Antes de o local onde ficava o chamado “fluxo” da Cracolândia, no centro de São Paulo, amanhecer vazio no último 13 de maio, agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) agrediram usuários – uma vez mais – com spray de pimenta, chutes e cassetetes. A intensificação da violência estatal é descrita por usuários, comerciantes e ativistas que atuam na região como o instrumento usado pela prefeitura para pulverizar os frequentadores da Cracolândia. Na imprensa, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) diz que “é preciso celebrar” o “avanço”.
Lançada no Youtube do Brasil de Fato nesta quarta-feira (28), a série documental Território em Fluxo traz, entre os temas divididos em cinco vídeos, a cronologia e os impactos das políticas repressivas de segurança pública no centro da capital paulista até chegarmos onde estamos hoje.
Durante a gestão municipal de Kassab em 2012 a operação conhecida como “dor e sofrimento” – batizada assim depois de o governo dizer, explicitamente, ser este o objetivo da incursão policial – trouxe um divisor de águas.
As denúncias de agressões, prisões e revistas indiscriminadas foram tantas que, como conta a defensora pública Fernanda Balera no documentário, “o Ministério Público do Estado de São Paulo entrou com uma ação e conseguiu impedir a atuação da Polícia Militar na Cracolândia naquela época”. Foi a partir daí que, numa crescente militarização das forças municipais, a GCM ocupou este lugar.
“Hoje em dia eles já estão mirando o rosto, eles não miram mais no pé ou no tórax, igual miravam antigamente. Eles miram o olho. Entendeu?”, relata José Maurício da Silva ou Jogador, como é conhecido, por seu passado profissional no futebol. “Então, hoje em dia, não existe mais confronto de usuário com a polícia. Existe a covardia da polícia para com o usuário”, define.
Assista aqui a série completa:
Na entrevista dada poucos meses antes de o fluxo da Cracolândia ser pulverizado, Balera descreve que a GCM, “fortemente armada, inclusive com fuzil”, atua “como a Polícia Militar, mas sem os protocolos que a PM tem”. Sem Ouvidoria, por exemplo. Ao fundo da entrevista com a defensora, ilustrando a conversa de forma literal, guardas civis enquadravam ininterruptamente pessoas que saíam do fluxo.
Nesta quarta (28) em que o Território em Fluxo fica disponível ao público, este mesmo local na rua dos Protestantes, onde o poder público confinava usuários entre gradis e um muro, está vazio. E cercado por forças do Estado para que não seja mais ocupado. Trata-se de um dos lados da moeda do que o sociólogo Fábio Mallart descreve como as tecnologias de governo no território.
“O que a gente tem de um ponto de vista histórico é a articulação entre duas tecnologias de governo que, longe de serem excludentes, se conjugam: é a ideia de circulação”, explica Mallart, no documentário. “O que vemos é sempre um movimento de confinar aquelas pessoas que estão no fluxo em determinados espaços da região, ou de dispersá-las. A dispersão é sempre seguida de aglomerações pontuais, onde alguns grupos podem ser confinados ou postos para circular infinitamente na cidade”, narra o pesquisador.

“A cada operação há o envio de pessoas para a prisão, para comunidades terapêuticas, para centros de atenção psicossocial, para entidades religiosas. Então, você tem uma outra dimensão dessa circulação-confinamento, que articula esse campo institucional, porque as pessoas permanecem circulando por dentro e entre essas instituições”, pontua Mallart.
O Território em Fluxo abarca, ainda, os novos ingredientes destas tecnologias de governo, como o totem de identificação facial instalado na rua dos Protestantes, o programa de segurança pública Muralha Paulista, da gestão Tarcísio, bem como o processo em curso no centro que prepara a transferência da sede administrativa do governo estadual para a região.
Os protagonistas da série apontam que, diferentemente da visão simplista de que o problema da região é “a droga”, útil para a legitimação das ações repressivas contra esta população, a Cracolândia é sintoma das formas estruturais em que se dá a desigualdade social no país. “Não é a violência que vai tirar as pessoas daqui. Foi a violência que trouxe as pessoas para cá”, resume Roberta Costa, do coletivo A Craco Resiste.