Sem combate à presença de alimentos ultraprocessados no ambiente escolar, o Brasil corre riscos de tornar os níveis de consumo, que já são altos, um hábito difícil de ser revertido e capilarizado na dieta cotidiana da população. Todos os estudos dos últimos anos sobre o tema apontam um cenário preocupante.
O fortalecimento da agricultura familiar é essencial para mudar essa realidade. O tema foi discutido no seminário “Desafios da Alimentação Saudável e Nutrição na Educação Escolar”, na 5ª Feira da Reforma Agrária do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), que acontece até este domingo (11) no Parque da Água Branca, em São Paulo (SP).
“É impossível pensar em solução sem a parceria de agricultura produzida por famílias e pela gente do campo”, afirma Maria Alvim, nutricionista, epidemiologista e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), que participou do evento.
Em conversa com o BdF, ela ressaltou ainda o aspecto de preservação de biomas que a agroecologia e as práticas sustentáveis da agricultura familiar promovem, em contraponto às monoculturas do agronegócio.
“As pessoas do campo ajudam na preservação do meio ambiente e a combater as mudanças climáticas, pautas urgentes. Então, temos que ter muita gratidão, admiração e reconhecer esse trabalho tão potente. Está nas mãos dessas pessoas que nossas crianças comam bem.”
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense) de 2015 revelam que a prevalência de consumo excessivo de alimentos ultraprocessados entre adolescentes brasileiros atingiu 75,4%. O índice é referente a ingestão superior a sete vezes na semana de grupos como salgados fritos, salgadinhos, refrigerantes e fast food.
Já a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 indica que cerca de 26,7% do total calórico ingerido por adolescentes no Brasil vem desses produtos. O consumo em crianças de seis meses a dois anos de idade também é alarmante: 80% delas já tinham consumido pelo menos um ultraprocessado no ano anterior ao estudo.
A professora Rubneuza Leandro, do Setor de Educação do MST, também esteve no evento e ressaltou a conexão direta entre a merenda escolar saudável e a luta pela democratização da terra. Segundo ela, os hábitos alimentares tradicionais das populações sofrem um processo de desconstrução massiva dentro do capitalismo.
“Como as commodities de âmbito internacional precisam padronizar esses alimentos para comercializar internacionalmente, destroem as culturas locais. O capital tem feito isso sistematicamente via escolas.”
Segundo ela, esse processo destroi a saúde e os os hábitos das populações em nome do lucro. “Então, não dá para discutir alimentação escolar sem discutir modelo de produção, projeto de sociedade, projeto de desenvolvimento e projeto de ser humano”, conclui.
Entraves políticos e comerciais
O Brasil já tem exemplos de legislações para promover o consumo de alimentos in natura. No entanto, segundo a especialista em saúde do Instituto Brasileiro de Defesa dos Consumidores (Idec) Giorgia Russo, ainda falta regulação para impedir com efetividade os ultraprocessados no ambiente escolar.
“Precisamos de uma lei para regulamentar o comércio e a publicidade de alimentos dentro das escolas e proibir os ultraprocessados nesses espaços. Temos todo o respaldo científico e legal para fazer isso.”
Ela também afirma que algumas legislações existentes esbarram em entraves políticos e até comerciais. Como exemplo, a especialista cita o decreto municipal da cidade de São Paulo, aprovado em 2015 e que previa 100% de alimentos orgânicos até nas escolas até 2026. Na prática, ele esbarra, por exemplo, na intensificação das terceirizações.
“Desde o início sabíamos que era uma lei muito desafiadora, sem dúvida, por isso foi criada uma comissão gestora da lei. Mas não é só uma questão de inviabilidade ou de que não existe produção orgânica para atender. Sabemos que caminhos que estavam previstos há dez anos não estão sendo consolidados.”
A persistência do consumo de ultraprocessados desde cedo tem consequências diretas para a saúde até a vida adulta e tem potencial de moldar costumes para a vida inteira. Em crianças, esse tipo de alimentação pode causar doenças crônicas, que até então eram incomuns nas faixas etárias mais jovens.
Além disso, o alto consumo de ultraprocessados compromete a absorção de nutrientes, altera a microbiota intestinal e potencializa processos inflamatórios. Estudos globais associam esses produtos a riscos significativamente maiores de sobrepeso, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, certos tipos de câncer, depressão e ansiedade.