Há um ano, a enchente histórica que devastou o Rio Grande do Sul afetou 206 mil propriedades rurais no estado. Os prejuízos na produção e na infraestrutura foram imensos e muitas famílias ainda lutam para reerguer a vida. Recuperação de moradias e solos e endividamentos são os principais problemas.
Esta é a realidade de milhares de agricultores familiares do Vale do Taquari, umas das regiões fortemente atingidas pela tragédia climática de 2024 e que sofreu outras duas enchentes em 2023. Valmor Schwinguel vive às margens do rio, no município de Cruzeiro do Sul, e, um ano depois, ainda enfrenta dificuldades.

“A enchente aqui… foi tudo, levou tudo. Não sobrou nada, nada. Criação, porco que tinha, plantação, a casa, foi tudo embora. Levou tudo, só sobrou entulho de madeira e coisa que veio na água, essas madeiras aí, toco, raiz”, disse apontando para a pilha de árvores e tábuas cortadas. “Estamos limpando, tentando fazer umas madeiras pra construir de novo.”
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“Tem que recuperar as terras”
Sem recursos para recomeçar, o plantio de Schwinguel neste ano foi para subsistência e aconteceu graças à solidariedade de movimentos populares que doaram sementes, mudas e ramas. Ele foi um dos beneficiados pela Missão Sementes de Solidariedade.
Na sua propriedade de 22 hectares, uma parte ele arrendou para quem tinha condições de plantar. Ao menos vai ganhar uma parte da venda do milho de outro agricultor. Outras parte de sua terra ele nem sabe se vai dar frutos, mas não tem recursos nem apoio do poder público para fazer a recuperação do solo.
“Preciso de investimento nas terras de novo, recuperar as terras, aí eu acho que ia produzir de novo. Tem que recuperar as terras, umas manchas, umas partes, outras partes não precisa, mas onde é que lavou, onde que a água estourou, onde correu, levou a terra embora”, conta.
A maior parte dos vizinhos de Schwinguel, na beira do rio Taquari, não retornou para casa. Ao percorrer a estrada, o cenário é de abandono. Casas destruídas e marcas da enchente estão por tudo. Ele, porém, quer permanecer na terra que herdou dos pais.
Um ano depois, não conseguiu acessar programas para reconstrução da casa levada pelo rio, porque está em análise se poderá seguir morando no local. Com as árvores trazidas pelas águas durante a enxurrada e que ficaram presas na figueira centenária que resistiu, construiu uma moradia provisória.
“Eu precisava aqui, no princípio, fazer uma casinha. Fazer uma casa pra morar, que eu tô morando no galpão ali, quase sem recursos. Sorte que ligaram a energia agora ainda há pouco tempo. Foi uma briga para conseguir de novo ligar a energia aqui”, afirma o agricultor.

Moradia é um dos principais problemas
A Missão Sementes de Solidariedade, que ajudou Valmor a reiniciar o plantio após a enchente, auxiliou mais de 5 mil famílias em 77 municípios atingidos. Uma das 23 entidades envolvidas no projeto é o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
Dirigente da organização, Gerson Antonio Barbosa Borges conta que moradia foi um dos principais problemas relatados pelas famílias atingidas durante as visitas realizadas pelas entidades e os movimentos. A avaliação é que as políticas públicas são lentas.
“A gente viu muitas iniciativas do governo federal, algumas poucas do governo do estado, mas para a realidade do campo as políticas públicas que foram criadas, para resolver os problemas da enchente, no campo, elas estão chegando de forma muito lenta, e muitas vezes não dialogando com a realidade do campo e nem dialogando com os movimentos que representam esses atingidos”, afirma.
Como exemplo, cita o Auxílio Reconstrução. “A família tinha que ter o CEP, o número da rua, a rua, a conta da luz. Mas tu tens famílias que vivem no campo que não têm número da rua, que não têm nome da rua, que não têm CEP.” Prossegue com a habitação rural: “Ela não chegou ainda no campo. Existe recurso destinado, mas ela está ainda nos bancos ou presas às burocracias do Estado, tanto na esfera estadual como na esfera federal. Então é uma demanda bastante latente, muitas famílias estão morando em habitações provisórias, ou estão morando com seus familiares”.
Borges destaca ainda o grande número de famílias que precisam de apoio para retomar o plantio. “Uma outra necessidade que a gente verifica no campo é uma política pública para que as famílias consigam revitalizar a saúde do solo das suas propriedades. Porque a chuva foi tão intensa que em muitas propriedades foi o solo todo junto, o solo fértil foi embora e ficou ali um cascalho.”
Setor público não está preparado para reagir
A lentidão no apoio a quem produz alimentos também é lembrada pelo coordenador-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf/RS), Douglas Cenci. “O caso exige uma urgência extrema e que muitas vezes o setor público ainda não está preparado para reagir”, avalia.
Segundo ele, tanto a União quanto o governo estadual “não têm medidas prontas para acolher especialmente os agricultores que estão esparramados pelo interior do estado e que têm dificuldades inclusive de muitas vezes serem localizados”. Dessa forma, “socorros inclusive humanitários, como estabelecimento da energia, sistemas de comunicação e estradas, chegam sempre depois no meio rural”.
Luta dos agricultores familiares atingidos

O dirigente recorda da mobilização realizada no dia 15 de maio por agricultores familiares e movimentos populares em Porto Alegre. Milhares foram às ruas para alertar sobre as necessidades das famílias do campo no pós-enchente. Segundo ele, pautas dialogam sobre três principais problemas: endividamento, fortalecimento do seguro agrícola e habitação.
“As pautas dialogam sobre os grandes problemas dos agricultores, entre as estiagens e as consequências do modelo produtivo que chega ao campo pelas corporações. Esse conjunto de questões impõe uma redução na renda, por consequência a descapitalização de dividendos dos agricultores e por isso a necessidade de discutir uma medida de alongamento dessas dívidas e fortalecer e qualificar o seguro agrícola”, explica.
Segundo Cenci, houve alguns avanços em medidas importantes, em médio prazo, especialmente na relação com o governo federal. “Isso ocorreu principalmente na questão financeira dos agricultores, foram mais de R$ 1 bilhão de descontos para mais de 80 mil famílias que tinham acesso a financiamentos.”
Lógica de mercado
Para Borges, a demora nas respostas mais urgentes da população revela a lógica de mercado em detrimento aos seres humanos e ao meio ambiente. “O mercado e parte da política trata natureza e seres humanos como mercadoria. Então, quando tem uma enchente, por exemplo, a primeira preocupação é ‘isso vai dar lucro à recuperação desse espaço, à recuperação desse dique? A recuperação daquele território vai gerar lucro para alguém, para alguma empresa, para realizar a construção?’ Essa é a primeira preocupação dessa sociedade capitalista, que infelizmente ainda é hegemônica.”
O que diz o governo estadual
Em resposta aos questionamentos do Brasil de Fato, o governo do Rio Grande do Sul afirmou, em nota, que “está elaborando, através de uma coordenação conjunta da Secretaria de Desenvolvimento Rural e a Secretaria de Desenvolvimento Social, o Programa Estadual de Compras da Agricultura Familiar (Pecaf). A nota ainda afirma que o investimento previsto de R$ 903 milhões vai beneficiar diretamente 15 mil famílias e alcançar até 150 mil unidades produtivas em 495 municípios.
Sobre as moradias, a Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária disse que mantém um diálogo permanente com os produtores rurais e representantes de assentamentos e reassentamentos e que, em 2024, foram repassados R$ 12 milhões, para a reconstrução de 600 moradias rurais atingidas pela enchente. A ação integra o programa Porta de Entrada-Entidades, com recursos do Plano Rio Grande, e é um complemento ao repasse do programa federal Minha Casa Minha Vida – Entidades. Afirma ainda que até o momento não chegou qualquer outro pedido de moradias rurais.
