Um sentimento de vergonha e constrangimento me tomou quando me vi chegando à área de uso de crack numa região da Maré. Tinha acabado de almoçar ali perto com um grupo de pessoas e ainda carregava, distraída, meia garrafa de água com gás na mão. Era uma sexta-feira. Na noite anterior, a chuva tinha caído pesada, além das batidas policiais de sempre.
Enquanto caminhava com o grupo pela rua em direção ao local onde as pessoas moram e se reúnem: tudo alagado, uma água marrom-esverdeada cobria o chão. Nela, o reflexo da bandeira do Brasil refletia sobre aquele cenário completamente inóspito. E eu ali, segurando minha garrafinha de água com gás. Terminei de beber e fiquei tentando disfarçar a garrafa na bolsa que eu nem tinha. Mais tarde, pude entender que minha reação vinha de um lugar mais profundo do que a simples imagem da garrafa poderia sugerir. Mas, para contar essa história, preciso te contar como cheguei até ali.
Eu trabalho com educação, política de drogas e pesquiso regulamentação da cannabis em diversos países com foco no Brasil, Canadá e Tailândia. Tudo isso aconteceu porque fui convidada a conhecer o projeto Redes da Maré pelo Dr. Carl Hart, professor da Universidade de Columbia, em Nova York. Um dos cientistas mais importantes do mundo na questão das drogas e autor de livros que mudaram minha percepção sobre o tema.
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Fomos recebidos pelos colaboradores do projeto, que aguardavam com expectativa a visita do pesquisador americano. Carl Hart é como um padrinho da iniciativa e faz visitas periódicas ao projeto. Quando chegamos, algumas pessoas assistiam a um filme, outras dormiam e muitas colaboravam nas tarefas de trabalho e manutenção do espaço. Alguns se levantaram com entusiasmo para cumprimentar Carl, enquanto eu prestava atenção nas paredes, decoradas com lindas reproduções fotográficas.
Depois de algumas horas de reuniões e explicações sobre o projeto e seus eixos de atuação, fiquei maravilhada com a prática e a vivência das pessoas no Espaço Normal que é um dos 11 equipamentos que compõem a organização Redes da Maré e desde 2018 faz um trabalho pioneiro e referência na questão de drogas em favelas — e com o impacto que isso gera para mais de 140 mil pessoas que vivem nas 16 favelas do Complexo da Maré.
Ali, mais de 300 profissionais, em sua maioria moradores da própria Maré, constroem diariamente o que deveria ser política pública de base em todo o Brasil. O que vi foi mais que um projeto: foi uma possibilidade concreta, propositiva e amorosa diante do que vivemos hoje no Brasil.
O país tem até hoje políticas de drogas retrógradas e com investimento do governo em comunidades terapêuticas que já deveriam ter deixado de existir há muito tempo. Enquanto isso, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) seguem sucateados.
Na saída para o almoço, Carl [Hart] jogava pingue-pongue na parte de dentro, alegrando as pessoas que assistiam e se encantavam ao ver um pesquisador renomado brincando com elas. Enquanto isso, uma “redutora de danos do amor”, como ela mesma se intitula — fazendo alusão a vidas passadas como profissional do sexo — e que está há muitos anos no projeto, me puxou pela mão para mostrar sua arte nos azulejos da entrada do galpão. Ela apontava com o dedo e lia para mim seus escritos: “Espaço Normal, lugar que nos é ensinado a dizer sim e não, a ir e vir, a falar e nos calar. E, o mais importante, a nos amar e respeitar.”
E foi ela mesma quem nos guiou na visita a “cena de uso”, “fluxo” ou como é chamado de forma preconceituosa “cracolândia”, o lugar onde eu estava com a minha garrafinha. Enquanto andávamos em direção à esquina da rua, eu já ouvia a música: “Eu fiz um pé lá no meu quintal, tô vendendo a grama da verdinha a um real.”
A letra da cantora Ludmilla me pareceu um sinal — para mim, que trabalho no mercado da cannabis e passo parte do tempo pensando em como aquelas pessoas ali poderiam viver, trabalhar, ter mais saúde e ganhar dinheiro com um mercado bilionário do qual elas continuam de fora.
Chegando lá fomos recebidos por um morador que saiu correndo para buscar um álbum de fotografias que ele tinha muito orgulho. Eram fotos e memórias da família e muitas imagens dele como modelo em um desfile que tinha acontecido há alguns anos. Enquanto eu prestava atenção nas fotos, também observava os barracões precários com paletes dentro da zona alagada, usados para tornar o deslocamento possível.
Ao fundo, havia um prédio azul, com arquitetura dos anos 70 e esquina arredondada, que estava desocupado. Perguntei a uma colaboradora do projeto sobre o lugar, porque na minha cabeça fazia todo sentido ocupá-lo. É difícil não pensar assim quando, segundo o Censo de 2022, existem 11,4 milhões de domicílios vagos no país. Na capital fluminense, há 388.345 domicílios desocupados, e o estado registra 30.801 pessoas em situação de rua. Mas a situação é bem mais complexa do que a lógica óbvia que passa pela cabeça de quem não conhece o território e os desafios de conciliar o projeto, o Estado e o poder paralelo.
No tempo em que estivemos nessa esquina muitas coisas aconteceram, bem mais do que eu fui capaz de registrar. Descendo a rua, vinha na nossa direção um homem bolando um baseado, que nos cumprimentou com a cabeça e adentrou os barracões andando sobre os paletes na água empossada. Voltando ao meu constrangimento inicial, o contraste das águas vem de uma questão social fundamental: o saneamento básico. O Brasil tem 32 milhões de pessoas sem acesso à água potável e 90 milhões sem acesso à coleta de esgoto (dados do Ranking do Saneamento 2024). Como eu poderia me sentir de outra forma, sabendo que o básico para a sobrevivência e a saúde é negado pelo sistema a quase metade da população brasileira?
Durante o tempo em que estive lá, tentei me livrar da garrafa d’água, mas não encontrava um lugar apropriado para descartá-la. Poderia simplesmente jogar no chão, porque não faria diferença na montanha de lixo espalhada pela rua — resultado de uma coleta precária, que faz com que o lixo se acumule justamente onde essas pessoas vivem. Uma das lideranças do projeto, enquanto caminhávamos, me contava sobre a dificuldade e o esforço constante que enfrentam para tentar resolver essa questão: ligar, pedir, se mobilizar para que o lixo seja recolhido.
Saímos dali para outra atividade do projeto e, sentada no carro enquanto ouvia a explicação sobre a política territorial que estávamos visitando, escutava as músicas passando pela janela — do funk carioca ao sertanejo, do trap ao forró. Enquanto isso, a última coisa que cruzava meu pensamento era o possível problema que aquelas pessoas teriam com alguma droga consumida no local.
O que me preocupava era a moradia, ou a falta dela, e a gravidade da situação: a combinação entre ausência de saneamento, acesso limitado à água potável, acúmulo de lixo e as inúmeras doenças e problemas que surgem desse cenário. Sem contar o que há de mais perigoso nisso tudo — o que mais mata essas pessoas diariamente: o braço armado do Estado, a polícia.
De acordo com o projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”, coordenado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), foram gastos R$ 5,2 bilhões em 2017 apenas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro para reprimir, investigar, processar, julgar e encarcerar pessoas por crimes relacionados à Lei de Drogas. Os números mostram quem realmente lucra com a proibição, além das políticas falidas dos EUA que continuam sendo implementadas no governo Lula — como a privatização dos presídios. E a lista segue longa de ações que transformam o sofrimento daquelas pessoas em moeda para que poucos lucrem muito. Só no sistema do capital é possível ver lucro na miséria humana sem vergonha nem constrangimento.
A experiência daquele dia ainda reverbera de muitas formas nos meus pensamentos. Voltei para a Zona Sul da cidade, onde estava hospedada, com a garrafinha cheia e sem conseguir parar de pensar na água verde-escura e nas pessoas que encontrei. No trajeto pela Linha Amarela, fiquei refletindo sobre as múltiplas dimensões do trabalho da Redes da Maré e sobre o quanto ele é especial.
Trata-se de uma abordagem única, que promove autonomia e integração das pessoas envolvidas no projeto e, ao mesmo tempo, acolhe sem criminalizar, julgar ou punir nenhuma prática de uso de substâncias. O projeto é uma vivência prática e bem-sucedida da Redução dos Danos causados pelo Estado brasileiro na vida daquelas pessoas. Mesmo enfrentando todos os desafios para sua existência e continuidade, como financiamento e aprimoramento das dinâmicas internas, essa é uma iniciativa que deve ser conhecida pelo Brasil como possibilidade.
As dificuldades são muitas, de várias ordens — mas é assim mesmo no Complexo da Maré porque Amar é complexo.
*Luna Vargas é cientista social pela PUC-SP, pesquisadora e educadora na área de política de drogas com atuação em diversos países.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.