Localizada na Rua General Souza Doca, 131, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre (RS), a casa do escritor e político gaúcho Dyonélio Machado desde 2022 se vê envolta em um movimento pela sua preservação. Depois de correr o risco de ser demolida, em abril deste ano ganhou um novo capítulo, quando o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) determinou a suspensão imediata das obras.
A decisão atende a uma ação popular que solicita a proteção integral do patrimônio cultural representado pelo imóvel. A ação foi movida pelo movimento Salve Dyonélio e tem como objetivo que a casa do escritor não tenha o mesmo destino que a do também escritor Caio Fernando Abreu, em 2022.
“Preservar a casa representa uma forma de reparação e justiça história que a sociedade do Rio Grande do Sul pode fazer para o escritor. Um ótimo exemplo pode ser visto na Casa de Cultura Mário Quintana, que possui em uma de suas salas uma reprodução preservada do quarto do poeta. Ainda hoje é permitida às novas gerações conhecerem o ambiente em que vivia e trabalhava Mário Quintana”, destaca o doutor em literatura, Jonas Kunzler Moreira Dornelles, ao Brasil de Fato RS. O pesquisador criou um perfil no Instagram para começar a divulgar o caso e defender a permanência do imóvel.

De acordo com reportagem do Sul 21, de 2023, o atual proprietário do imóvel havia entrado com recurso contra o inventariamento. No recurso, o proprietário alegou que a casa está em condições precárias e precisa ser demolida. Ele disse também que desconhecia a importância histórica de Dyonélio Machado. Ele também é o dono da casa ao lado, que pertenceu a Cecília, filha do escritor.
No próximo sábado (10), às 16h, o movimento fará uma bicletada até a casa de Caio Fernando Abreu. O ponto de encontro é o Monumento do Expedicionário na Redenção, em um percurso que visa resgatar a história de luta pelo patrimônio e defender que, nos casos de destruição dos locais de memória, a memória da injustiça seja para sempre relembrada.
Nascido em Quaraí no dia 21 de agosto de 1895, Dyonélio Tubino Machado morreu em Porto Alegre, no dia 19 de junho de 1985. Este ano, uma de suas obras mais famosas, Os Ratos, completa 90 anos.
Brasil de Fato RS: Qual o significado da casa de Dyonélio para a cultura do estado?
Jonas Kunzler Moreira Dornelles: Dyonélio Machado considerado o maior dos escritores modernistas pelo crítico paulista Alfredo Bosi. Também descrito como um dos “quatro clássicos da literatura do Rio Grande do Sul” por Dhynarte Albuquerque Borba (junto com Simões Lopes Neto, Erico Veríssimo e Mário Quintana). Ele é um escritor significativo, ainda que mereça reconhecimento dentro da história da literatura do RS. Foi também jornalista, político, e médico psiquiatra, um dos responsáveis pela introdução da teoria psicanalítica no estado.
Atuou como médico psiquiatra no Hospital São Pedro (HSP), chegando a ser diretor do antigo “hospício”, atuando para humanizar o tratamento dos internos (com tratamentos de inspiração psicanalítica e terapias que estimulavam a criação artística dos internos). Em sua gestão como diretor modernizou a formação dos profissionais do HSP, aproximando a instituição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o que seria o primeiro passo na criação do curso de pós-graduação em Psicologia da Ufrgs, anos depois.
A casa da Rua Souza Doca, 131, foi em parte projetada por Dyonélio Machado, que vivenciava um momento decisivo de sua carreira (e no projeto arquitetônico é possível ver a assinatura do escritor). Ali ocorreu o lançamento de uma de suas principais obras, O Louco do Cati (1942). Nessa residência escreveria obras como Desolação (1944) e Passos Perdidos (1946), textos nos quais é possível encontrar, por exemplo, memória social da repressão da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas ou um registro do modo como a enchente de 1941 afetou a região do Quarto Distrito, bairro operário de Porto Alegre.
Nessa casa, ele iniciaria a escrita do manuscrito de Deuses Econômicos (1946-1956), uma das grandes obras do que poderíamos chamar do Alto Modernismo brasileiro, obra que se passa na Antiguidade Clássica nos tempos do Imperador Nero e cujo processo de escrita tomou dez anos de Dyonélio Machado.
Também nessa residência Dyonélio finalmente foi reintegrado de volta na sociedade portalegrense, depois de um período de dois anos na prisão. O escritor foi líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL), um dos principais movimentos populares de contraposição ao autoritarismo nos anos 1930.
Esse movimento congregava operários, sindicalistas, classe média e intelectuais progressistas, feministas, militantes comunistas e anarquistas, etc. sendo o que hoje poderíamos chamar de um movimento de frente ampla da esquerda. Foi por conta da sua atuação como presidente regional da Ação Libertadora Nacional (ALN), que Dyonélio Machado passou dois anos na prisão, primeiro em Porto Alegre e posteriormente em prisões no Rio de Janeiro, onde compartilhou a vida no cárcere com figuras como Graciliano Ramos, Olga Benário, Luís Carlos Prestes, Caio Prado Jr., etc.
A casa representa assim o momento de reinserção na sociedade, sendo a primeira casa própria de Dyonélio Machado, que até então só havia vivido em casas alugadas. Nessa casa seria eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro (1947), em uma campanha com amplo apoio popular, possuindo muitos votos vindo de regiões periféricas, como o bairro Partenon. Apesar de colaborar com a Constituição Estadual de 1947, o mandato de Dyonélio Machado durou apenas um ano, por conta do cancelamento do registro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em um ato persecutório executado pelo governo federal de Eurico Gaspar Dutra.
Nessa casa, Dyonélio Machado também iniciou um período de proscrição e afastamento da esfera literária, devido a boicotes editoriais e perseguições políticas. Esse ostracismo só se encerraria 20 anos depois, quando Dyonélio Machado volta a publicar.
Nesse sentido, a residência concentra alumas das principais vivências do escritor, representando um microcosmos dos principais fatos de sua vida.
Preservar a casa representa então uma forma de reparação e justiça histórica que a sociedade do Rio Grande do Sul pode fazer para o escritor. Um ótimo exemplo pode ser visto na Casa de Cultura Mário Quintana, que possui em uma de suas salas uma reprodução preservada do quarto do poeta. Com isso é permitida às novas gerações conhecerem o ambiente em que vivia e trabalhava Mário Quintana.
Nosso movimento já vinha propondo que fosse feita uma nova avaliação patrimonial da casa de Dyonelio Machado, considerando a inclusão no inventário de itens do seu interior. Essa modalidade de proteção do interior, por via do inventário, é realizada na proteção do patrimônio cultural de outros município, mas não em Porto Alegre. Sendo assim, não há outro mecanismo utilizado pela prefeitura que permita a preservação do interior. Já que a prefeitura não oferece nenhuma alternativa legal, o grupo decidiu nessa ação popular solicitar o tombamento do imóvel.
O receio é que, assim como aconteceu na casa de Caio Fernando Abreu, alguma nova autorização permita que uma tragédia venha acontecer com a casa de Dyonelio Machado. Por isso, é importante a mobilização e o apoio nessa causa que é de todos, na luta buscando cuidado e preservação da nossa memória cultural.
Poderia fazer um resgate da mobilização em torno da casa?
O movimento Salve Dyonélio surge em 2022, buscando responder à comoção sofrida por todos, com a demolição da casa de Caio Fernando Abreu no [bairro] Menino Deus. Utilizando-se das redes sociais e ferramentas digitais com o objetivo de recuperar a figura de Dyonélio Machado junto ao público, busquei criar um ambiente propício pela preservação da casa em que o escritor viveu no bairro Petrópolis nas décadas de 1940 e 1950.
Inicialmente se buscou recuperar documentos, fotos e relatos da vida de Dyonélio no bairro, encontrando a planta do imóvel, documentos de compra e venda, gravações raras em áudio de Dyonélio tocando flauta transversal com a família e vídeos preservados de sua convivência com filhos e netos. Estes materiais eram desconhecidos não só do grande público, como de pesquisadores, professores e acadêmicos.
A partir da aproximação com moradores do bairro, ativistas e professores, o movimento ganhou força, sendo então idealizadas as Caminhadas Literárias no Petrópolis. Dessa construção coletiva, o grupo foi desenvolvendo encontros que buscavam despertar a consciência coletiva para a importância de preservação desse espaço de memória da cidade.

Hoje o movimento deseja ressignificar o repertório cultural do bairro, que abrigou e abriga dezenas de artistas, retomando o potencial do vínculo afetivo da cidade com sua geografia urbana.
Com vistas a estimular a preservação desse patrimônio sul-riograndense, as caminhadas destacam as vitórias que a luta pelo patrimônio já obteve. Como a história de preservação da caixa d’água na Praça Mafalda (junto a qual Luís Fernando Veríssimo brincava quando criança, e salva por via da luta de sua esposa Lúcia Helena Veríssimo), e a Casa da Estrela, casarão que hoje abriga um ateliê de escultores aberto a comunidade, preservado por via de uma campanha. Com isso, procuramos despertar a consciência crítica de que a luta coletiva pode transformar os rumos da cidade e de seu contorno arquitetônico.
Para dar exemplos sobre a riqueza cultural do bairro, além de Dyonélio Machado, escritores como Érico Veríssimo e Luís Fernando Veríssimo, Cyro Martins, Josué Guimarães e Manoelito de Ornellas, viveram no bairro. Recentemente, Charles Kiefer, Mário Pirata e diversos professores e escritores do curso de escrita criativa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). Ou ainda, artistas ligado às artes plásticas, como Danúbio Gonçalves e o grupo de escultores vinculados ao ateliê da Casa da Estrela, ou às artes cênicas, como Dea Mancuso e Zé Adão Barbosa.
Sendo assim, as caminhadas procuram sempre diversificar suas rotas, de maneira a contemplar sempre um novo referente no bairro, oferecendo novidades a cada nova edição das caminhadas. O princípio norteador é uma curadoria de textos que pesquisamos e selecionamos, apresentando ao longo de nosso percurso por esses locais de memória. Essa seleção é então debatida por mim, pela Danitsa Rodrigues e pelo Marcelo Côrtes, recebendo orientações também de orientadores específicos para alguma caminhada temática. Com isso, buscamos mostrar a atualidade da obra desses(as) artistas que resgatamos em nossas caminhadas, assim como a importância do patrimônio cultural do estado.
Ao longo de 2023 foram três caminhadas, que passaram por espaços de memória como as casas de Érico Veríssimo, Cyro Martins, Danúbio Gonçalves, Manoelito de Ornellas. Em 2024, foram realizadas quatro caminhadas, com visitas à casa de Josué Guimarães e discussões sobre saúde pública, história do processo de urbanização da cidade e a inserção do Petrópolis nos territórios negros. Em 2025 fizemos uma caminhada que tematizava as memórias do tempo da ditadura em Porto Alegre.
Para esse ano, um grande calendário de atividades foi planejado, com atividades na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), Instituto Estadual do Livro (IEL), Biblioteca Pública, Pucrs, etc. Um dos principais eventos de 2025 será no dia 23 de agosto, uma caminhada pelo centro da cidade, que estamos chamando de Dia do Naziazeno. Nesse dia iremos percorrer as rotas do personagem principal de Os Ratos, em sua peregrinação pelo centro de Porto Alegre.
No próximo sábado (10), às 16h, faremos uma bicicletada até a casa de Caio Fernando Abreu. O ponto de encontro é o Monumento do Expedicionário na Redenção, em um percurso que visa resgatar a história de luta pelo patrimônio e defender que, nos casos de destruição dos locais de memória, a memória da injustiça seja para sempre relembrada em nossa cidade.
Como está a situação atual? O que motivou a mobilização?
Em 2022, o movimento foi bem-sucedido em incluir a casa de Dyonélio Machado no inventariamento do bairro, mas esse inventário garante apenas que a fachada exterior seja preservada. A decisão não incluiu a casa ao lado, que também era da família de Dyonélio e possui características arquitêtonicas significativas. Atualmente buscamos que se garanta também que detalhes do interior da casa de Dyonélio sejam inventariados, de maneira que a casa mantenha algumas das características do período em que o escritor viveu lá, para que futuras gerações possam conhecer esse patrimônio.
Apesar de possuir valor cultural inegável, apenas o exterior da casa foi protegido pela prefeitura. A decisão da Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural do município de Porto Alegre previu a inclusão como um bem inventariado por estruturação, garantindo que a fachada da casa mantivesse suas características preservadas. Uma série de elementos do interior da residência de Dyonélio, como a lareira presente na sala em que se realizavam os serões da família, podem assim ser destruídos sem nenhum impeditivo legal.
Da mesma maneira, as casas do entorno também não foram protegidas, o que, por exemplo, deixa a casa ao lado, onde morou a filha de Dyonélio Machado, correndo risco de ser modificada ou até mesmo, demolida. Essa residência, que foi de Cecília Machado e Rubens Bordini (genro de Dyonélio, profissional da aviação que chegou a ser presidente da companhia aérea Varig), também foi sede dos marcantes serões musicais e poéticos da Família Machado. Ali cresceu o neto do escritor, que relembra dos muitos ensaios musicais, em que Dyonélio Machado também participava.

Apesar de haver estudos que indicavam esta casa da esquina como candidata à inclusão no inventário do bairro Petrópolis (inicialmente por conta de seus elementos arquitetônicos), a residência acabou permanecendo de fora do inventário realizado pela prefeitura.
A atual nova fase de alerta pela preservação acontece a partir de intervenções aparentemente estranhas na fachada, percebidas e documentadas por imagens na primeira semana de fevereiro de 2025, que indicavam um descompasso entre inventariamento e o processo de reforma da casa. Curiosamente, também foi em fevereiro de 2025 que foi aprovada a reforma administrativa da gestão do prefeito Sebastião Melo [MDB], que tirou o licenciamento de obras patrimoniais da Secretaria Municipal da Cultura (SMC), que produzia estudos técnicos através da Coordenação da Memória Cultural (CMC) e Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC).
As licenças agora passaram a ser emitidas pela Secretaria Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), que também está responsável pelo Escritório de Reconstrução e Adaptação Climática de Porto Alegre. Justamente um conselho que está aprovando grandes projetos sem a devida análise. O que parece “agilidade” na verdade é um desastre, porque tem destruído rapidamente o patrimônio da cidade. Além disso, vale a pena conhecer quem é o atual secretário da Smamus, em registros públicos divulgados pelo Sul21.

Com isso ficamos observando o andamento do processo de reforma, que seria autorizado de fato apenas no início de abril de 2025, quando então foi aprovado pela Smamus, um projeto autorizando a reforma da casa e também a construção de 32 metros quadrados adicionais.
A decisão reflete um momento trágico da proteção patrimonial na cidade, já que o projeto não passou por qualquer análise do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (Compahc), o que garantiria participação dos interesses de preservação e sustentabilidade da população no projeto. Assim, tanto o interior quanto a fachada da casa de Dyonélio Machado começam a ser alterados, sem que haja qualquer mediação, transparência ou fiscalização das necessidades sócio-culturais de preservação do patrimônio cultural regional e nacional.
Com isso, o início das obras no dia 29 de abril, gerou dúvidas e comoção na vizinhança, que alertou o grupo sobre o início súbito de radicais alterações na situação casa. Uma boa parte do telhado foi removido e diversos elementos característicos do interior, ainda preservados, foram parar na caçamba de lixo.
A partir disso, nosso grupo Salve Dyonélio procurou o advogado e ativista Marcelo Sgarbossa, que tem experiência com a preservação do patrimônio histórico e cultural, tendo trabalhado por mais de uma década no movimento pela manutenção da casa de outro escritor gaúcho, Caio Fernando Abreu.
Em conjunto, foi feita então uma ação popular buscando questionar a falta de transparência no processo e ausência de participação da população, assim como a limitação do mecanismo jurídico do inventário por estruturação, que deixa desguarnecido casos de patrimônio cultural como a parte interna da residência do escritor. Local, onde também há inúmeros elementos internos a serem preservados, como parte indissociável da memória do artista.

*Com a colaboração de ana c.
