A história do golpe burgo-militar de 1964 é fartamente comprovada por, entre outros, três objetivos básicos: atacar os interesses da classe trabalhadora, destruir a crescente organização popular e combater o principal operador político dos comunistas brasileiros, o PCB [Partido Comunista do Brasil], que era a força hegemônica na esquerda daquela quadra histórica. Embora as marchas e contramarchas que constituíram as balizas do cenário ampliado do golpe desvelassem um conjunto importante de problemas na análise da realidade concreta por parte dos comunistas brasileiros, a reação inicial do partido foi organizada para operar na perspectiva de aglutinação de forças democráticas e nacional que, em princípio, estariam insatisfeitas com a ruptura na legalidade da democracia formal e a ordem institucional em vigor.
Os comunistas até esboçaram um movimento interno para construir uma reação armada ao golpe, todavia essa tímida iniciativa esbarrou na incapacidade de previsibilidade do cenário do golpe e na queda de setores das Forças Armadas onde seriam razoáveis essa possibilidade de reação, a exemplo dos postos sob a direção dos Comandantes Teixeira e Aragão.
Encerrada qualquer possibilidade dessa reação armada, e mesmo com um período em que a direção afundou na clandestinidade, o retorno ao contra-ataque organizado pelo Comitê Central do PCB foi majoritariamente centrado na articulação política de uma Frente Democrática e Nacional que aglutinasse um conjunto expressivo de setores da burguesia legalista, militares de alta patente que seriam contra a quebra na estrutura da hierarquia militar, forças proletárias e populares, camponeses, parlamentares contrários ao golpe, militares de baixa patente rebelados em revoltas recentes e a forte juventude estudantil.
O arcabouço dessa Frente política de contenção do golpe foi, paulatinamente, sendo esvaziada pela crescente ação de coerção dos golpistas estabelecidos no poder. Prisões, violência política, assassinatos já no primeiro momento do golpe armado, cassações e atos discricionários compuseram o arcabouço que fortaleceu os golpistas, além, evidentemente, das manifestações de apoio na sociedade, imprensa e de figuras proeminentes do exercício da política.
A tática do PCB foi apartando-se da estratégia e o debate no ambiente interno procurava centrar-se nas causas do golpe. Esse roteiro político foi super aquecido em virtude da convocação do VI Congresso do partido. A ruptura orgânica foi inevitável e o partido foi fracionado por diversos grupos que saíram do PCB para construir organizações que iriam para o confronto armado contra a ditadura instaurado no país. É importante registrar que no debate interno, daqueles que ficaram no PCB, chegou-se a analisar a possibilidade de enfrentamento armado com o regime militar, mas essa posição não foi em frente.
O PCB procurou operar sua tática política no sentido da construção da Frente Democrática, apesar dos espaços fechados, das prisões e dos assassinatos de militantes que ocorreram já no mês de abril de 1964 (Ivan Rocha Aguiar e Antogildo Pascoal Viana), o elemento central da organização da política dos comunistas brasileiros era a resistência democrática. Essa chave para ação começou a gerar avanços políticos no início dos anos 1970, quando a luta armada desenvolvida pelas organizações da guerrilha urbana e algumas da guerrilha rural foram paulatinamente derrotadas.
A partir das eleições de 1972 e 1974, quando a oposição nesta última eleição obteve uma grande vitória, as forças do aparato policial-militar da ditadura passaram a se movimentar tendo como eixo central o PCB como o inimigo número 1 (Coronel Paulo Manhães). Com a finalidade de destroçar o PCB, foi organizada a “Operação Radar”, em 1973, que funcionou até 1976 e que tinha variadas denominações em outros estados da federação, a exemplo de “Barriga Verde” em Santa Catarina e “Cajueiro”, em Sergipe.
A política de cerco e aniquilação levada à frente pelos órgãos da repressão policial-militar que agiam de forma letal através dos agentes que compunham os “porões” da ditadura, ordenados pelo aparato político-militar do regime, com total autorização inicialmente do general Médici e posteriormente, de forma mais brutal ainda, com a anuência e consentimento do general Geisel, teve um papel comprovadamente assassino no sentido de eliminar os quadros referenciais do PCB, principalmente em 1975.
A lógica do cerco e aniquilação contra o PCB teve seu momento mais violento durante o ano de 1975. Foram centenas de prisões, centenas de processos, muitos comunistas fugiram para o exílio como forma de proteger suas vidas. No entanto, o terror do Estado policial atingiu de forma covarde e assassina 12 membros do partido. Heroicos militantes das mais diversas lutas do povo brasileiro.
No auge desse terror, a “Operação Radar”, em 1975, ou seja, há 50 anos, matou seis membros do Comitê Central do partido, outros militantes de importância seminal para a ação do PCB e o encarregado do trabalho entre a juventude. Isso era o contragolpe da ditadura diante da vitória política do partido nas eleições de 1974, quando o PCB elegeu 22 deputados federais e dezenas de deputados estaduais e a oposição teve uma vitória que poderia ser determinante para a mudança no quadro institucional. Nesse cenário político, o governo da ditadura ameaçou suspender as eleições municipais de 1976, porém a repercussão política e social impediu mais esse golpe.
Na lógica do cerco e aniquilação contra o PCB, que marcou o trágico ano de 1975, foram assassinados, no dia 15 de janeiro, o caminhoneiro Elson Costa e o administrador público, Hiran de Lima Pereira, ambos membros do Comitê Central. No dia 4 de fevereiro, foi morto o advogado e jornalista Jayme Miranda, membro destacado do CC do partido. Em abril (?) foi preso e assassinado o líder camponês, Nestor Vera, também membro do Comitê Central. Em 25 de maio, foi preso e assassinado o operário e líder dos trabalhadores da construção civil, Itair José Veloso, integrante do Comitê Central. No dia 7 de agosto, foi assassinado o militante e operário gráfico, Alberto Aleixo. No dia 8 de agosto, foi assassinado, sob forte tortura, o militante e Tenente da PM/SP, José Ferreira de Almeida. Ainda no mês de agosto, no dia 18, foi morto sob tortura o militante e Coronel da PM/SP, Maximino de Andrade Netto. Em 17 de setembro, foi assassinado o militante e comerciário, Pedro Jerônimo de Souza. A matança continuou no mês de setembro, quando no dia 29 foi morto o líder estudantil, José Montenegro de Lima. Em 8 de outubro foi assassinado o jornalista e advogado Orlando Bonfim Júnior, ex-vereador de Belo Horizonte e membro do Comitê Central. Fechando o massacre de 1975, no dia 25 de outubro, o militante e jornalista Vladimir Herzog foi assassinado.
O Partido Comunista Brasileiro (PCB) teve um conjunto de 43 membros assassinados, do dia 1º de abril de 1964 até o dia 24 de setembro de 1979. Só no ano de 1975 foram 12 dirigentes e militantes. O PCB sofreu dezenas de processos, teve milhares de militantes entre processados, presos, torturados, exilados e mortos. Mesmo usando a tática política da luta através da resistência democrática, do trabalho entre as massas e da articulação de forças democráticas e nacionais para derrotar a ditadura, o partido foi considerado o inimigo número 1 do Estado policial e terrorista que se estabeleceu em 1964 e permaneceu até 1985.
Nessa efeméride dos 50 anos, quando em 1975 a ditadura operou uma covarde ação de cerco e aniquilação contra o PCB, se faz necessário que a recente recriada Comissão da Anistia institua um processo pela memória, justiça e reparação ao PCB. A estrutura histórica do partido, para além do martírio de sua militância e direção, sofreu um ataque sem trégua que colocou em risco a sua existência e o que representa o partido enquanto patrimônio histórico, político e cultural na vida social e na história política brasileira.
A tática política do PCB contribuiu de forma expressiva para derrotar o arbítrio e colocar fim ao regime burgo-militar em 1985. A partir desse ano o partido voltou a legalidade jurídica e política, mesmo com os tradicionais impedimentos que a lógica da política burguesa opera contra os comunistas na longeva história brasileira, afinal são 103 anos da mais odiosa perseguição.
Essa ação por Memória, Justiça e Reparação deve ser levada aos órgãos competentes do governo federal em caráter de urgência, afinal a memória e a história brasileiras precisam ser preservadas e o PCB deve ter justiça e reparação.
*Milton Pinheiro é Cientista Político e professor Titular de História Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).