Aldeia para o povo Mbyá Guarani é Tekoa. Palavra que significa “lugar do bem viver”, ou “lugar de ser”. Espaço cada vez mais escasso para essa etnia indígena que antes da chegada dos europeus não conhecia cercas e prosperava caminhando entre territórios no Sul e Sudeste do Brasil.
Para preservar sua cultura e os poucos espaços de mata nativa que restam, nos últimos anos os Mbyá Guarani têm realizado retomadas de território. Uma delas é a Tekoa Yjerê, retomada Ponta do Arado, na zona sul de Porto Alegre. A antiga fazenda do Arado Velho foi ocupada em junho de 2018 e desde então tem sido local de resistência.

Foi lá que conversamos com o cacique Timóteo Karay Mirim sobre as principais demandas do seu povo. Ele relatou os principais temas debatidos no início deste ano, em um encontro onde participaram dezenas de comunidades Mbyá Guarani para discutir a realidade em que vivem atualmente.
Demarcação: “É dali que vai começar qualquer trabalho”
Segundo o cacique Timóteo, a primeira demanda é “ter aldeia”, ou seja, demarcação. “É dali que vai começar qualquer trabalho, cultura, nossa linguagem, tudo isso. Toda coisa nós vamos decidir ali mesmo, nós vamos ter uma casinha de reza e aprender rezar, ensinar criança, dali que a gente sabe todas as coisas. Por isso que nós precisamos muito da terra assim, demarcadinha, pelo menos um pedaço né? Daí nós falamos sobre isso lá.”
Demarcação que caminha a passos lentos e as cinco famílias que vivem atualmente na Ponta do Arado esperam há quase sete anos. Um luta em que tiveram que enfrentar a especulação imobiliária e poderes políticos, que quase conseguiram transformar os mais de 400 hectares de mata preservada em condomínios de luxo.
Suportando constantes ameaças, com estrutura e acesso precários, as famílias conquistaram na Justiça a posse provisória e a determinação de que a Funai crie um grupo de trabalho para estudos de identificação.
Burocracia que, para o povo Guarani, como conta Timóteo, é mais uma forma de violência do branco sobre seu modo de ser. “Eu queria saber também porque agora, pedimos demarcação, porque os brancos que fizeram a lei, tudo é isso, né? Se não tivessem feito essa lei não precisa falar, nós vamos morar onde é mato nativo, onde não tem cidade”, critica.
O cacique lembra que a natureza não pode ter donos. “Tudo isso nós temos direito porque é nosso né? Porque ninguém trabalha para fazer mato. Essa coisa toda, e essa terra, nosso Deus que fez né?”
Fragilização da cultura e falta de políticas públicas
O encontro Mbyá Guarani reuniu dezenas de comunidades na Tekoa Tapé Porã, no município de Guaíba (RS). A atividade fez memória a Sepé Tiaraju, líder indígena que liderou a resistência Guarani contra os portugueses e espanhóis na Guerra Guaranítica. No dia 7 de fevereiro, sua morte completou 269 anos.
Além da questão da demarcação, o povo Guarani destacou no encontro a fragilização de sua cultura pela urbanização e o preconceito que sofrem na sociedade. Também a necessidade de políticas públicas para resolver a precariedade na saúde e na moradia, a falta de água potável e saneamento e a infraestrutura precária nas poucas escolas que existem nos territórios. As demandas foram reunidas em um documento (leia no final desta reportagem).
Indígenas desterritorializados

O coordenador do Conselho Indigenista Missionário na Região Sul (Cimi-Sul), Roberto Liebgott, esteve no encontro. Ele explica a histórica desterritoralização dos indígenas no Rio Grande do Sul e o movimento de retomadas do Mbyá Guarani.
“As poucas áreas demarcadas foram áreas reservadas pelo Estado, mas passam por um processo de espoliação do uso indevido da terra através de um sistema de arrendamento dos territórios. Então você tem um ambiente onde há terra reservada, mas o usufruto é limitado aos povos indígenas”, pontua.
Situação que leva os indígenas a se depararem com uma relação conflituosa. “Com os poderes públicos que negam esse direito aos aos indígenas, com a sociedade que é colonizadora, que, portanto, não aceita a presença indígena, e com o ambiente jurídico em que há uma disputa sistemática em torno do direito constitucional”, afirma.
Segundo ele, a base da discussão nos dias atuais se dá a partir da tese do marco temporal. “Houve todo um movimento de luta contra a tese no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que rejeitou a tese do marco temporal, mas que ele é inserido através de uma lei, a lei 14.701. Esse embate jurídico influencia, impacta essa luta cotidiana do voltar pra casa, das retomadas.”
“A natureza é importante para nós”
O cacique Timóteo reforça que seu povo quer preservar a floresta para garantir o futuro das crianças. “Nós chegamos aqui para fazer essa aldeia através de nosso Deus, e sempre rezamos pro nosso Deus. Agradecemos sempre vir espírito aqui para continuar, esse mato tem espírito que cuida até agora, então nós estamos aqui, então nós pedimos demarcação.”
Ele pontua que o objetivo da retomada é ter um local para morar, fazer plantio e cuidar no mato. “A natureza é importante para nós, para isso que nós queremos, não é? Isso vai continuar, sempre essa mata assim. Se eles, os brancos, tomarem essa coisa daqui, só vai haver só cidade. Mas nós chegamos, aí vai continuar mato até para sempre.”
Confira o documento lançado após o encontro dos Mbyá Guarani:
Em defesa da vida, dos modos de ser e do direito à terra–território.
Nós, Mbya Guarani, de dezenas de Tekoas estivemos reunidos, de 25 a 28 de fevereiro de 2025, em Guaíba/RS, na Tekoa Tapé Porã. Foi uma oportunidade marcante, porque fizemos memória de nosso líder Sepé Tiaraju, que, mesmo depois de quase 270 anos de seu assassinato, se mantém como presença ancestral e espiritual em nosso meio.
Sepé vive em nossas comunidades, ele é fonte de inspiração e motivação. Ele é força que se renova e nos faz seguir lutando por nossos direitos. Ele está conosco nas rezas, nos cantos, nas falas de nossas anciãs – Xixai’i’ri e de nossos anciãos – Xeramoi. Ele está com os Xondaros e as Xondorias, jovens – rapazes e moças – guerreiros e guerreiras de nosso grande Povo Guarani.
Neste encontro refletimos sobre os impactos das sociedades dos brancos – juruá – sobre nossa cultura, nossas tradições e costumes. Vimos que os brancos agem com critérios, regras, leis e formas de se relacionarem que agridem nossos territórios, nossos corpos e nossas almas.
Os brancos têm sede de poder, riqueza e só pensam em dinheiro e nos meios para consumir o solo, as águas, a natureza e tudo mais que está sobre e debaixo de nossa Mãe Terra. Eles, assim como geram riquezas para alguns, na mesma velocidade destroem e geram pobreza e exclusão de milhões de pessoas.
Essa ganância dos brancos nos afeta diretamente, porque eles impõem suas regras e seus negócios contra nossas tradições. Eles impõem uma cultura de dominação que avança sobre nossas Tekoas e afetam nossas crianças, jovens e idosos.
Os juruá desejam que as normas criadas por dentro do direito deles substituam os nossos modos de organizar a vida e as relações entre as pessoas.
Essa forma de relação impede que os povos indígenas tenham garantidos seus direitos à terra, à saúde e à educação de forma diferenciada. Os juruá querem unificar tudo, mas nós somos diferentes, de outra cultura, que precisa e deve ser respeitada e valorizada.
Nesse encontro, os nossos jovens se reuniram em separado para conversar sobre suas expectativas, sobre seus sonhos, sobre a convivência nas Tekoas e os desafios – dificuldades – que enfrentam no cotidiano. Eles sentem a discriminação nos olhares dos juruás nos ambientes – espaços – comerciais, nas escolas e até nas universidades.
Os homens e as mulheres refletiram e debateram sobre a falta de assistência adequada e justa nas Tekoas. Há muitas dificuldades na atenção à saúde e ao saneamento básico. Nesse tempo de temperaturas elevadas nos sentimos sufocados com a falta de água. Não há água limpa nas Tekoas para o banho de nossas crianças. E não se percebe vontade política dos que fazem a gestão dos serviços. Notamos uma naturalização e até um certo conformismo por aqueles que prestam assistência. Eles já não se importam com a dor da sede. As pessoas acham normal o fato de não ter estrutura e recursos humanos e financeiros para executar as políticas públicas que foram planejadas. E não faltam planos, belas palavras. Faltam empenho e vontade daqueles e daquelas que estão nos órgãos de assistência.
No âmbito da educação escolar indígena vemos que só há retrocessos. As escolas não têm infraestrutura. Não há pia, banheiro e água para lavar as mãos. Não temos professores em quantidade suficientes, assim como não há outros profissionais em educação escolar.
Nossas moradias, habitações, são precárias. Muitos de nós passamos toda a vida de baixo de lonas. Precisamos de apoio para a edificação de moradias dignas e que compõem as nossas formas de habitar e viver.
São tempos de muitas dúvidas, insegurança e de reclamações nas comunidades. Estamos cansados de promessas, discursos e pouco empenho daqueles e daquelas que deveriam garantir a execução das políticas públicas.
E há, por fim, a realidade fundiária. Compomos um povo que foi desterritorializado. Invadiram nossas terras e as tomaram de nós. Depois lotearam, desmataram, venderam e tornaram ela objeto de especulação. E nós ficamos nas margens de estradas, ou em áreas que foram cedidas ou compradas, em lugares degradados, que não servem pros brancos ganharem dinheiro, elas não têm valor de mercado.
As áreas demarcadas para nosso povo são pequenas. Em geral são lugares que alagam com as chuvas ou se tornam secas na estiagem. Nos poucos espaços de plantios as nossas sementes de milhos, feijão, melancias e amendoins não germinam.
Necessitamos de apoio para a recuperação dos solos e subsídios para a plantação daquelas sementes que se transformarão em alimentos saudáveis.
As demarcações de terras, iniciadas pela Funai em décadas passadas, foram paralisadas. Os Grupos de Trabalhos que realizaram os estudos de demarcação foram abandonados. E nós, os principais interessados, não somos informados de nada.
Nos cabe a luta pela terra através das retomadas. Elas são as esperanças de nossas famílias que desejam habitar um lugar bom de se viver. Lamentavelmente nos deparamos com muitos conflitos políticos, jurídicos e com os brancos colonizadores. Eles não admitem que as nossas famílias voltem pra casa.
Mas, apesar de tudo, nós seguiremos lutando, assim como Sepé Tiaraju lutou, assim como nossos antepassados lutaram. Nós temos a certeza de que os Xondaros e as Xondarias seguirão mobilizados exigindo o fim da tese do marco temporal nas demarcações de terras e o respeito à Constituição Federal.
Diante de tudo o que avaliamos em nosso encontro, exigimos:
1 – Assistência efetiva e diferenciada em saúde. Que as equipes sejam qualificadas e que possam prestar assistência respeitando os nossos modos de ser.
2 – Saneamento básico e água potável em todas as nossas Tekoas, não dá mais para esperarmos pelo abastecimento de água através de caminhões pipas. Exigimos água limpa. É necessário que sejam perfurados poços artesianos, assim como é necessário que a água seja distribuída nas nossas casas, postos de saúde e escolas.
3 – Educação diferenciada, com a criação de escolas, equipando–as e contratando professores, professoras, merendeiras e outros profissionais.
4 – Habitações condizentes com nossas praticas tradicionais e culturais. É inaceitável a falta de habitações. Os governos se omitem, se negam a discutir e planejar as habitações com nossas comunidades e líderes.
5 – Demarcação e regularização de todas as terras indígenas, com a retomada imediata dos procedimentos demarcatórios e os Grupos de Trabalhos paralisados em nossa região, como as Tekoas de Irapuá, Estrela Velha, Arroio do Conde, Petim e Passo Grande, Itapuã, Ponta da Formiga, Morro do Coco, Lami, Lomba do Pinheiro, Estiva e Capivari do Sul.
6 – Respeito às nossas retomadas de terras com a criação de grupos técnicos, visando o início dos procedimentos de demarcação nas áreas de Canela, Ponta do Arado, Maquiné, Terra de Areia, Rio Grande, Cachoeirinha, São Gabriel e Nhe’engatu em Viamão.
7 – Regularização das terras indígenas que foram compradas ou cedidas para usufruto das comunidades indígenas. Existe medo e insegurança jurídica por causa da judicialização das demandas fundiárias. É necessário que os governos federal e estadual cumpram o Termo de Cooperação Técnica assinado em agosto de 2024.
Nossas lideranças e toda a juventude Mbya Guarani, além de apresentar – às autoridades – as pautas de reivindicações contidas nesse documento, convoca as autoridades, assim como os nossos aliados, à reflexão sobre a dura e profunda realidade de vulnerabilização a que todos estamos submetidos.
É preciso, mais do que tudo, assegurar os direitos fundamentais de nossos povos, proteger a natureza e cuidar de nossa Mãe Terra, porque sem ela nada somos nessa dimensão da existência.
Quando e onde assistir?
No YouTube do Brasil de Fato todo sábado às 13h30, tem programa inédito. Basta clicar aqui.
Na TVT: sábado às 13h; com reprise domingo às 6h30 e terça-feira às 20h no canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
Na TV Brasil (EBC), sexta-feira às 6h30.
Na TVE Bahia: sábado às 12h30, com reprise quinta-feira às 7h30, no canal 30 (7.1 no aparelho) do sinal digital.
Na TVCom Maceió: sábado às 10h30, com reprise domingo às 10h, no canal 12 da NET.
Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET.
Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital.
Na UnBTV: sextas-feiras às 10h30 e 16h30, em Brasília no Canal 15 da NET.
TV UFMA Maranhão: quinta-feira às 10h40, no canal aberto 16.1, Sky 316, TVN 16 e Claro 17.
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