Nas primeiras sequências de The Last of Us, estamos em 1968. São imagens de um programa de televisão antigo, no qual cientistas comentam os impactos do aquecimento global na proliferação de novas doenças. Ao ser questionado pelo apresentador do talk show, um dos convidados, Dr. Neuman, um epidemiologista, diz que o grande risco futuro não são os vírus, mas os fungos. E que embora naquele momento a grande maioria deles não possa sobreviver no corpo humano, alterações na temperatura do planeta poderiam criar um cenário de catástrofe pandêmica.
Os bons filmes de catástrofe sempre começam com avisos de cientistas, sumariamente ignorados por governantes e por negacionistas fanáticos.
Nova abordagem
Até então, na longa tradição de ficções que envolvem pandemias zumbis, os vírus eram os grandes protagonistas. Para tentar revitalizar um gênero que parecia esgotado e saturado com exaustivas temporadas de The Walking Dead, inúmeros jogos sem imaginação e poucos filmes realmente interessantes – como Extermínio (2002), do premiado diretor Danny Boyle, por exemplo –, os criadores do jogo The Last Of Us, em 2013, tentaram inovar: era um fungo, esse estranho ser vivo que habita um espectro difuso entre o animal, o vegetal e o mineral, que seria o causador da quase extinção humana. Mas a inovação da série vai um pouco além disso. Talvez inspirados na jornada de A Estrada, de Cormac McCarthy, é menos a carnificina e mais os dilemas morais e os arcos emocionais das personagens que conquistaram os gamers há dez anos e vem conquistando os fãs da adaptação da HBO desde 2023.
Já no primeiro episódio somos apresentados ao Joel, personagem interpretado pelo carismático ator chileno Pedro Pascal, e que sofre um baque emocional brutal: em 2003, quando a pandemia eclode, sua filha é morta por um soldado do exército que tinha ordens de tentar isolar a cidade da contaminação. Esse trauma irreparável vai guiar o arco narrativo da primeira temporada.
Vinte anos depois da eclosão do fungo que zumbifica a humanidade, Joel vive fazendo contrabandos numa zona de quarentena federal, gerida por uma força militar, chamada Fedra, que faz a gestão do estado de exceção perpétuo. Em contraposição a essa gestão militarizada, surgiu um grupo rebelde chamado Vaga-Lumes. Joel recebe a missão de escoltar Ellie, uma garota que é imune à doença causada pelo fungo, para um centro médico onde tentará investigar a possibilidade de uma cura.
Amor sobre as ruínas
Nessa jornada, os dois constroem laços. Joel acaba servindo de referência paterna para Ellie, órfã desde sempre, já que a mãe faleceu durante o parto. E Joel acaba tendo uma segunda chance de viver a paternidade e, talvez, elaborar o trauma da morte da filha.
Um amor genuíno que se ergue sobre as ruínas do mundo. Essa mensagem vai dar o tom da primeira temporada. Inclusive pegando de surpresa os espectadores no terceiro episódio, que funciona quase de maneira autônoma, como um conto fechado.
Nele, vemos o arco de história de amor de Bill e Frank, um casal homoafetivo que passa vinte anos juntos numa casa muito bem protegida e isolada por cercas e armadilhas. Bill era um sobrevivencialista e estava totalmente equipado para o fim do mundo. Frank aparece um dia em sua porta e, a despeito de toda a desconfiança, Bill o acolhe. E eles não apenas sobrevivem, mas vivem uma grande história de amor, ficando juntos até o final da vida.
Quando chegamos ao final da temporada, no entanto, esse subtexto de parábola de amor entra em curto-circuito. Para entender como Ellie é imune, os Vaga-Lumes vão precisar fazer uma cirurgia no seu cérebro. Ao saber que Ellie vai morrer durante o procedimento, Joel entra em parafuso e comete um massacre no hospital.
Se no começo da história um soldado matou sua filha recebendo ordens que em tese estavam relacionadas ao interesse coletivo, no final da história Joel mata não só as pessoas ali no hospital, mas a possibilidade de uma cura coletiva, visando exclusivamente um sentimento pessoal.
Qual a coisa certa? A temporada termina com um clima agridoce. Estamos afeiçoados a Joel e sua dor, depois de passar nove episódios ao seu lado – e, de repente, ele é um assassino. E mesmo que racionalmente seu gesto seja plausível, não parece ressoar ético. Por outro lado, deixar a garota ser sacrificada também não parece aceitável. Eis um dilema moral para o qual não há saída confortável. De tanto combater monstros, podemos nos tornar piores que eles.
Na segunda temporada, temos o desdobramento desse ato radical: a filha de um dos médicos mortos quer vingança. Joel é brutalmente assassinado na frente de Ellie, que agora quer lavar sua dor com as próprias mãos. Em alguns casos, a vingança e a violência podem ser uma forma de restabelecimento e defesa da justiça, ainda mais em um mundo sem instituições para amortecer conflitos. Em outros casos, a vingança é só satisfação de um certo prazer.
Qual a coisa certa?
Zumbis como metáfora
O primeiro filme de zumbi é White Zombie, de 1932, cuja trama se passa no Haiti. A obra veio a público praticamente na mesma época que dois personagens canônicos do terror, Drácula e Frankenstein, que chegaram aos cinemas em 1931. Ligado à mitologia haitiana do morto-vivo, popularizada naquele momento pelo livro A ilha mágica (1929), de William Seabrook, um viajante ocultista, White Zombie é a primeira aparição do morto-vivo na tela, inspirados por uma peça de teatro.
A despeito da baixa qualidade do filme, do exotismo e de um tanto preconceito dos textos de Seabrook, o zumbi haitiano eclodiu no imaginário tanto como metáfora-sintoma para o colonialismo – o EUA ocupavam o país há sete anos – como também para as legiões de famintos vagando por uma américa do norte devastada pelo crash de 1929.
Na trama de White Zombie, Neil e Madeleine chegam à ilha para se casar, convidados por Charles Beaumont, um rico fazendeiro que secretamente deseja Madeleine para si. Incapaz de conquistá-la, Beaumont recorre a Murder Legendre (interpretado por Bela Lugosi), um feiticeiro vodu que controla uma legião de zumbis, camponeses e trabalhadores transformados escravizados.
Legendre entrega a Beaumont um pó mágico para transformar Madeleine em uma zumbi. Após sua morte simbólica e ressuscitação, ela fica sob o controle do feiticeiro. Beaumont, no entanto, se arrepende ao perceber que ela perdeu toda a sua humanidade.
Zumbis modernos
Se o zumbi pré-industrial parece ter sua alma capturada, sofrendo uma espécie de esvaziamento de si, e continua em certa medida integrado à sociedade, o morto-vivo moderno tem seu corpo subjugado por um hospedeiro, um vírus, um fungo, ou a fórmula sintética do conto Herbert West–Reanimador (1921), de HP Lovecraft.
Deste modo, enquanto o primeiro age por inércia e obediência, o segundo parece ter despertado uma instintividade mais bestial: consumir tudo, o tempo todo.
Esse zumbi faminto, que consome de maneira insaciável, pura fome, aparece no cinema em A Noite dos Mortos Vivos (1968), do diretor George A. Romero, que virou sinônimo do gênero. O zumbi apocalíptico que devasta a própria civilização, manifestação da moralidade neoliberal, cujo epicentro da ética individualista aponta para o próprio umbigo faminto, é o que vamos ver se proliferar em inúmeras produções daí para frente. Até ser em certa medida banalizado e esterilizado: na era digital, zumbis vagando por galerias de shoppings perderam seu componente crítico.
Um novo filme de Danny Boyle chega ao cinema este ano. Antes dele, o espectador pode revisitar, além da série da HBO, excelentes produções como o intimista A Noite Devorou o Mundo (2018), de Dominique Rocher, e o contraintuitivo The Cured, de David Freyne. Visões mais sofisticadas do apocalipse.
Os fungos de The Last Of Us dão outra tonalidade à questão. Com suas teias e micélios, pensam como uma mente coletiva, usam todas as estratégias da evolução contra uma raça humana fragmentada, dividida em guetos, entrincheirada nas próprias paixões. É uma ótima metáfora para os desafios ambientais deste século. Ou para uma sociedade hiperconectada 24/7, zumbificada por algoritmos, essas máquinas oraculares do prazer, que colonizam nosso córtex cerebral e capturam nossa vontade antes mesmo que ela se forme.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
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