As longas jornadas de trabalho na lama ou em águas cada vez mais quentes e poluídas e sem equipamentos adequados, se tornaram uma bomba-relógio. E ela explode aos poucos nos corpos de marisqueiras e pescadoras de Pernambuco e Alagoas, no Nordeste brasileiro.
Relatos de pescadoras, marisqueiras e pesquisadoras apontam que essas mulheres estão expostas diariamente à contaminação das águas por casas e empreendimentos à beira de rios e lagoas. Isso inclui o lançamento de metais pesados por empresas, resquícios de agrotóxicos usados em plantações e esgotos não tratado. Tudo ocorre de forma clandestina e é difícil a mensuração exata, mas traz impactos diretos na saúde e na qualidade de vida das trabalhadoras das águas.
Na Vila São Pedro, comunidade ribeirinha da Barra de Santo Antônio (AL), o rio Camaragibe atravessa uma área marcada pelos empreendimentos turísticos e pela expansão urbana desordenada, onde o despejo irregular de esgoto é uma prática comum. Já na praia de Maracaípe, em Ipojuca (PE), o rio margeia zonas de cultivo agrícola – especialmente de cana-de-açúcar e frutas –, onde o uso intensivo de agrotóxicos pode atingir o curso d’água, além da proximidade com indústrias.
A categoria de pescadoras e marisqueiras é formada principalmente por mulheres negras e muitas delas vivem em territórios com forte vulnerabilidade social, enfrentando sérios problemas de saúde. A exposição contínua a condições precárias as torna mais suscetíveis a infecções ginecológicas que podem levar a complicações.

‘Precisei retirar o útero’
Na comunidade da Vila São Pedro, no litoral norte de Alagoas, a vulnerabilidade social se agrava com a presença de resíduos, esgoto a céu aberto, entulho, cascas de marisco e animais soltos por toda a área. Pescadoras e marisqueiras que moram lá vivem um drama silencioso.
Na Vila São Pedro falta coleta adequada de resíduos e há esgoto a céu aberto – Crédito: Divulgação MPF/Alagoas
Entre elas está Ana Paula Santos, de 52 anos, que dedicou boa parte da vida ao trabalho no rio Santo Antônio. Hoje ela é pesquisadora comunitária e representante da Rede de Mulheres Pescadoras da Costa dos Corais se tornou uma voz importante para denunciar o problema e cobrar a atuação das autoridades.
Ana Paula conta que precisou interromper as atividades após desenvolver sérios problemas gerados por uma bactéria. “Tive que retirar o útero aos 42 anos porque nenhum tratamento resolvia”, relata. Ela conta que o médico perguntou se ela passava muito tempo na água contaminada, já que se tratava de uma bactéria resistente e de difícil tratamento.
Ana Paula Santos integra a Rede de Mulheres Pescadoras da Costa dos Corais – Crédito: Mapa do Acolhimento / Thaina Prado
Além da retirada do útero, Ana Paula também enfrenta problemas de pele causados pelo óleo que atingiu o litoral nordestino em 2019. Muitas mulheres removeram o petróleo das praias sem qualquer proteção e, até hoje, sofrem com queimaduras na pele, segundo Ana Paula. “Eu tenho uma mancha na pele que coça e nunca resolveu”, relata.
Para ela, é urgente que o problema seja mais pesquisado, já que os estudos relacionados ainda são escassos, a exemplo de uma dissertação defendida na Universidade Federal da Bahia. “Precisamos entender por que tantas mulheres tiveram que retirar o útero e por que algumas não conseguem mais atuar na pesca no rio. Tudo isso está diretamente ligado à contaminação”, alerta a pesquisadora comunitária.
Perda da visão por contaminação da água
A pescadora Izabel Cristina Chagas, de 58 anos, de Passo do Camaragibe (AL), teve outro tipo de problema: a visão comprometida pela contaminação do rio Camaragibe, o mesmo que passa em Barra do Santo Antônio com agrotóxicos, mercúrio, esgoto sem tratamento. “Hoje, só tenho 20% da visão no olho esquerdo”, revela.
Os primeiros sinais surgiram com dores frequentes, tratadas apenas com colírio. Depois, apareceram caroços purulentos nas pálpebras. “Foi quando fiz um exame detalhado e constataram a contaminação por metais pesados”, explica.
Izabel Cristina Chagas teve problemas de visão – Crédito: Acervo Pessoal
O diagnóstico foi confirmado por um médico, que iniciou um tratamento para evitar a cegueira total. Isso aconteceu em janeiro de 2023. “Vou passar por uma nova avaliação para ver se consigo recuperar parte da visão com cirurgia”, comenta Izabel.
“A maior preocupação em relação às populações que utilizam essas águas está na contaminação microbiana, resultante do despejo de esgoto, o que pode levar ao desenvolvimento de doenças de pele e intestinais”. A afirmação é da professora Nathália Corrêa Chagas de Souza, que integrou uma avaliação da qualidade das águas dos rios Santo Antônio, Camaragibe e Manguaba, em Alagoas. Naquele período, ela atuava como Consultora da Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ), parceira do estudo.
A professora também alerta para os altos níveis de metais pesados e substâncias químicas tóxicas, como herbicidas e organoclorados, que apresentam grande persistência no ambiente.
“O contato com determinados agroquímicos pode gerar irritações na pele, nos olhos e mucosas, até sintomas neurológicos, dependendo do tipo de composto, da concentração e se o contato com ele ocorreu de forma direta ou não”, explica Nathália.
“O serviço de saúde desses locais geralmente não acolhe adequadamente as mulheres levando em consideração esses contextos e problemas de contaminação. “O atendimento foca apenas em vacina, câncer de mama ou de colo de útero, sem considerar a singularidade de cada uma”, afirma a médica Mariana Gurbindo Flores e especialista em Medicina de Família e Comunidade e em Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho.
Ainda segundo Mariana, “não há agentes comunitários que façam a ponte entre essas comunidades e os serviços de saúde”.
A maioria das marisqueiras e pescadoras sofrem diversas alterações a partir desse contato prolongado com a água contaminada. “Infecções urinárias, corrimentos e inflamações vaginais prolongadas são comuns, especialmente entre marisqueiras”, completa.
De acordo com o levantamento do Painel de Consultas do Registro Geral da Atividade Pesqueira de 2023, o Brasil conta com 1 milhão de pescadores profissionais ativos e licenciados. Desse total, 507 mil são mulheres. O número deve ser maior, visto que muitas mulheres não são registradas.
Principais responsáveis pela coleta de mariscos, ostras e sururu em áreas costeiras e manguezais de Pernambuco e Alagoas, essas mulheres enfrentam jornadas de cinco a seis horas diárias imersas na água ou na lama. “Elas entram na água de madrugada para catar mariscos e continuam o trabalho mesmo com as roupas molhadas”, destaca Eliane Cavalcanti, bióloga e professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Ao retornarem à terra, elas ainda dedicam mais cinco a seis horas para o preparo do que foi pescado. Quase sempre tudo é feito sem equipamentos de proteção ou ferramentas adequadas.
Reduzir a jornada é inviável para muitas
Em 2018, o Ministério da Saúde (MS) lançou duas cartilhas para orientar as pescadoras com assuntos relacionados à saúde e ao ambiente profissional: uma para mariscagem e pesca em mar aberto, e outra para quem atua em rios, lagos e lagoas.
Nesses documentos, o MS explica que a atividade deixa as mulheres sujeitas a problemas como LER (lesão de esforço repetitivo), câncer de pele, varizes e infecções (provocada pelas redes de pesca que têm pontos de metal feito de chumbo). Entre as dicas está de reduzir a jornada de trabalho.
Mas atender essa indicação não é simples. Desde os 12 anos, Maria Aparecida da Conceição, hoje com 43 anos, trabalha como marisqueira no rio Ariquindá, em Tamandaré, litoral sul pernambucano. O rio recebe efluentes da estação de tratamento e esgotos clandestinos.
Maria Aparecida conta que, há seis meses, começou a ter uma coceira intensa na região íntima e a apresentar lesões na pele. Após buscar atendimento médico, recebeu o diagnóstico de uma infecção por fungos. “O médico me disse que a água está muito poluída. Às vezes, vemos até pedaços de fezes no rio”, relata.
“Ele (o médico) proibiu que eu continuasse pescando, mas como vou parar? É o meu sustento”, desabafa Maria, que está em tratamento.
Lesões na pele e a invisibilide do problema
Helena Ivalda, presidente da Associação Mangue Mulher, de 38 anos, trabalha como pescadora na praia de Maracaípe, em Ipojuca (PE), desde os 11 anos. “Tenho manchas brancas na virilha, perna e rosto. Coça muito.”
Ela se dedica à captura de mariscos, siri e aratu nos manguezais. “No começo, não imaginávamos que seria a água. Mas depois que várias mulheres começaram a apresentar os mesmos sintomas, ficou claro que se tratava de contaminação”, explica Helena.
Sem acesso a acompanhamento médico adequado, a pescadora recorre a tratamentos caseiros. “Uso uma pomada para aliviar, mas nunca fui ao médico. Já tentei até usar pó de chulé para ver se melhorava.”
Abrir mão da pesca não é uma escolha para ela, nem para várias outras. “É o meu meio de sustento. Não posso parar, mas precisamos que as autoridades olhem por nós”, desabafa.
Há um ano, a marisqueira Elba dos Santos também enfrenta uma doença de pele que se espalhou pelo corpo e afeta as partes íntimas. “Toda vez que vou para o mangue, minha pele reage. Começa uma coceira intensa, fico cheia de bolhas com pus e elas não param de se espalhar”, conta.
As soluções oferecidas no atendimento médico não são eficazes. “Já fiz exames, e o laudo apontou coliformes fecais”, diz. Elba relata que já foi alvo de olhares desconfiados.
As pessoas olham e perguntam: “O que é isso na sua pele?”. Já suspeitaram até que ela tivesse uma doença grave. “Estou usando uma pomada, mas não passa. Eu sou uma mulher vaidosa, sinto vergonha de como estou.”
Mesmo diante das dificuldades, as marisqueiras não desistem da luta por melhores condições. “Fazemos reuniões, cobramos providências, mas ninguém faz nada. Ainda assim, a gente vai vencer”, afirma Elba.
Para Priscylla Alves, assistente social e especialista em saúde das populações de campo, floresta e águas, a degradação dos territórios pesqueiros é um caso de racismo ambiental que atinge sobretudo as mulheres. Ela destaca que a pesca de marisco é predominantemente feminina e que o “racismo estrutural e institucional faz com que o Estado ignore essas mulheres”. São populações que, inclusive, já sofreram outros processos de exclusão.
“Uma nadadora não desenvolveria um problema ginecológico ou de pele, mas uma pescadora, exposta à água contaminada, adoece. A qualidade da água é determinante”, Priscylla. A assistente social explica que há um forte preconceito contra essa categoria. “Muitas evitam se declarar porque são vistas como se fossem pessoas sujas.”
A especialista aponta que existe uma dificuldade em obter dados sobre a contaminação e os impactos da pesca na saúde das mulheres, o que por si só já é uma violência. Além disso, a falta de vínculo empregatício e a informalidade do trabalho pesqueiro dificultam o acesso a políticas públicas específicas.
Os problemas ginecológicos são tratados apenas com pomadas e cremes vaginais. “O problema volta, e a pescadora continua exposta”, destaca Priscylla Alves.
A exposição constante à contaminação e o uso repetitivo de remédios sem um acompanhamento adequado preocupam. “O organismo vai ficando resistente, então tem que aumentar a quantidade de medicamento para fazer efeito”, indica a especialista em saúde.
Os desafios das atividades de pesca e mariscagem também são abordados na dissertação da pesquisadora Ericka Souza Browne, mestre em Saúde, Ambiente e Trabalho pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Existem relatos na literatura sobre os principais riscos que influenciam na saúde da região vaginal, dentre elas o clima tropical (calor), a umidade excessiva, higiene precária, roupas justas, desequilíbrio hormonal, DST. “Porém, não se tem descrito sobre os riscos provenientes do contato com o ambiente de trabalho das marisqueiras, que inclui o mangue e as praias”, afirma Ericka.
Entre os diversos fatores em jogo, o agravamento do calor é evidente. Nos últimos anos, o mundo tem batido recordes de temperatura, e o Oceano Atlântico Sul tem apresentado elevações fora do padrão. Em Alagoas, a temperatura média da água ultrapassou os 30°C pela primeira vez em 2024, de acordo com dados da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA).
“Não adianta tratar apenas a saúde sem considerar o impacto ambiental e a falta de políticas públicas”, ressalta a professora Eliane Cavalcanti. Ela está desenvolvendo um projeto em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) de Alagoas para tentar mudar a realidade. “A proposta é atuar na saúde das mulheres e crianças e promover educação ambiental.”
Faltam ações e as que estão planejadas têm prazo longo
A reportagem entrou em contato com as assessorias de comunicação das prefeituras de Passo de Camaragibe, Barra de Santo Antônio (em Alagoas) e Ipojuca, mas, até o momento, não obteve retorno.
Já a Secretaria de Estado de Governo de Alagoas disse que no município de Passo de Camaragibe, os serviços são prestados pela empresa Verde Alagoas. Conforme previsto em contrato de concessão, o prazo para implantação completa da rede de coleta e tratamento de esgoto vai até 2033. No caso da Vila São Pedro, a localidade não está incluída no contrato de concessão da BRK Ambiental, que atende apenas a zona urbana de Barra de Santo Antônio.
O Ministério da Saúde foi questionado por e-mail, em março, há cerca de um mês, sobre políticas e ações em curso voltadas para pescadoras e marisqueiras. O órgão pediu mais tempo para atender à demanda, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.
Artigo original publicado em AzMina.