Montar um acampamento para produção agrícola não é simples. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem um método para ocupar um espaço e começar uma produção que parte de uma análise agroecológica do espaço e da sociedade presente no território. Na Venezuela, a participação do movimento encontra particularidades.
O MST foi convocado pelo governo venezuelano para estruturar a produção na região sul do país. Chamado de Pátria Grande do Sul, o projeto na Vergareña tem 180 mil hectares e será usado pelo governo venezuelano para a produção de alimentos seguindo a lógica da agrofloresta. O território no sul do país tem como intuito produzir alimentos suficientes para garantir a soberania alimentar da Venezuela.
Para isso, o MST ajudará na montagem de uma estrutura para que famílias cheguem e ocupem o espaço nos acampamentos. Há, no entanto, algumas diferenças entre o projeto na Venezuela e a forma que o movimento atua no Brasil. Primeiro porque no Brasil o grupo faz um estudo do terreno, possibilidades e potencialidades para a produção, qualidade do solo e o contexto social que aquele espaço está inserido.
Tudo isso com o apoio e o estudo de agrofloresteiros que têm uma formação voltada ao plantio que produza em larga escala sem uso de agrotóxicos e respeitando o tempo da terra.
Ao todo, 14 militantes do MST foram a Vergareña para montar a estrutura do acampamento que será administrado pela União Comunera. De acordo com eles, uma das principais dificuldades é compreender uma situação diferente da brasileira, não só no propósito de atuação, mas também no contexto em que as famílias estão inseridas.
Gessica Lima é militante do MST e está na Vergareña para ajudar a construir a Patria Grande do Sul. De acordo com ela, esse entendimento do contexto em que a comunidade local está inserida é uma questão desafiadora para o movimento.
“Eu acho que uma das maiores dificuldades que a gente tá tendo aqui é que a gente precisa entender o contexto das pessoas. E organizar essa gente partindo do zero, iniciando para que eles compreendam primeiramente o que é um acampamento. Como se constrói um acampamento. Qual é a lógica desse acampamento, qual é o objetivo, qual é a proposta que a gente apresenta através desse acampamento”, explicou ao Brasil de Fato.
O MST atua no país há quase 20 anos em parceria com as comunas venezuelanas. A Brigada Apolônio de Carvalho tem como eixos fundamentais o auxílio em projetos de agroecologia, além de formação técnica e a produção de alimentos orgânicos. Mas a relação com o governo também é uma diferença na atuação do movimento no Brasil e na Venezuela.
Enquanto em território brasileiro o MST tem como principal frente a luta pela reforma agrária e o objetivo de assentar famílias brasileiras, na Venezuela a ideia é garantir a formação técnica na produção agroecológica e participar na articulação política com movimentos populares e o próprio governo venezuelano.
O movimento será responsável pela administração e apoio logístico ao programa Pátria Grande do Sul. O projeto tem como objetivo produzir uma ampla variedade de alimentos em quantidade suficiente para abastecer uma parte considerável do país. Mas o MST indica um outro desafio fundamental para a organização e montagem do acampamento: a logística. O local é isolado e o acesso por terra é feito só por estradas de terra.
A região em que está a unidade das Forças Armadas na região é a que tem hoje uma estrutura para receber as primeiras famílias, os equipamentos, e fica a 90km de Puerto Ordaz, a cidade referência da região Oriente, no leste da Venezuela. Para chegar a essa estrutura é preciso pegar duas horas de estrada de asfalto e mais duas horas de estrada de terra, ou usar um avião monomotor e pousar em uma pista de terra que fica ao lado das casas.
Por isso, outra questão desafiadora para o MST é conseguir, junto da União Comunera, mobilizar famílias para irem ao local.
Há, no entanto, outras diferenças cruciais para a atuação em relação ao governo brasileiro. Por ser um projeto do governo, todo o apoio para a compra de equipamentos é feita pelo Ministério da Agricultura. Roçadeiras elétricas, tratores, motocultivadores e adubadoras já estão sendo comprados e levados à Vergareña. A maioria desses produtos são chineses, já que o país tem uma parceria estratégica com a China e importa maquinários sem tantos impostos.
A reportagem do Brasil de Fato esteve na Vergareña e acompanhou a chegada dos primeiros equipamentos ao local. Para os militantes, esse apoio do governo é fundamental para a execução do projeto. A meta é ter 300 famílias logo no início do projeto. Gessica Lima afirma que esse movimento é facilitado também pelo contexto de ser um projeto organizado pelo governo venezuelano.
“Vamos iniciar com 300 pessoas no acampamento, coisa que se a gente fosse fazer no Brasil, a gente ia ainda fazer um trabalho de base, a gente teria que ir para as periferias, teria que ir para esses territórios que são ocupados por pessoas que estão em situação de rua, para poder fazer uma conversa, para poder convencer as pessoas de ocupar esse território”, afirmou.
A relação com o governo venezuelano também é moldada dentro de uma questão política particular da Venezuela. Por ter um processo que é chamado pelo governo de Revolução Bolivariana, sendo pautado dentro dos marco do socialismo, há toda uma nova estrutura de organização social que difere do Brasil.
Altamir Bastos é agrofloresteiro e está ajudando na montagem da Pátria Grande do Sul. Segundo ele, a organização em torno das comunas é importante para projetos com esse caráter. As comunas são experiências de uma nova forma de organização social baseada na autogestão e com diálogo permanente com o Estado.
“Aqui os desafios são bem menores do que no Brasil. Porque há um processo organizativo diferente, mais avançado, que são os conselhos comunais. As pessoas estão inseridas nessas organizações e tem uma formação política, uma formação ideológica, um objetivo. Então fica bem mais fácil de se trabalhar. E existe um governo que tem a intencionalidade do avanço do processo revolucionário. E isso muda tudo”, afirmou ao Brasil de Fato.
De acordo com ele, essa mudança de perspectiva é fundamental também para a própria distribuição dos alimentos, já que os conselhos comunais e as comunas têm um contato direto com a população e podem auxiliar nessa logística.
Um dos pontos fundamentais para o MST dentro da mudança da perspectiva de produção que existe no território é mudar a forma de limpar o terreno. Hoje, as comunidades locais usam o fogo entre as safras para poder recomeçar um novo plantio. De acordo com os agrofloresteiros do MST, apesar de aumentar a produtividade em um primeiro momento, a repetição dessa prática prejudica o solo e reduz a capacidade do plantio a cada nova colheita.
A Vergareña também tem uma particularidade geográfica, por ser uma área de transição entre um bioma úmido como o amazônico e um seco como a savana. Por isso, o fogo também prejudica a biodiversidade de um local que mescla especies de diferentes espaços.
Para o movimento, todo esse contexto faz com que a montagem do acampamento tenha uma série de desafios, mas coloca a Venezuela em uma posição favorável para o desenvolvimento deste tipo de projeto.
“O MST não veio ocupar terra, até porque a gente não quer transformar a Venezuela no Brasil. Porque a Venezuela já está bem mais avançada do que o Brasil nessa questão. Para além de levar a sério um dos nossos princípios de solidariedade entre os povos, a gente também quer entender um pouco do processo da Revolução Bolivariana. E a gente quer beber nessa fonte, como é que a gente constrói esse processo lá também. Então MST está aqui para fazer essa troca”, concluiu Gessica Lima.