Respondendo pela República Árabe Saarauí Democrática no Brasil (Rasd), Ahmed Mulay Ali Hamadi deseja que o presidente Lula dê “um passo a mais”. Como o país já reconheceu a Frente Polisário – o movimento revolucionário do Saara Ocidental que instituiu a Rasd em 1976 – o passo adiante seguiria o caminho de 84 países de todo o mundo que já aceitaram a nova República.
“Somos a última colônia da África que ainda está em guerra contra o invasor”, relata Ahmed Mulay Ali Hamadi que opera representando os interesses da Rasd em Brasília.

O embate do povo saarauí contra o colonialismo começou quando o território ainda era chamado “Saara Espanhol”. Em 1974, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu que a região disputada não era “terra de ninguém” e sim habitada por “indígenas saarianos” ou “saarauís ocidentais” e que a eles pertenceria o poder soberano no local. Em resposta, dois vizinhos, Marrocos e Mauritânia, invadiram a região e começou o conflito que está chegando aos 50 anos. Os mauritanos recuaram e desistiram, mas o confronto com Marrocos permanece. Um contingente de ocupação de 150 mil soldados é mantido por Marrocos. E há muitas riquezas no lugar.
“A zona ocupada pelos militares marroquinos é onde está o maior banco de pescado. E uma das maiores minas de fosfato do mundo”, comenta.
“Toda a África nos reconhece. Estamos caminhando, mas ainda precisamos de mais.” Hamadi veio a Porto Alegre para defender o ponto de vista do povo saarauí contatando jornalistas e autoridades, quando foi entrevistado pelo Brasil de Fato RS. Também participou de reunião na Assembleia Legislativa e visitou o Memorial Luiz Carlos Prestes e o Instituto de Educação Josué de Castro, no Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão.

Brasil de Fato RS: Qual o objetivo da sua visita ao nosso estado?
Ahamed Mulay Ali Hamadi: Somos a última colônia da África que ainda está em guerra contra o invasor Marrocos. Primeiramente, começamos nossa luta contra o colonialismo espanhol. Fomos colônia da Espanha por um século. E conseguimos, com a luta armada, fazer que a Espanha fosse embora. Infelizmente, Marrocos, apoiado pela França naquele tempo, e apoiado por Israel e os Estados Unidos, invadiu nosso país. Tivemos que seguir em guerra e ainda estamos em guerra. No Brasil, agradecemos muito ao governo brasileiro por ter reconhecido a Frente Polisário. A Frente é o movimento de revolução saarauí que começou a luta armada contra o colonialismo espanhol e continua agora contra Marrocos.
“Queremos que o Brasil reconheça a República Árabe Saarauí Democrática, como fez com a Palestina”
Estamos tentando convencer o presidente Lula para dar um passo a mais. O Brasil já reconheceu a Frente Polisário e queremos que reconheça a República Árabe Saarauí Democrática (Rasd), como fez com a Palestina. Porque a luta da Palestina e do Saarauí são semelhantes.
Cortes africanas, Tribunal da Justiça Europeia, Departamento de Justiça da Organização das Nações Unidas (ONU) e muitas outras organizações já falam a nosso favor. O Brics, a Internacional Socialista, os não alinhados. Todo o mundo apoia o direito do povo saarauí por determinação e independência, mas Marrocos não quer aceitar a aplicação do direito porque estão envolvidos, principalmente, os interesses da França, Israel, Estados Unidos e do Norte da África.
“Nosso país está dividido por um muro de 2700 quilômetros com 8 milhões de minas”
Quais são esses interesses?
A zona ocupada pelos militares marroquinos é onde está o maior banco de pescado. E uma das maiores minas de fosfato do mundo. O que fez Marrocos? Ocupou essa zona e construiu um muro. Nosso país agora está dividido por um muro de 2700 quilômetros com 8 milhões de minas. Estão lá 150 mil soldados marroquinos com armamento francês, espanhol, israelense e norte-americano. Estamos atacando diariamente esse muro para derrubá-lo. E vamos bem, vamos ganhando.
A República Árabe Saarauí Democrática é reconhecida por 84 países no mundo. E agora é membro da União Africana junto com Marrocos, mas eles não querem reconhecer a República e sair da zona que ocupam. Por isso, a minha visita aqui é para informar os cidadãos e a sociedade civil deste grande estado. Conheci um pouco da história da sociedade deste estado. Que as pessoas são solidárias, que escutam, que ajudam, apoiam o direito internacional, apoiam a autodeterminação dos povos. Então, estamos aqui fazendo reuniões na Assembleia Legislativa. Fomos à Câmara Municipal com algumas organizações. Por isso a visita, buscando apoio ao reconhecimento da Rasd por parte do Brasil.
“Estou há 50 anos sem ver a minha mãe. Só pelo WhatsApp falamos”
Como vive hoje o povo saarauí? São quase um milhão de pessoas…
Aproximadamente um milhão. Mas está dividido por um muro. Minha família está dividida. Uma parte livre e a outra ocupada. Estou há 50 anos sem ver a minha mãe. Imagina, imagina. Só pelo WhatsApp falamos.
Cinquenta anos?
Sim, 50 anos sem ver. Tive que sair (de casa) aos meus 17 anos porque Marrocos me procurava. Há 650 mulheres saarauís desaparecidas. E não sabemos nada. Temos uma centena de prisioneiros políticos nas prisões de Marrocos. E a zona ocupada está proibida para qualquer estrangeiro.
Durante esses três meses de 2025, cerca de 40 personalidades – advogados, juristas, parlamentares espanhóis e europeus, membros da solidariedade com o povo saarauí – tentaram entrar na zona ocupada. E não puderam. Está fechada. A informação que sai da zona ocupada é só a que nós levamos. A imprensa não pode entrar.
Mas as pessoas têm comunicação com a parte externa?
Sim, por WhatsApp. Embora saibamos que o WhatsApp deles está sob vigilância marroquina. Então, conversamos, mas evitamos assuntos políticos, porque senão eles podem acabar presos. Falamos apenas de coisas simples – de história, de saudade, de camelos, coisas assim.
O povo saarauí está dividido. Uma parte vive sob a repressão marroquina e a outra nos campos de refugiados saarauís, na fronteira com a Argélia, e na zona livre. Nessas regiões, sim, há mais liberdade. Aí temos o nosso governo, o nosso Parlamento, o nosso Senado, os nossos ministérios. Aí estamos funcionando perfeitamente. E o nosso exército está aí com as armas na mão contra o exército marroquino.
“O combatente saarauí não tem salário. Tem o fuzil e a convicção de que é pátria ou martírio”
É o exército que luta contra Marrocos ou existe algum outro grupo?
Não, temos um exército organizado, com regiões militares e armamento. Mas somos diferentes. O combatente saarauí não tem salário. Tem apenas duas coisas: o fuzil, com o qual buscamos recuperar nossa liberdade, e a convicção de que é pátria ou martírio. É o que temos. E é por isso que, como estamos dispostos a morrer pela nossa liberdade, pela independência do nosso povo, estamos vencendo o exército marroquino. Eles são mercenários, estão lá por dinheiro. E quem busca dinheiro não quer morrer. Por isso, estamos ganhando.
Na sua avaliação, por que esse tema não ganha visibilidade na imprensa?
Porque a situação está completamente fechada. Qualquer jornalista importante que tente escrever sobre isso é alvo da corrupção marroquina. Marrocos usa dinheiro como arma. Você, por exemplo, está escrevendo um artigo, é possível que o embaixador marroquino entre em contato com você por telefone, te convide para uma viagem ao Marrocos ou até tente te oferecer um cheque. É assim que eles atuam.
“A Corte Internacional de Justiça já se pronunciou a nosso favor”
Vários jornalistas nos contaram que, na Europa, receberam propostas do governo marroquino. Diziam: “Não fale sobre o povo saarauí. Aqui está um cheque”. Inclusive, no pen drive que te entreguei, há uma pasta chamada Marrocos, com um artigo intitulado Marrocos Gate. Nele, é relatado como a polícia de Genebra (Suíça) descobriu parlamentares que haviam sido comprados por Marrocos para se posicionarem contra a nossa causa. Esses casos já vieram à tona na imprensa. Por que Marrocos faz isso? Porque sabe que perdeu no campo jurídico.
A Corte Internacional de Justiça já se pronunciou a nosso favor. O Tribunal de Justiça da União Europeia, em novembro de 2024, também. As Cortes Africanas deram pareceres favoráveis a nós. O Departamento Jurídico da ONU já reconheceu nosso direito. Além disso, organizações como os Brics, o Movimento dos Não Alinhados e a Internacional Socialista apoiam o direito de autodeterminação do povo saarauí. Marrocos não tem argumentos legais, nem respaldo no direito internacional. Por isso, tenta nos silenciar com dinheiro, compra pessoas para que se calem.
Todo esse movimento está aproximando o povo saharauí da independência?
Sim, estamos avançando. Toda a União Africana nos reconhece – toda a África. Para a ONU, a Frente Polisário é a representante legítima do povo saarauí. Estamos caminhando, mas ainda precisamos de mais.
Precisamos que se fale mais sobre o tema, que as sociedades se conheçam, que os jornalistas escrevam, que as pessoas saibam quem somos. É por isso que já estamos organizando a terceira caravana, prevista para novembro.
E aproveito, por meio do Brasil de Fato, para fazer um convite às cidadãs e cidadãos do Rio Grande do Sul: alistem-se, venham conosco, conheçam nossa realidade. Da primeira caravana, participaram quase 40 pessoas.
Que ocorreu quando?
Em 2023. A segunda, em 2024, contou com quase 20 participantes. Agora, estamos organizando a terceira, que acontecerá de 20 de novembro a 3 de dezembro.
Todas as informações estão disponíveis – e qualquer pessoa que quiser saber mais, é só entrar em contato conosco. Teremos o maior prazer em fornecer todos os detalhes da viagem.
Sejam todos muito bem-vindos e bem-vindas. Vamos juntos conhecer a África, a cultura do deserto, os camelos, as tendas, a vida no deserto, o nosso modo de viver.
Venham conosco. Seria uma alegria enorme contar com a presença de 20 ou 30 gaúchos e gaúchas nessa jornada.
E a caravana tem uma programação definida?
Temos toda uma programação pensada. O custo mais alto é a passagem aérea. São oito dias de convivência com o povo saarauí e mais três dias de turismo na Argélia. Ou seja, é uma oportunidade de conhecer dois países em uma só viagem.
Tudo o que diz respeito aos 13 dias – alimentação, hospedagem, transporte, guia – custa apenas 300 dólares por pessoa. É quase simbólico.
O que encarece um pouco é a passagem de avião, que gira em torno de 1.200 dólares. Ainda assim, toda a viagem sai por menos de R$ 13 mil. É uma experiência rica em história, cultura, aprendizado…
E a segurança?
Sim, com segurança e com tudo muito bem-organizado. Em novembro passado, havia cerca de 700 estrangeiros no Saara – vindos da Europa, da África. Então, não há com o que se preocupar. A segurança é garantida.
Conte um pouco da história do seu povo.
O saarauí é um povo ancestral. Já existia muito antes da chegada dos colonizadores europeus. Em 1884, durante o famoso Congresso de Berlim – quando os europeus dividiram o continente africano entre si – colocaram o mapa da África sobre a mesa como se fosse um bolo e começaram a cortar: “isto é seu”, “isto é da França”, “isto é da Alemanha”… E assim nos repartiram.
A nossa região ficou como colônia da Espanha. Mas antes disso, Portugal e França já haviam tentado nos colonizar – e não conseguiram. Quando a Espanha finalmente entrou, em 1884, só conseguiu porque teve que negociar diretamente com o povo saarauí. Foi um ciclo de colonização, mas um pouco diferente: a Espanha precisou respeitar nossa cultura, nossa religião, nosso modo de vida. Tivemos, nesse período, uma relação em que nossa identidade foi preservada, mesmo sob domínio colonial.
“No Saara Ocidental há fosfato, peixes e indícios científicos de petróleo, gás natural e água”
A Espanha não tentou mudar nossa cultura. Foi um ciclo de colonização em que, de certa forma, houve certo respeito à nossa identidade. Mas, no final dos anos 1960, como muitos outros povos africanos, também começamos a lutar pela nossa independência.
Inicialmente, nossa intenção era dialogar com a Espanha – queríamos um acordo para que ela nos preparasse para a autodeterminação, mas a Espanha não queria isso. Quando percebeu que havia riqueza no território, mudou de postura.
No Saara Ocidental há fosfato, peixes e indícios científicos de que há também petróleo, gás natural e água. Diante disso, a Espanha quis nos transformar em uma província. O ditador Francisco Franco assinou um decreto afirmando que o Saara deixava de ser uma colônia e passava a ser a 53ª província espanhola. A partir daí, o saarauí deixava de ser considerado um indígena – passava a ser, segundo a lei espanhola, igual a um cidadão da Catalunha, de Madri ou da Andaluzia. Mas claro, nós não aceitávamos isso. O povo saarauí queria sua independência, como todo povo livre no mundo.
Como a Espanha se recusou a ouvir as nossas demandas, tivemos que recorrer às armas. Foi quando nasceu a Frente Polisário, fundada em 10 de maio de 1973. Apenas 20 dias depois, travamos nossa primeira batalha contra o exército espanhol. Assim começou a luta. E conseguimos fazer com que a Espanha abandonasse o território. Quando a Espanha se retirou, em 26 de fevereiro de 1976, houve um vazio jurídico. Então, no dia 27 de fevereiro de 1976, a Frente Polisário declarou a criação da República Árabe Saarauí Democrática.
Conseguimos vencer a Mauritânia, que acabou se retirando da guerra e devolvendo os territórios ocupados. A luta contra o Marrocos continuou até 1988, quando os marroquinos começaram a perder força. Foi nesse momento que o Marrocos buscou apoio de Israel e da França, que então compartilharam sua experiência na construção de muros. Marrocos começou a erguer um muro, mas isso não funcionou.
Como sempre dizemos, o importante não é o tanque ou o avião, mas sim a pessoa que os conduz. Os soldados marroquinos estavam desmotivados. Têm medo, não querem morrer. Já o combatente saarauí está disposto a tudo. Vencer ou cair em combate. São duas posturas completamente diferentes.
Então, em 1991, diante do impasse, Marrocos já não conseguia avançar militarmente. Iniciamos um processo de negociação, mediados pelas Nações Unidas. Firmamos um acordo com o Marrocos, gerido por meio do Conselho de Segurança da ONU. Houve um cessar-fogo e a ONU criou uma missão chamada Minurso – Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental.
“Quando vimos que a ONU não faria nada tivemos que retomar novamente as armas”
Suspenderam-se os combates, mas o que aconteceu? Morreu o rei do Marrocos. E subiu ao trono seu filho, Mohamed VI, que está ainda agora. Está enfermo, já morrendo. Esperamos que o próximo rei seja mais inteligente do que seu pai. Este (atual) bloqueou a ONU. Bloqueou o Minurso. E não queria, e não quer, aceitar a aplicação do direito de autodeterminação ao povo saarauí.
Quando vimos que a ONU não faria nada – já vimos que, na Palestina, também não fez nada – tivemos que, no 13 de novembro de 2020, retomar novamente as armas. E entramos em guerra contra o Marrocos. Seguiremos em guerra contra o exército marroquino até que o país aceite de novo negociar. E fazer um acordo baseado na Carta das Nações Unidas, ou seja, no direito dos povos à autodeterminação. Quando o Marrocos aceitar, paramos a guerra.
Somos um povo de cultura do deserto. Temos nossas administrações funcionando, nossa cultura é uma mistura africana, árabe e espanhola. Somos o único povo árabe que fala espanhol. E a mulher saarauí tem toda a liberdade. Nosso Parlamento tem mais de 30% de mulheres deputadas. E a mulher saarauí tem duas festas muito importantes: 1) quando se casa e faz uma grande festa; 2) quando se divorcia e faz outra grande festa.
Que ótimo.
Sim, celebramos o divórcio. A mulher saarauí é ministra, dirigente, deputada. Com liberdade total.
E a religião é muçulmana?
Nossa religião é muçulmana, mas somos da parte mais liberal. Por exemplo, no mundo islâmico, o homem pode se casar com três ou quatro mulheres. No deserto, é impossível. Está proibido. Porque não faz parte da nossa cultura. Poligamia não existe. Isto surpreende muita gente. Muitos acadêmicos ficam espantados: “como os saarauís são muçulmanos e não há poligamia?” Pois é. Somos um outro mundo.
E o governo, como funciona?
Nosso governo é nacionalista. Por isso temos problemas com o Marrocos, a França, os Estados Unidos. Mas funcionamos por eleições. A cada quatro anos temos eleições para presidente, eleições para os membros da Frente Polisário e eleições para o Parlamento.
Você saiu de lá aos 17 anos? E vive onde hoje?
Vivo na Zona Liberada e, agora, nos campos de refugiados. Foi lá que meus companheiros me salvaram, me tiraram do porta-malas de um carro. Eu era dirigente clandestino da Frente Polisário. Já conheci a repressão da Espanha. Estive na prisão.
E você permanece no Brasil ou viaja também a outros países?
Antes do Brasil, fui embaixador no México. Antes do México, era representante na Espanha. E agora sou o representante da Frente Polisário no Brasil. Estou aqui há três anos. E falando em portunhol, como vê. Espero que você se anime e venha na viagem. E convide outros jornalistas para virem também. Ajude-nos a trazer um bom grupo de… como se diz? Gaúchos e gaúchas.
