Objetos boiando. Cachorro nadando. Um cavalo no telhado. Prédios públicos inundados. Cenas que vivemos e vimos em 2024, o ano da grande enchente. Objetos e documentos que faziam parte das nossas vidas. A foto da mãe, a foto do aniversário de um ano da criança, a foto da viagem de férias, a foto da avó. Lembranças que contam a nossa história e que não estão mais nos álbuns da família. Documentos que narram a história do Rio Grande do Sul e foram seriamente danificados ou perdidos.
O esforço de recuperação da memória coletiva foi apresentado no 6 Seminário Brasileiro de Museologia (Sebramus), realizado em Teresina, Piauí, em março, pela museóloga Doris Couto, diretora do Museu Julio de Castilhos, doutora em História, Teoria e Crítica de Arte. Ela coordenou o grupo de técnicos, voluntárias e voluntários que se empenhou no resgate da história com o objetivo de salvar acervos e minimizar impactos na administração pública e na vida de cada um de nós.
Ao mesmo tempo, para que não esqueçamos a tragédia e para que ela nunca mais aconteça, também durante o Sebramus, foi apresentado o Museu de Percurso das Enchentes-RS (MUPE), uma iniciativa de professores e alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A jornalista e graduanda em Museologia Letícia Heinzelmann, foi quem falou sobre o MUPE no Seminário.
O resgate
As inundações que assolaram o Rio Grande do Sul em 2024 não pouparam o patrimônio cultural do estado, relembra a museóloga Doris Couto. Levantamento realizado por técnicos revelou que 58 acervos, entre museus, memoriais e coleções privadas, foram atingidos pela força das águas, deixando um rastro de memórias encharcadas e um futuro incerto para inúmeras peças de valor histórico e afetivo inestimável.
A museóloga explica que nos primeiros dias da tragédia, a dimensão do impacto sobre os acervos ainda era incerta, agravada pela falta de informações e pela dificuldade de acesso às áreas afetadas. Estradas bloqueadas transformaram a urgência do salvamento em um desafio logístico complexo, impedindo o deslocamento de equipes especializadas e de suprimentos essenciais para o tratamento das obras. Além disso, havia o risco da contaminação por lama e esgoto, a fragilidade de documentos e objetos encharcados e a necessidade de ambientes controlados para evitar danos irreversíveis, como o mofo, por exemplo.
Em meio ao caos provocado pela enchente, o Sistema Estadual de Museus (SEM/RS) assumiu a coordenação das ações de voluntárias e voluntários, primeiramente realizando o cadastro de 570 pessoas interessadas em trabalhar no resgate e no restauro dos itens e, na sequência, encaminhando os voluntários para o trabalho de campo de acordo com sua formação e necessidade das instituições. Cerca de 80 pessoas atuaram nos salvamentos em várias cidades gaúchas.
O SEM/RS centralizou os donativos destinados ao salvamento dos acervos, como os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), papéis absorventes e equipamentos diversos, vindos de outros estados. A logística para receber esses materiais necessitou da articulação do Instituto Brasileiro de Museus com a Força Aérea Brasileira e o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A reconstrução dessas memórias encharcadas demandará tempo, investimento e a união de esforços entre instituições públicas, privadas e a sociedade civil, afirma Doris. E alerta, “é fundamental o estabelecimento de planos de recuperação emergenciais e a longo prazo, que contemplem desde a higienização e restauração das peças até a adequação de espaços para seu acondicionamento seguro”. As inundações de 2024 exibiram a vulnerabilidade do patrimônio cultural diante de eventos climáticos extremos, reforçando a urgência de medidas preventivas e de planos de contingência para proteger a história.
No âmbito das instituições do governo do estado o trabalho especializado se deu desde o início da catástrofe e avançou para a contratação de serviços de restauro de aproximadamente 80 mil documentos do Museu do Carvão e das 4.000 obras de arte Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), além dos prédios destes mesmos museus e ainda da Casa de Cultura Mário Quintana e do Memorial do Rio Grande do Sul.
O MUPE
A jornalista e graduanda Letícia Heinzelmann, que apresentou o projeto do Museu de Percurso das Enchentes-RS (MUPE) no Sebramus em nome de mais dois colegas, explica que “apenas ao lembrar do passado, é possível trabalhar para prevenir novas tragédias”. E recorre ao ensinamento do filósofo francês Paul Ricoeur para dizer que o “trabalho de memória deve ser recorrente e obsessivo e, para tanto, é necessário que haja lembretes permanentes que nos confrontem com o sentimento incômodo da dor e do trauma, por mais que pareça reconfortante esquecer”. Lembrar, mesmo que cause desconforto, é um dever de memória para evitar que novas tragédias voltem a acontecer.
Partindo da Ponte de Pedra, no Largo dos Açorianos, a caminhada guiada do MUPE passa por pontos simbólicos da enchente de maio de 2024, como a Escola de Administração UFRGS, a Usina do Gasômetro, a Rua dos Andradas e a Praça da Alfândega, terminando próximo ao Mercado Público de Porto Alegre. O primeiro percurso guiado aconteceu no Dia Estadual do Patrimônio, em 17 de agosto de 2024, um sábado, com todos os sinais da tragédia ainda bem visíveis.
Em cada parada, são abordados os impactos das inundações, feitas correlações com outras áreas e setores atingidos, além da rede de solidariedade e cooperação que se seguiu ao desastre. Este roteiro pelo Centro Histórico é o primeiro trajeto mapeado, mas o percurso será ampliado e identificará outros pontos significativos da memória da enchente de 2024.
A ausência de marcos, ou a dificuldade em identificar os poucos existentes, levou a uma falta de cuidado com os sistemas de proteção contra cheias em todo o Rio Grande do Sul, salienta Letícia. O MUPE busca registrar as memórias das enchentes, tanto de forma virtual, ao delimitar em mapa interativo pontos afetados por inundações, quanto físico, ao propor percursos guiados em caminhadas culturais.
Os lembretes podem ser marcos grafados nas cidades, com a finalidade de servirem de antimonumentos, que cumprem a missão de fazer rememorar tragédias, períodos de exceção e outros momentos de sofrimento coletivo. A ausência de marcos, ou a dificuldade em identificar os poucos existentes, levou a uma falta de cuidado com sistemas de proteção contra cheias em todo o Rio Grande do Sul, salienta Letícia.
O museu de percurso é um dos eixos de atuação do Projeto de Extensão da UFRGS Greenart em Ação pelo Patrimônio Cultural de Porto Alegre, coordenado pelos docentes Henri Schrekker (Instituto de Química) e Jeniffer Cuty (Museologia), e conta com apoio do Sistema Estadual de Museus (SEM-RS).

Os números
A Fundação Pão dos Pobres, fundada em 1895 e que atende mais de uma mil crianças e adolescentes, recebeu ajuda de especialistas e voluntários para o salvamento de seu acervo. Lá a prioridade foi o acervo arquivístico. O grupo está trabalhando com 850 itens arquivísticos e 260 itens museológicos.
Em relação ao importante conjunto de acervos Fayet, Araújo e Moojen, que reúne itens da Arquitetura Moderna Brasileira no sul do país, como projetos e obras representativas de Carlos M. Fayet, Cláudio L. G. Araújo e Moacyr Moojen Marques, o tratamento dos itens vai ser retomado com a Rouanet Emergencial. O acervo tem cerca de 2.700 itens e 345 deles já foram tratados.
O acervo do grupo multicultural Ói Nóis recebeu tratamento até dezembro de 2024. Logo depois, o grupo mudou de sede e agora está negociando um prédio com o Ministério da Cultura (MINC) e a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE). Por esta razão o trabalho de recuperação do material foi suspenso. Do acervo do Ói Nós 835 itens foram recuperados, ou seja, foram estabilizados, mas 50% deles necessitam de restauração.

Em Porto Alegre, o diagnóstico realizado pelos especialistas aponta que cerca de 4.000 itens, de mais de 700 artistas, foram de algum modo afetados durante a inundação, pelo alcance da água ou pelo prolongado efeito da umidade no interior dos prédios. A maior parte das obras é do acervo em papel (cerca de 300 fotografias, 1.000 desenhos e 2.400 gravuras, além de pinturas, esculturas e técnicas mistas.
Em relação ao acervo arquivístico, cerca de oito milhões de documentos ainda estão em processo de secagem. Nem tudo pode ser congelado, que é uma técnica empregada para depois entrar em cena o trabalho de restauro. No interior do estado, um grande volume de peças ainda necessita de restauração, com destaque para mobiliário, órgãos e pianos, totalizando cerca de 250 peças nos municípios de Igrejinha e Montenegro. Outros municípios também foram fortemente afetados.
As consequências da enchente, o número de itens recuperados e perdidos e o que fazer para impedir que a catástrofe se repita, mobilizou profissionais da área do patrimônio. Os especialistas participaram do 15º Fórum Estadual de Museus, realizado de 8 a 11 de abril, e elencaram as ações que necessitam ser implementadas para a prevenção de eventos futuros, entre eles a urgência da elaboração do plano de gestão de riscos e planos de emergências nas instituições com acervos, a articulação permanente de voluntários e sua capacitação e a qualificação geral dos museus, memoriais e locais de guarda de acervos.

Realizado no campus da Universidade Federal do Piauí, a sexta edição do Seminário Brasileiro de Museus, o Sebramus, deu ênfase à participação das comunidades em experiências museológicas que destacam a partilha de conhecimentos, as relações entre as pessoas, seus patrimônios e os territórios que habitam. Neste sentido, as duas experiências gaúchas apresentadas em Teresina cumpriram integralmente com o propósito do evento.
Um dos grupos de trabalho do Sebramus discutiu o processo de musealização de memórias traumáticas, que abre portas para atores antes apartados dos espaços expositivos. Nessa iniciativa há, por exemplo, a musealização de lugares de memória da ditadura no Brasil, assim como a violência imposta contra as populações indígena e negra e aos grupos LGBTQIA+, além de vítimas de crimes ambientais. Neste contexto é que surge a proposta do Museu de Percurso das Enchentes-RS, o MUPE.
