Há 70 anos, a República Popular da China foi uma das protagonistas do evento que marcou a história das lutas dos povos asiáticos a africanos por sua soberania nacional. Apesar de não ter sido oficialmente responsável pela convocação e organização da histórica Conferência de Bandung, em abril de 1955, Pequim teve um papel central na criação das condições políticas e diplomáticas para a realização da “primeira conferência intercontinental de pessoas de cor na história da humanidade”, como a chamou o presidente indonésio, e anfitrião, Sukarno. No ano anterior, liderada pelo premier e ministro das relações exteriores, Zhou Enlai, a China havia liderado duas complexas negociações diplomáticas: uma com a Índia, a outra na Conferência de Genebra, com as quatro maiores potências da época, Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra e França.
Na primeira, diante de um impasse na fronteira entre as nações mais populosas do mundo – na região do Tibet -, o primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru e seu par chinês Zhou Enlai chegaram não somente a um acordo bilateral de comércio e de relação fronteiriça, mas elaboraram o “Acordo Panchseel”, também conhecido como “cinco princípios para a coexistência pacífica”, que posteriormente se tornaria a base para os 10 princípios acordados em Bandung. Na segunda, ainda mais complexa, a China teve papel central nas negociações sobre os conflitos na Coreia e na, então, Indochina francesa. Enquanto a desejada reunificação coreana fracassou (estabelecendo o “paralelo 38” e a divisão entre Coreia do Sul e do Norte), o impasse entre a França e os Vietminh (forças vietnamistas lideradas por Ho Chi Minh) foi resolvido, resultando no fim da guerra e na retirada das tropas coloniais francesas, ao custo da divisão do Vietnã entre norte e sul.
Estes dois acordos históricos não só ajudaram a estabilizar o continente asiático temporariamente (o Vietnã seria posteriormente invadido pelos EUA), melhorando as condições políticas para o encontro em Bandung, como reforçaram a liderança regional de Nehru – um dos idealizadores de Bandung – e, sobretudo, revelaram ao mundo a sofisticação diplomática do comunista Zhou Enlai. Tanto é verdade que o sucesso de Zhou despertou preocupação em Washington. Os EUA temiam que o carisma e a eloquência do diplomata chinês pudessem ajudar a propagar as posições dos comunistas e a convencer outras lideranças asiáticas a apoiarem moções opostas aos interesses estadunidenses na região. Coincidência, ou não, sete dias antes da conferência na Indonésia, o avião da companhia Kashmir Princess que levava a delegação chinesa de Hong Kong a Jakarta caiu, matando 11 passageiros (três tripulantes sobreviveram). Por sorte, ou por estar bem-informado, Zhou Enlai não estava no avião e escapou de um atentado do Kuonmintang – aliado dos EUA – contra sua vida.
Para Pequim, Bandung significou um passo crucial para romper com o relativo isolamento no qual se encontrava depois da revolução de 1949, da participação na Guerra da Coreia e do embargo sofrido pelas potências ocidentais. Ali, foi possível iniciar o estabelecimento de relações diretas com inúmeros países da Ásia e da África, para muitos dos quais a China ainda aparecia como uma grande “ameaça vermelha”. Alguns dos chefes de estado foram à conferência instruídos por Washington a atacarem os comunistas chineses e os soviéticos. Em seu discurso de abertura, reformulado após as críticas proferidas por outros países, Zhou deixou claro que a China havia vindo a Bandung “para buscar unidade e não disputa…para buscar um solo comum e não para criar divergência”.
De forma eloquente, a China condenou o colonialismo das potências europeias que, através do saque e da opressão, haviam relegado “brilhantes civilizações antigas” asiáticas e africanas – que “fizeram tremendas contribuições para a humanidade” – a um “estado de pobreza e atraso”.
Fazendo coro aos chamados países “não-alinhados”, Índia, Indonésia, Egito, Birmânia, o discurso chinês denunciou as ameaças de novas guerras e lembrou que o movimento pela paz em diversos países demandava o fim da corrida armamentista e a proibição de armas nucleares. Segundo Zhou, os países de ambos os continentes tinham “necessidade urgente de um ambiente internacional pacífico para o desenvolvimento de nossa economia independente e soberana”, a fim de superar o atraso imposto pelo colonialismo. Para isso, a cooperação econômica entre eles deveria basear-se em “igualdade e benefício mútuo”, para que nenhum país se convertesse em “mero produtor de matérias-primas e um mercado para bens de consumo”.
Finalmente, reforçou o apoio às lutas de libertação nacional em curso (como na Tunísia, Marrocos e Argélia), à solução da questão dos “refugiados árabes na Palestina”, à soberania egípcia no Canal de Suez, à indiana em Goa e à indonésia em Irian Ocidental, além, claro, da defesa da liberação de seu próprio território Taiwan.
Para além do eloquente discurso de abertura, o que realmente fez de Zhou Enlai uma das estrelas da conferência foi seu tom humilde e moderado, e sua impressionante capacidade de lidar com posições divergentes, ajudando a construir consensos improváveis. Por exemplo, na controvérsia a respeito da participação de países de ambos os continentes em alianças militares com os EUA (SEATO e CENTO) – Turquia, Filipinas, Tailândia, Irã, Iraque – ou do debate sobre o conceito de “convivência pacífica”. Ambas as divergências, que aliás estavam ligadas, foram acomodadas nos 10 pontos da declaração final, depois de intensos debates e ativa moderação do chinês. Foram numerosos os elogios públicos recebidos pelo premier e pela delegação chinesa. A London Broadcasting Station afirmou que “Um homem com visão política pode ver claramente que a conquista obtida pelo Partido Comunista da China na Conferência de Bandung é imensurável”4, enquanto alguns delegados em Bandung contaram que Zhou era “razoável, conciliador e sinceramente ansioso para estabelecer a genuinidade da inclinação pacífica da China. Já Roeslan Abdulgani, secretário-geral da conferência, lembrou que Zhou era “moderado e envolvente” e que havia impressionado outros delegados que suspeitavam dele previamente. Para Abdulgani, A República Popular da China não aparecia mais aos olhos deles como um perigoso “Dragão Gigante”.”
O sucesso da participação chinesa em Bandung possibilitou a expansão das relações diplomáticas de Pequim com inúmeros países – que seria decisivo após o rompimento com a URSS, em 1961 -, estimulou o apoio de Pequim à luta de libertação nacional de países africanos e ajudou a definir os “cinco princípios de convivência pacífica” como os pilares da diplomacia chinesa até os dias de hoje, que são refletidos em iniciativas como os BRICS, a Organização de Cooperação de Xangai e a Belt and Road Initiative. No entanto, passados 70 anos da histórica conferência na Indonésia, não deixa de ser preocupante perceber que a maior parte dos desafios urgentes ali apontados pelos 29 países do então “Terceiro Mundo” continuam sem resolução no agora chamado “Sul Global”, ou “Maioria Global”: o atraso econômico resultante dos mecanismos de exploração do Imperialismo e do neocolonialismo, a destruição e o sofrimento causados por guerras provocadas pelos EUA e suas alianças militares, a ameaça nuclear, as profundas injustiças cometidas contra o povo palestino pelo sionismo, a questão não resolvida de Taiwan. Tudo isso nos faz lembrar do discurso contundente proferido, há 70 anos, pelo delegado da Síria, Khaled al-Azam: “Declaramos ao mundo que continuaremos a nos reunir… até que vejamos todo e qualquer grau de colonialismo e imperialismo ser eliminado e destruído para todo o sempre”. A insistência em continuarmos a nos reunir é o maior legado do “espírito de Bandung”.