Após mais de uma década de disputas judiciais, a comunidade Guarani Mbya da Terra Indígena (TI) Kuaray Haxa, no litoral do Paraná, assinou com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) um termo de compromisso que reconhece sua presença tradicional em parte da Reserva Biológica (Rebio) Bom Jesus. O acordo, celebrado em 20 de fevereiro, garante a permanência e o modo de vida de sete famílias indígenas em área sobreposta à Unidade de Conservação (UC).
A medida, no entanto, reacendeu tensões. Mais de 60 organizações ambientalistas publicaram uma carta pela proteção da Mata Atlântica, que se opõe a casos de sobreposições, endereçado à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O documento cita que situações como a presença indígena na Rebio Bom Jesus representam uma ameaça à biodiversidade e afrontam a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc).
Localizada entre os municípios de Antonina, Guaraqueçaba e Paranaguá, a Rebio Bom Jesus tem 34 mil hectares e sobrepõe a TI Kuaray Haxa, ainda em processo de demarcação pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). “A Rebio foi criada em cima de nosso território tradicional sem que fôssemos consultados. Passamos então a ser perseguidos, tratados como invasores em nossa própria terra. Tratados como ameaças à Mata Atlântica na qual nossos parentes sempre viveram e a qual temos como missão defender”, diz carta divulgada pela comunidade Guarani em 17 de abril.
O acordo estabelece duas zonas de uso. Na área de uso intensivo, com 19 hectares, as famílias poderão construir moradias, cultivar roças e criar animais domésticos. Já a zona de uso disperso, de 6.698 hectares, permite práticas tradicionais (nhandereko) com base nas diretrizes do documento.
Segundo o ICMBio, responsável pela gestão da Rebio, o termo foi elaborado com apoio da Funai e do Ministério Público Federal e não há indícios de impacto ambiental relevante desde a ocupação indígena. A autarquia também afirma que a caça permitida no local segue regras rígidas e será monitorada pelo Programa Monitora, que acompanha a biodiversidade em UCs.
“Foi uma conquista histórica. Pela primeira vez, um documento oficial reconhece nossos saberes e busca unir os conhecimentos indígenas e científicos na defesa do nosso território”, afirma a comunidade em nota.

Outro manifesto em defesa do Snuc, se mostra contrário ao acordo e se opõe, principalmente, à liberação da caça no território. “A área é pequena e abriga espécies vulneráveis. A segurança alimentar não pode mais depender exclusivamente da caça. É preciso buscar alternativas sustentáveis”, disse João de Deus, coordenador da Rede de Ongs da Mata Atlântica (RMA).
Em resposta, os Guarani anunciaram a suspensão temporária da atividade de caça e manifestaram interesse em colaborar com o monitoramento da fauna. “Queremos mostrar que nossa presença não ameaça os animais. Pelo contrário, temos ajudado a protegê-los”, afirmaram em carta.
O ICMBio reforça que o termo é dinâmico e poderá ser ajustado conforme os resultados do monitoramento. “Caso o monitoramento da biodiversidade indique impactos relevantes sobre a fauna naquele território, será necessário o ajuste do termo de compromisso”, diz a instituição. A autarquia também destacou que outros fatores, como monoculturas com agrotóxicos, caça predatória por não indígenas e extração ilegal de palmito, representam ameaças maiores à biodiversidade local.
João de Deus ressalta que o manifesto não se restringe à Rebio Bom Jesus e nem é contrário às demandas indígenas. “A crítica é ao modo como esses acordos estão sendo conduzidos. Eles geram conflitos com a própria Lei do Snuc”, afirma. Para ele, os processos vêm sendo realizados “de forma unilateral, sem diálogo adequado com a sociedade civil e especialistas em conservação”.
O Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Guaraqueçaba criticou o posicionamento de organizações preservacionistas em relação à ocupação da TI Kuaray Haxa. Representando comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas da região, o fórum divulgou, em abril, uma carta em defesa da permanência tradicional no território. O documento recebeu apoio de diversas entidades comunitárias e socioambientais, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o Instituto Socioambiental (ISA) e a organização Terra de Direitos.
Guarani Mbya reafirmam vínculo ancestral com território da Rebio Bom Jesus

As manifestações contra o acordo que garante a permanência da comunidade na TI Kuaray Haxa evocam a tese do “marco temporal”, argumento já rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O discurso ignora evidências históricas e jurídicas da ocupação tradicional dos Guarani Mbya na região de Mata Atlântica, onde hoje se localiza a Reserva Biológica Bom Jesus, no litoral do Paraná.
Segundo nota técnica da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), os Guarani já habitavam a área antes da criação da Unidade de Conservação, em 2012. “No caso da Reserva Biológica Bom Jesus, aqueles que se opõem aos direitos do povo Guarani Mbya fazem a mesma alegação, de que os indígenas supostamente não estavam na região quando a unidade foi instituída. Contudo, a tese contrária aos indígenas não tem sustentação jurídica, pois foi afastada pelo STF. E no caso concreto há farto material de prova que indica a presença indígena na região há séculos”, afirmam os advogados Fernando Prioste e Alice Dandara, do ISA.
A presença Guarani na região é registrada desde os primeiros relatos de colonizadores, conforme aponta nota técnica elaborada pela Rede de Pesquisa em Diversidade, Conservação e Uso da Fauna da Amazônia (RedeFauna) e pela CGY. A comunidade de Kuaray Haxa afirma estar em um território ancestral. “Estamos em um lugar que já era habitado por nossos antepassados desde antes da invasão deste continente pelos não indígenas”, afirma carta pública da comunidade.
“Trata-se de uma região sagrada para nós, na qual nosso povo se manteve presente ao longo dos séculos, apesar das diversas tentativas de expulsão que sofremos por parte dos não indígenas, que denominamos juruá. Foi aqui que nossos bisavós e nossos avós viveram. Nesses lugares, nosso povo passou por trabalhos forçados, prisões e torturas. Obrigavam-nos a derrubar as matas e a plantar grandes monoculturas. Assim, por meio da violência, os juruá roubavam nossas terras e buscavam matar nossa cultura”, diz a carta.

Apesar das expulsões e da destruição das florestas, as comunidades Guarani Mbya mantiveram uma relação contínua com o território. A área onde está a TI Kuaray Haxa foi uma das principais zonas de refúgio para esses povos. O traçado atual da rodovia PR-405, por exemplo, segue um antigo caminho tradicional indígena, o único acesso terrestre que conecta o litoral do Paraná ao de São Paulo.
A retomada do território foi iniciada em 2004, segundo o cacique Rivelino Gabriel de Castro. “Meus avós eram do litoral do Paraná. Tivemos uma visão que nos conduziu a retornar. Começamos uma caminhada por essa retomada e levamos quase 10 anos para chegar onde estamos hoje. Quando chegamos, sentimos que era ali o lugar certo”, conta. “Graças a Nhanderu [‘nosso pai’ ou ‘criador’, em guarani] e aos espíritos que nos guiavam, pudemos finalmente chegar nesse local sagrado no qual viveram nossos antepassados. Foram eles que nos trouxeram até aqui. Eles nos deram a missão de viver nessas matas e protegê-las.”
O acordo com o ICMBio fortaleceu esse compromisso. “Estamos aqui para cuidar, não para destruir. Esse termo nos deu um pouco mais de liberdade para viver melhor, plantar, construir nossas casas de forma tradicional. Foi bom para a comunidade”, afirma.
O cacique relata que há hoje uma boa relação com o órgão ambiental. “A gente entendeu que precisa cuidar da terra juntos, temos a obrigação de proteger nosso território”, diz. Ele, no entanto, não compreende as manifestações contrárias à presença indígena na região.
“A gente se sente muito triste. Somos atacados sem motivo. Dizem que defendem o meio ambiente, mas não nos escutam, não vêm até aqui, não perguntam se o que estão falando é verdade. Para nós, povo Guarani, a floresta e a terra são compatíveis com nossa cultura. Vivemos em harmonia com elas.”
Comunidades indígenas impulsionam preservação ambiental

Segundo a comunidade Guarani, organizações ambientalistas contrárias ao acordo ignoram debates históricos sobre como garantir a preservação ambiental em áreas de sobreposição entre Unidades de Conservação e Terras Indígenas. Ignoram também estudos recentes que reconhecem o papel dos Guarani na conservação da biodiversidade e no combate à caça ilegal na região, conforme apontam documentos do próprio ICMBio.
Um levantamento do MapBiomas mostra que, de 1985 a 2022, as TIs perderam menos de 1% da vegetação nativa. No mesmo período, áreas privadas registraram perda de 17%. O estudo revela que as terras indígenas ocupam 13% do território brasileiro, abrigando 112 milhões de hectares — o equivalente a cerca de 19% da vegetação nativa do país. Para efeito de comparação, um hectare equivale a um campo de futebol.
Os dados reforçam a importância da demarcação dos territórios indígenas para a preservação da biodiversidade e o equilíbrio climático. Vera Yapuá Rodrigo Mariano, assessor jurídico da CGY, destaca que a legislação brasileira reconhece a compatibilidade entre a proteção ambiental e os direitos territoriais dos povos indígenas, assegurando o exercício de atividades tradicionais. “Além das comprovações científicas de que os povos indígenas protegem as florestas, temos uma garantia do Supremo Tribunal Federal no julgamento do tema 1031, com repercussão geral no caso RE 1017365”, afirma.
Outro estudo, realizado pelo ISA com base em dados do MapBiomas entre 1985 e 2020, reforça o papel central dos povos indígenas e tradicionais como guardiões da floresta brasileira. Segundo a pesquisa, além da alta tecnologia social envolvida no manejo tradicional, a presença desses povos amplia a governança territorial e contribui para a recuperação de áreas degradadas.
A análise mostra que TIs e Reservas Extrativistas (Resex) apresentaram melhor desempenho na proteção florestal do que UCs de proteção integral ou Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Esses territórios tradicionais também funcionam como barreiras eficazes contra o desmatamento.
O levantamento indica que 40,5% das florestas brasileiras estão inseridas no sistema nacional de áreas protegidas, que inclui Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e Unidades de Conservação. Dentro desse grupo, os territórios ocupados por povos indígenas e populações tradicionais — como Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentável — preservam cerca de 30,5% das florestas do país.
Nesses territórios, os índices de preservação e regeneração florestal são mais elevados, e os ciclos de desmatamento e regeneração são menos intensos. Isso aponta para práticas de manejo da paisagem que não degradam os ecossistemas.
Os resultados refletem o conhecimento tradicional acumulado por esses povos. Segundo Antonio Oviedo, coordenador do Programa de Monitoramento do ISA, os modos de vida indígena são fundamentais para qualquer estratégia de conservação. “Esses povos possuem outras concepções de natureza e formas distintas de interagir com o ambiente. Seus saberes estão entranhados nas paisagens. Os modos de ocupação tradicional não só dificultam o desmatamento como também favorecem a regeneração”, afirma.
Apesar disso, João de Deus, coordenador da RMA, alerta para a necessidade de se definir com clareza o que se entende por manejo sustentável. “Vários elementos da biodiversidade da Mata Atlântica estão em situação crítica, com espécies ameaçadas de extinção. Qualquer intervenção, seja por indígenas ou não, que possa agravar esse risco precisa ser avaliada com muito cuidado”, pondera.
Judiciário reconhece papel dos povos tradicionais na conservação

O tema ainda carece de jurisprudência consolidada, mas decisões recentes têm reconhecido a prevalência dos direitos dos povos indígenas e tradicionais. “O reconhecimento de seus direitos territoriais não compromete a conservação ambiental. Ao contrário, sua presença reforça a proteção dos ecossistemas”, afirma os advogados Prioste e Dandara, do ISA.
Um dos casos emblemáticos é o do quilombo Bombas, em São Paulo, em que a Justiça considerou inconstitucional a sobreposição do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira sobre o território da comunidade.
Para os advogados, é comum que ambientalistas contrários à causa indígena acabem servindo de instrumento para os interesses de ruralistas. Eles citam como exemplo a disputa em torno da Reserva Biológica do Sassafrás, em Santa Catarina, onde agronegócio e ambientalistas pressionaram o STF a validar a tese do marco temporal. A Corte, no entanto, rejeitou o argumento no julgamento com repercussão geral, reafirmando o Tema 1031.
Nesse contexto, o racismo ambiental aparece como elemento estruturante da oposição aos direitos indígenas. “Essa oposição ignora o papel dos povos na conservação e propaga inverdades, como a ideia de que seus modos de vida causariam danos ao meio ambiente. Isso não se sustenta. Trata-se de uma disputa entre duas visões: a dos que enxergam a natureza como separada do humano e a dos indígenas, que a veem como parte de sua existência. A justiça socioambiental exige reconhecer esses povos como legítimos guardiões de seus territórios e dos biomas brasileiros”, concluem os advogados do ISA.