Há questões que mereceriam consenso. O colapso ambiental é uma delas. A necessidade de juntos encontrarmos mecanismos para mitigar o dissenso com a natureza, evitando sua oposição à nossa presença na Terra é, sem dúvida, outra. De fato, no Brasil, estamos prestes a sediar a COP30, a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas. Porém, estamos prestes também a dilacerar o maior instrumento de política de proteção do meio ambiente de que dispomos, o licenciamento ambiental, construído ao longo dos últimos quarenta anos.
A votação do Projeto de Lei n. 2159/2021 ocorrerá nesta terça-feira, 20 de maio, na Comissão de Meio Ambiente (CMA) e na quarta-feira, 21 de maio, na Comissão de Agricultura (CRA) e no Plenário do Senado Federal. Em sendo aprovado como se encontra, baseado no texto comum dos relatores das duas comissões, possibilitaria, entre outras coisas, dispensas de licenciamento ambiental, bem como que atividades ou empreendimentos de médio potencial poluidor fossem implementados mediante Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC). Nesse caso, a obtenção da licença ocorreria digital e automaticamente, mediante apresentação de mero relatório de caracterização do empreendimento (RCE). Conforme o projeto, o RCE não seria objeto de análise, nem de aprovação, a não ser quando a autoridade licenciadora utilizasse de sua faculdade de, por amostragem, apreciá-lo. Na prática, trata-se de um autolicenciamento, mais ou menos como pedir licença a si mesmo, ou, quem sabe, à própria consciência.

O projeto também considera apenas as terras indígenas homologadas e os territórios quilombolas titulados, restringindo, dessa e de outras formas, o direito de consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais. Outro ponto preocupante é o fato de o texto enfraquecer o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), atribuindo a competência normativa regulamentar ao que chama de “autoridade licenciadora”, assim considerados os entes de que trata a LC 140/2011, a saber, União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Mas devemos seguir tratando de consensos, já que a necessidade de uma lei federal que organize o licenciamento ambiental, trazendo mais objetividade e segurança jurídica e, em consequência, menor judicialização, parece habitar nesse campo. Os meios para a obtenção dessa segurança jurídica encontrados pelo Congresso nesses, aproximadamente, 20 anos de tramitação do projeto (advindo do Projeto n. 3.729/2004 da Câmara), entretanto, só fazem semear o caos.
Em primeiro lugar porque uma lei nos moldes do projeto atual, provavelmente, não resistiria à sua primeira oportunidade de judicialização, o controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. A propósito, o STF já se manifestou mais de uma vez, restringindo o licenciamento ambiental simplificado às atividades de pequeno potencial de impacto, uma dessas vezes no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6618, em que apreciou artigos de leis gaúchas, a saber, do Código Estadual do Meio Ambiente (Lei 15.434/2020) e da política agrícola estadual para florestas plantadas (Lei 14.961/2016). O projeto também viola diversos princípios do Direito Ambiental, como o princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado, o princípio da proibição de retrocesso ambiental (ecológico), da prevenção e da precaução, entre outros.
Em segundo lugar porque, ao retirar importante parte da competência normativa do Conama – entidade cujo Plenário possui grande representatividade, abrangendo órgãos federais, estaduais e municipais, do setor empresarial e da sociedade civil, entre eles, representantes de populações tradicionais, da comunidade indígena, da comunidade científica, de entidades empresariais, entre outros –, oportunizaria uma assimetria ainda maior do licenciamento ambiental entre a União, os diferentes Estados e os Municípios. Por exemplo, abre-se a possibilidade de criação de um sem-número de normas, além de considerações diversas quanto à necessidade e ao tipo de licenciamento aplicável a uma mesma atividade, conforme o Estado em que implementada. Além disso, a participação efetiva do conjunto da sociedade nessa normatização é diminuída, uma vez que, provavelmente, a regulamentação ocorreria por decreto, o que, na falta de – outra vez – um consenso sobre políticas de Estado, ficaria a cargo do político de plantão.
Diversas entidades se manifestaram contrárias ao PL 2159, entre elas, o Ministério Público Federal, a Associação Nacional dos Procuradores da República, a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA), o Instituto Socioambiental, o Observatório do Clima, a WWF Brasil. Detalhes sobre esses e outros tantos pontos nada consensuais – como dispensa de licenciamento para diversas atividades, inclusive, agropecuárias; renovação automática de licenças; vácuo legal quanto à atividade de mineração; dificuldade de avaliação de impactos indiretos; desvinculação do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano, bem como da outorga de uso da água; afastamento da responsabilidade de instituições financiadoras – podem ser observados nas notas técnicas divulgadas por algumas dessas entidades.

* Alice Maria Issa é advogada.
** José Renato de Oliveira Barcelos é advogado.
** *Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.