo nos sindicatos de bancários e metalúrgicos, que o Brasil estava em uma situação pré-revolucionária, seria considerado um alucinado. Mas essa situação pré-revolucionária não se fechou, apesar dos muitos reveses, e das distintas conjunturas que se sucederam, e isso explica que em 1984 tenha sido possível a explosão das Diretas, com milhões nas ruas. 

Em conclusão: as situações podem ser aferidas pelas mudanças nas formas do regime, embora não se esgotem nessa variável. Ela é, todavia, o elemento mais objetivo dos deslocamentos das relações de forças. Uma avaliação dos desencontros dos tempos históricos e políticos exige a compreensão destes aparentes anacronismos: só podemos explicar a irrupção de milhões para a ação política no afã de derrotar a ditadura, se considerarmos as alterações moleculares que foram se avolumando nos anos anteriores.

Esse é o sentido das situações transitórias, que é preciso insistir, podem ser bloqueadas, não são irreversíveis. A perspectiva histórica nos oferece uma régua da responsabilidade da esquerda. No Brasil há uma situação reacionária desde 2016, mas a correlação de forças já estava evoluindo muito mal desde 2014, como ficou claro nas eleições. Enquanto a extrema direita não for derrotada, não se abrirá uma nova situação. Se a extrema direita viesse a vencer na Venezuela, depois do que foi a vitória de Milei na Argentina, e considerando uma possível eleição de Trump nos EUA, todos aliados de Bolsonaro, temos uma medida do que estará em jogo no Brasil.  

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires