Há pouco mais de uma semana, no feriado prolongado de Páscoa, o Rio Grande do Sul foi marcado por uma escalada do feminicídio, com 10 vítimas fatais. Entre elas está a hamburguense Caroline Machado Dornnelles, 25 anos, grávida de três a quatro meses, que foi morta a facadas pelo ex-companheiro, na cidade de Portão (RS). Movimentos feministas têm se manifestado frente a este cenário de aumento da violência de gênero. Nesta quarta-feira (30), ao meio-dia, ocorre um ato pela vida das mulheres na Praça da Matriz, no centro de Porto Alegre.
Na sexta-feira (25) passada, a Associação de Moradores do Kephas II e o Grupo de Mulheres NH realizaram uma manifestação no bairro Kephas onde nasceu e cresceu Dornelles, em Novo Hamburgo (RS). Assassinada na madrugada da sexta-feira (18) por Carlos Daniel de Oliveira, 24 anos, a hamburguense era uma dos cinco filhos de Andréa Ligioni Machado, 45 anos. De acordo com a Polícia Civil, Oliveira se entregou à polícia, em Porto Alegre, no mesmo final de semana do crime, acompanhado de sua advogada, e usou seu direito de ficar em silêncio.
A história de Dornelles é similar a de muitas mulheres: idas e vindas no relacionamento, silenciamento, violência psicológica (afastamento da família e amigos), ausência de denúncia, e uma filha órfã, de cinco anos, de um relacionamento anterior. Como contam seus familiares ao Brasil de Fato RS.

“Ele proibia ela de falar com a gente”
“Caroline era uma pessoa que tinha esperança, sonhos. Era um pouco dramática pelo fato de acreditar muito no amor, então a gente tinha ela como a dengosa da família”, descreve Gabriela Fernanda Machado, irmã de Dornelles. Foi ela que recebeu a notícia da morte da irmã, através de uma postagem no Facebook. Foi quando a família começou a ligar para os dois, e ninguém atendeu. “Então eu fui até a delegacia e eles me falaram que ela estava lá no local ainda. Mas a gente não quis acreditar.”
O relacionamento tinha um ano e oito meses de idas e vindas. “Quando ela conheceu esse rapaz, eu falei, ‘Carol, esse cara não presta’. E ela não deu bola. Ela acabou brigando com a gente, porque éramos contra o casamento”, conta a mãe Andréa Ligioni Machado, 45 anos, que não falava há dois meses com a filha. “Ele proibia ela de falar com a gente. Proibia de ter rede social. Era assim o casamento deles, era um vai e volta. Várias vezes eu fui buscar ela lá, com as coisas dela, trazia pra casa. Quando eu vi, ela voltava de novo, ele falando que ia mudar. Ela acabava voltando.”
Já a irmã tinha falado com ela poucos dias antes do crime.“Nós, da família, não sabíamos a gravidade que estava causando. Eles não transpareciam. Eles queriam tanto um filho, que agora a gente pensa o que que aconteceu. Qual foi o motivo? O que foi falado? Porque não teve muito tempo pra isso ter acontecido”, conta.
A filha de Dornelles, de cinco anos ainda, não sabe da morte da mãe. A família está procurando a melhor maneira de contar. A menina está na casa do pai.

Problema de toda a sociedade
Presente no ato, a professora e integrante do Comitê Popular da Mulher de NH Jorgia Seibel afirma que a mobilização marcou a indignação de todos os que estavam presentes. “Foi muito chocante todas essas mortes, esses feminicídios. Isso só reflete a importância de atos como esses. A violência não diminui contra a mulher. Nós precisamos ir pra rua e combater essa violência em todas as instâncias. A violência não é um problema só da mulher, mas de toda a sociedade, isso é o que a sociedade precisa entender.”
Para a presidente do Conselho Municipal de Direitos das Mulheres de Novo Hamburgo (Comdim), Isadora Cunha, é preciso que as pessoas levem a sério o combate à violência contra as mulheres e saibam que não basta prender agressores. Ela sugere que as empresas se engajem no combate à violência. “É preciso investir em políticas públicas, em atendimento às mulheres. Precisamos que as políticas públicas existentes, que a informação sobre medidas protetivas chegue até as mulheres, que elas consigam fazer o pedido, porque mesmo que haja descumprimento das mesmas, as mulheres já estarão na rede.”
“Não pode burocratizar”
Na última quinta-feira (23), a Polícia Civil e a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP) anunciaram a Medida Protetiva de Urgência (MPU) online. Na avaliação da professora e vereadora de Novo Hamburgo Luciana Andréia Martins (PT), apesar do recurso ser importante, é ao mesmo tempo limitante, já que para a mulher fazer o registro precisará ter conta no gov.br. “Isso vai impedir que muitas mulheres possam fazer esse registro online. Hoje a população muitas vezes não tem acesso a essa plataforma. Temos que avançar, a ferramenta ideal não pode burocratizar”, ressalta.
A parlamentar também enfatiza a falta de políticas públicas, especialmente em âmbito estadual e municipal. “A gente vive aqui na cidade a ausência de uma secretaria de mulheres, ausência de um centro de referência para as mulheres, de uma delegacia especializada, que esteja 24 horas à disposição. Assim como uma fragilidade de políticas públicas, um governador que não investe no combate à violência contra as mulheres. Para além disso a gente vive na nossa sociedade um incentivo à política de ódio às mulheres. Vemos a extrema direita avançar e a pauta das mulheres incomoda”, opina.
Martins protocolou Projeto de Lei que dispõe sobre a obrigatoriedade das Instituições de Ensino Municipal de Novo Hamburgo ofertar nas aulas, ao menos, em um planejamento coletivo anual, assim como em reuniões ampliadas da comunidade escolar, o assunto da violência contra as mulheres. Também, após audiência pública, foi construído um documento que busca reativar o Centro de Referência da Mulher (CRM) que havia na cidade.

Conscientização desde a infância
“Caroline foi nossa estudante, andou pelos corredores da nossa escola. Uma professora disse que estava aqui na sala de aula há poucos anos. Era uma menina linda, com um sorriso lindo, uma menina doce, tranquila”, descreve a diretora da escola municipal Adolfina Diefenthaler, Andréa Zimmer.
De acordo com a diretora, a notícia do feminicídio fez com que o tema da violência contra as mulheres fosse debatido nas salas de aula, e que também fosse criado um coletivo, que levará o nome de Caroline. “Nós, como escola, temos o dever de falar sobre isso na sala de aula. Não pode ser um tabu, porque é na infância que a gente vai prevenir, é na infância que a gente tem que refletir, tanto as meninas, quanto os meninos. Conversamos com as meninas e uma delas perguntou: ‘diretora, por que que os meninos são tão agressivos com a gente aqui dentro dessa escola?’. Eu disse que não é só dentro dessa escola, tem toda uma sociedade por trás”, conta.

Basta de violência
Emocionada, a aposentada, de 63 anos, Eliane Terezinha Vieira de Fátima, conta que durante quase 20 anos viveu um casamento marcado por violência. “Eu não tinha ninguém para quem falar, só minha mãe. Quantas vezes ela derramou lágrimas de me ver toda quebrada. Ela dizia: ‘filha, larga a mão desse homem’. Mas eu tinha aquela mente que o casamento era pra vida toda. Quando eu fui me queixar, quando eu fui pra Justiça, o juiz me chamou de louca. Até que um dia eu abri meu olho, ele tentou matar a minha filha. Se hoje em dia eu tenho um tumor na cabeça, é das pauladas que eu levei. Hoje em dia eu fico feliz que a mulher pode se manifestar. O que fizeram com a Carol? O que fizeram com as outras? Isso não é homem não”, afirma.
Secretária de Associação de Moradores, Otilia Tereza de Almeida comenta que é preciso que as mulheres saiam das relações de violência. “Nós mulheres, mesmo amando o companheiro, a gente se separa, vai criar os filhos, trabalhar, lutar. Não precisa matar ninguém. Imagina se cada mulher que quer se separar, não quer viver mais com o companheiro, vai ser morta. Isso não é justo.”
Para a irmã e mãe de Caroline Machado, as mulheres precisam denunciar, falar sobre a violência que estão sofrendo. “Mesmo que elas não queiram, é preciso que elas falem, porque ninguém é dono de ninguém. A gente não sabe se a gente vai estar aqui amanhã. Então, peça medida protetiva, peça ajuda policial, qualquer ajuda que for possível, porque pode ser o seu familiar que vai estar sofrendo amanhã”, desabafa Gabriela Fernanda Machado.
“A Caroline era minha filha, era tudo pra mim. Não tem explicação. Passa muita coisa na minha cabeça. Eu só peço que toda mulher, quando se sentir ameaçada, ligue o quanto antes. Não pense que ele vai mudar, que não vai. Eles não vão mudar, eles não mudam”, finaliza Andréa Ligioni Machado.
Ato em Porto Alegre

O ato chamado para este quarta-feira (30) na Praça da Matriz, em Porto Alegre, é organizado pelo Levante Feminista contra o Feminicídio, o Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres, o Bancos Vermelhos e o Fórum Estadual de Mulheres.
