Cyberbullying, aliciamento, exploração sexual, desafios são alguns dos crimes cometidos contra crianças e adolescentes nas redes sociais. O mais recente envolveu a morte da menina Sarah Raíssa Pereira de Castro, oito anos, que teria inalado desodorante, conduta impulsionada por um desafio divulgado pelo TikTok.
Com o objetivo de investigar crimes como esse e outros praticados nas redes e plataformas digitais, a deputada federal Maria do Rosário (PT/RS) protocolou, na semana passada, pedido de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), na Câmara dos Deputados. Das 171 assinaturas necessárias, até o momento foram registradas 104.
Conforme destaca a parlamentar, as redes sociais e plataformas digitais passaram a ser utilizadas não apenas como meios de interação e informação, mas também como instrumentos para a disseminação de discursos de ódio e estímulo à violência.

De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, desenvolvida pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic.br) e o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br), 83% de crianças e adolescentes de 9 a 17 anos tem perfil em alguma rede social. Já como usuárias da internet, o percentual chega a 93%. O WhatsApp é a plataforma mais usada, seguida do Instagram, TikTok e Youtube.
Segundo o levantamento, 29% dos usuários de 9 a 17 anos relataram ter passado por situações ofensivas, que não gostaram ou as chatearam na internet, 12% das crianças e dos adolescentes responderam que foram tratadas de maneira ofensiva, e 42% que viram alguém ser discriminado online. Além disso, 30% afirmaram que entraram em contato com alguém na internet que não conheciam pessoalmente. Entre os adolescentes entre 15 a 17 anos o percentual é de 43%.
Conforme aponta a pesquisa, no que se refere a permissão de fazer sozinha o uso da internet, os percentuais variam de acordo com a idade, mas, na média, 72% da população de 9 a 17 anos tem permissão para o uso de redes sociais. Dos entrevistados 62% responderam que tem permissão para postar vídeos e fotos em que aparecem. O Cetic.br entrevistou 2.424 crianças e adolescentes de 9 a 17 anos e 2.424 pais ou responsáveis entre março e agosto de 2024 em todo o território nacional.

Na avaliação de Rosário, o fácil acesso à internet e às redes sociais sem controle e supervisão deixa as crianças e adolescentes ainda mais suscetíveis e vulneráveis aos perigos e violências que ambientes hostis podem proporcionar. “Para as meninas a situação ainda é mais grave”, aponta a parlamentar.
De acordo com o estudo Além do Cyberbullying: A Violência Real do Mundo Virtual, desenvolvido pelo Instituto Avon em conjunto com a Decode, empresa especializada em pesquisa digital, o assédio nas interações virtuais (38%) e as ameaças de vazamento de imagens íntimas (24%) são as principais formas de violência que mulheres e meninas sofrem na internet. O levantamento aponta que entre 2019 e 2020 foram encontrados mais de 152 mil relatos de violência contra meninas e mulheres, o que corresponde a 87 relatos de violação por dia.
“O objetivo da CPI é bem claro, garantir a proteção integral das nossas juventudes, escutando a sociedade, investigando a atuação de organizações criminosas, examinando a responsabilidade das plataformas digitais e do Estado, e propondo medidas concretas que coloquem a infância no centro das prioridades nacionais, como já determina a Constituição Federal. É urgente compreender e enfrentar os mecanismos que permitem essa violência”, afirma Rosário em entrevista ao Brasil de Fato RS.

Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS: O que motivou a criação da CPI? Quais os objetivos?
Maria do Rosário: Nós vivemos ultimamente uma realidade alarmante com as notícias de crescimento exponencial de crimes cometidos contra crianças e adolescentes por meio das redes sociais. As plataformas digitais vêm sendo utilizadas por grupos organizados para aliciar, manipular e estimular comportamentos violentos, inclusive atentando contra a vida dos próprios jovens, como foi o caso revoltante da menina Sarah Raíssa, vítima de um “desafio” criminoso nas redes. Depois descobrimos que quase 60 crianças e adolescentes tinham sido vítimas fatais de crimes gerados no ambiente virtual no Brasil ao longo de 10 anos. Isso é inaceitável.
O objetivo da CPI é bem claro, garantir a proteção integral das nossas juventudes, escutando a sociedade, investigando a atuação de organizações criminosas, examinando a responsabilidade das plataformas digitais e do Estado, e propondo medidas concretas que coloquem a infância no centro das prioridades nacionais, como já determina a Constituição Federal. É urgente compreender e enfrentar os mecanismos que permitem essa violência.
Que crimes são esses a serem investigados?
São crimes muito graves, que colocam em risco a segurança de nossas crianças, como o aliciamento para desafios perigosos, incentivo à automutilação, cyberbullying, suicídio, estupro virtual e violência psicológica, ameaças, exposição de imagens íntimas das meninas e até mesmo recrutamento por grupos extremistas, entre outros. Em muitos casos, essas violências se iniciam no ambiente escolar e se amplificam nas redes sociais.
A CPI vai investigar como essas práticas se organizam, quem são os responsáveis e de que maneira podemos impedir que novas tragédias aconteçam. Há, inclusive, evidências de que grupos extremistas atuam de forma coordenada nas redes para cooptar jovens e disseminar ódio. Então será necessária uma ação coordenada de muitos agentes institucionais.
Como você analisa a situação dos crimes praticados contra a infância e adolescência?
Infelizmente, a situação é grave e multifacetada, pois o espaço digital, ao invés de ser um ambiente de troca e aprendizagem, se transformou num território fértil para a propagação de violência. A infância e a adolescência são fases extremamente sensíveis do desenvolvimento humano, e os impactos de ataques virtuais, desafios perigosos e discursos de ódio podem ser devastadores.
“O espaço digital, ao invés de ser um ambiente de troca e aprendizagem, se transformou num território fértil para a propagação de violência”
O que estamos presenciando é um fenômeno de naturalização da violência, em que crianças e adolescentes, especialmente as mais vulneráveis, como as meninas, estão sendo expostos diariamente a conteúdos que estimulam comportamentos autodestrutivos ou violentos. Para muitos, a mídia, as telas, chegam antes da escola e, por outro lado, as famílias nunca passaram por educação para uso das redes digitais nem para a visão crítica da mídia.
A série Adolescência, por exemplo, que está sendo muito debatida, mostrou uma escola despreparada para lidar com a linguagem nas redes, com os emojis, que de inocentes passaram a ter conotação de ódio, de misoginia e outros atributos negativos relativos aos estereótipos e construções culturais. Há quase um mundo paralelo e intransponível, que disputa com a sociedade em geral outra forma de sociabilidade e cultura, só que voltado para corroer valores humanos importantes.
Que medidas você considera necessárias para proteção das crianças e adolescentes?
O primeiro passo é ouvir. Ouvir as famílias, educadoras, especialistas e os próprios adolescentes. A CPI tem esse papel, criar um espaço institucional para compreender o que está acontecendo e buscar respostas práticas e eficazes.
Além da investigação profunda, precisamos analisar o papel das redes sociais no monitoramento e moderação de conteúdos, propor políticas públicas de prevenção à violência, fortalecer as redes de proteção nos territórios, a educação digital nas escolas, assegurar apoio psicológico, assim como criar mecanismos que ajudem os pais e mães a orientar e supervisionar seus filhos e filhas, uma educação midiática e de redes.
O que estão acessando? Com o que estão interagindo? Que mensagens são essas que promovem o ódio? O Estado deve estar presente também com marcos legais atualizados para esse novo cenário e toda ação deve ser guiada pelo princípio da prioridade absoluta da infância e adolescência.
“O Estado deve estar presente também com marcos legais atualizados para esse novo cenário”
Qual o papel do governo nessa questão?
O governo tem um papel central e intransferível, que é proteger. É dever do Estado garantir a segurança das crianças e adolescentes, inclusive nos ambientes digitais. Isso significa investir em políticas intersetoriais, fortalecer os conselhos tutelares, ampliar as ações de prevenção e garantir que nenhuma criança esteja sozinha diante de situações de risco. A experiência de iniciativas como o Projeto Sinais, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, mostra que é possível prevenir casos de violência quando se age de forma articulada.
Como os pais podem ajudar na solução do problema?
A família é parte fundamental dessa equação. Mães, pais e responsáveis precisam acompanhar de perto o que seus filhos estão acessando na internet, que dialoguem sobre o ambiente virtual e estejam atentos a mudanças de comportamento, pois podem ser indicadores dos riscos a que estão sendo expostos.
Mas não podemos jogar toda a responsabilidade nas famílias diante de mudanças tão rápidas nas tecnologias e ambientes virtuais. Elas também precisam de suporte, orientação e políticas públicas que acolham e informem, pois estão muitas vezes sobrecarregadas e sem ferramentas para lidar com o que seus filhos e filhas enfrentam no mundo digital. A CPI quer também ajudar nesse sentido: entender como as famílias podem ser apoiadas com informação, orientação e políticas que reforcem os vínculos, o cuidado e o diálogo.
Proteger nossas crianças é um dever coletivo. As famílias não podem estar sozinhas nessa missão, e é por isso que estamos lutando para que o Parlamento assuma sua responsabilidade com a seriedade que o tema exige.
