“Venezuelano morto de fome”. Isso é o que relata ter ouvido Miguel Navarro, volante do time argentino Talleres, na última terça-feira (27). Ele jogava contra o São Paulo FC no estádio do Morumbis, em partida válida pela 6ª rodada da Copa Libertadores da América e teria sido alvo de um ataque xenofóbico do jogador Damian Bobadilla, da equipe paulista.
De acordo com pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato, a xenofobia contra venezuelanos foi construída nos últimos 10 anos e pautada por uma narrativa da grande imprensa de vários países.
É o que afirma Maria Eugenia Russian, presidente da Fundação Latino-americana pelos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (Fundalatin). De acordo com ela, a xenofobia contra o venezuelano de forma mais dura é muito recente e remete à migração de venezuelanos que saíram do país a partir de 2017. Naquele ano, o governo dos Estados Unidos endureceu as sanções contra a Venezuela e aprofundou uma crise econômica no país, que levou a saída de pelo menos 4,5 milhões de venezuelanos, segundo a ONG venezuelana Sures, que trabalha com temas migratórios.
A grande e rápida onda migratória causou grande choque em outros países da região que receberam esses venezuelanos, especialmente Colômbia, Peru e Chile. Para Russian, esse movimento foi aproveitado por meios de comunicação para transmitir a ideia de uma crise de refugiados que não tinha as dimensões de antes, além de ser instrumento para atingir o regime de Maduro politicamente.
“Foi uma campanha induzida pelas empresas de comunicação, especialmente as agências de notícias internacionais, com conteúdos de medo. Nasceu como um ataque contra a política da Venezuela, os meios de comunicação são claramente contra o governo de Nicolás Maduro, que se opõe à lógica neoliberal”, disse ao Brasil de Fato.
Ela lembra que o bloqueio dos Estados Unidos e o boicote de empresários locais fizeram com que, de 2017 a 2018, houvesse uma escassez de alimentos e produtos de necessidade básica no país caribenho. Essa realidade, no entanto, já não existe mais e o governo hoje rebate a ideia dizendo que a Venezuela produz quase a totalidade dos alimentos que são consumidos.
“Os migrantes venezuelanos são econômicos, vítimas do bloqueio. Havia realmente uma crise muito grave no país no final da década passada, mas essa ideia foi construída como se a crise fosse permanente. Uma ideia de fome e miséria, quando na realidade foi pontual dos anos de 2017 e 2018 e, que hoje, não existe mais”, disse.
Atualmente, no entanto, o país experimenta um retorno de venezuelanos celebrado pelo governo. De acordo com Caracas, mais de 1 milhão de pessoas já voltaram à Venezuela nos últimos tempos.
No futebol
O caso do futebolista Navarro entra com esse pano de fundo. Para Russian, esse é um ataque mais dentro desse contexto comunicacional e sociológico de uma “guerra multiforme”.
A denúncia do atleta partiu ainda durante o jogo. O São Paulo vencia por 2 a 0 e Navarro pediu ao árbitro que acelerasse a retomada da partida após o segundo gol da equipe paulista. Segundo Navarro, foi neste momento que o jogador paraguaio Damian Bobadilla do time brasileiro teria dito ao jogador “venezuelano morto de fome”.
Diante dessa situação, Navarro começou a chorar e foi acolhido pelos companheiros que pediram uma atitude do árbitro. Bobadilla não foi advertido. A Polícia Civil abriu uma investigação contra o atleta acusado de xenofobia. Ele teria deixado o estádio do Morumbi rápido e sozinho para evitar uma prisão em flagrante.
No Brasil, a xenofobia é enquadrada como crime de racismo pela Lei nº 7.716/1989 (Lei do Racismo) e pela Lei nº 9.459/97 (Lei de Crimes de Racismo).
“Vou até às últimas consequências diante do ato de xenofobia que vivenciei hoje no Brasil pelas mãos de Damián Bobadilla. Gostaria que pudesse ter nas minhas mãos a solução para a fome no meu país. Jamais terei vergonha das minhas raízes”, disse Navarro em publicação nas redes sociais após a partida.
A Federação Venezuelana de Futebol (FVF) também denunciou o caso e disse que pediu “medidas urgentes exemplares” das autoridades locais, ligas profissionais e organizações internacionais que organizam o futebol como a Conmebol e a Fifa.
A FVF também denunciou “atos de xenofobia” contra a jogadora venezuelana Jhoagny Contreras. Ela firmou ter sido vítima de ataques em 19 de maio por jogadoras do Deportes Recoleta em um jogo da Liga Feminina do Chile.
“A xenofobia contra jogadores de futebol venezuelanos é inaceitável e sempre será enfrentada com a maior firmeza. Infelizmente, esses incidentes não são isolados. Jogadores de futebol venezuelanos têm sido alvo de protestos discriminatórios e fora de campo. Como Federação, não ficaremos indiferentes a esses ataques, que violam não apenas nossos jogadores, mas também o próprio espírito do esporte”, afirmou a FVF em comunicado.
Percepção nos diferentes países
De acordo com pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato, a xenofobia contra venezuelanos na América do Sul se expressa de maneira diferente de país para país. Algumas nações que receberam muitos venezuelanos criaram uma cultura anti-migração sentida por aqueles que deixaram a Venezuela. O Chile é um exemplo.
De acordo com o Serviço Nacional de Migração chileno, ao menos 728.586 venezuelanos moram no país. Para a organização Sures, há uma diferença clara entre o preconceito contra migrantes ricos e pobres que vão a esses países.
“Os chilenos receberam muito bem os venezuelanos em um primeiro momento porque muitos migrantes eram profissionais com formação acadêmica e especialização que eles não tinham lá. Pelo Chile ser uma economia em expansão, eles precisavam de trabalhadores, o que ajudou. Mas depois chegou uma migração mais pobre, associada a trabalhos de delivery, então começa uma xenofobia contra essas pessoas. É muito nítida essa percepção da diferença de antes e depois”, afirmou.
No entanto, a percepção de xenofobia contra venezuelanos não é a mesma em outros países. Ela cita o caso do Brasil, Argentina e Uruguai, que receberam muitos venezuelanos, mas os migrantes que foram para lá não denunciam tantos casos de violência e ataques xenofóbicos. O grupo de pesquisa da Sures afirma, no entanto, que há uma construção mediática relevante para criminalizar os venezuelanos até nessas nações.
“Os venezuelanos passam despercebidos em um primeiro momento na Argentina pelo tamanho do país. Não há casos notáveis de xenofobia, assim como no Uruguai e no Brasil, onde também não há uma xenofobia notável”, afirmou ao Brasil de Fato.
O país que mais recebeu venezuelanos é a Colômbia, mas a migração para o país vizinho é histórica e há uma maneira diferente dentro do próprio país de lidar com os venezuelanos. A Sures afirma, no entanto, que o caso paraguaio é diferente, já que não são muitos venezuelanos que foram ao país. De acordo com o Ministério de Relações Exteriores do Paraguai eram apenas 7 mil venezuelanos no país em 2023.
“É estranho porque muitos venezuelanos passaram por lá, mas não ficaram. A mídia estereotipou, se construiu a a imagem de um venezuelano pobre e desesperado e ‘morto de fome’. Hoje esses veículos desinformam ao dizer que a crise alimentar persiste, já que os níveis de fome aqui na Venezuela são idênticos aos de outros países sul-americanos”, afirmou.