Neste mês de junho o longa “O Silêncio das Ostras” estreia como primeira ficção do diretor mineiro Marcos Pimentel, que traz Bárbara Colen e Lavínia Castelari como protagonistas de uma história atravessada por perdas humanas e destruição ambiental em Minas Gerais.
Com imagens reais das tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, o filme O Silêncio das Ostras tem emocionado o público e levantado debates desde sua estreia. A obra foi um dos destaques da 26ª edição do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro e marca a estreia do premiado documentarista Marcos Pimentel na ficção. Mesmo construído como narrativa ficcional, o longa é permeado pela realidade de quem vive à margem da mineração no Brasil.
Em entrevista ao Brasil de Fato Paraná, o diretor Marcos Pimentel e a atriz Bárbara Colen, que interpreta a protagonista Kailane na fase adulta, contaram sobre o processo criativo e os impactos pessoais envolvidos na produção.
Filme de ficção que conta histórias reais
“Apesar de ser um filme de ficção, a história é muito real”, afirma Marcos Pimentel. “Sou mineiro de Juiz de Fora e documentarista há mais de 20 anos. Mas falar de mineração em Minas é um tema espinhoso. As mineradoras são blindadas, tanto institucional quanto fisicamente,” disse Marcos.
A decisão de Pimentel de migrar da linguagem documental para a ficcional foi estratégica. “Enquanto documentarista, é quase impossível se aproximar das mineradoras. São espaços blindados — tanto pelas empresas quanto fisicamente. A ficção me permitiu falar do que é real sem as barreiras do acesso.”
Personagem é inspirada em muitas “Kailanes”
Sobre a personagem principal, Pimentel diz que se baseia em vidas e histórias reais. “A protagonista Kailane foi inspirada em muitas pessoas que conheci ao longo da vida, são muitas as Kailanes em regiões marcadas por perdas, pela mineração”, explica Pimentel.
O filme acompanha a trajetória de Kailane, uma menina que nasce em uma vila de operários e vai crescendo à medida que vê a paisagem e seus laços familiares desaparecerem. Ambientada a partir da década de 80, a produção é vista sob o olhar da dela, a caçula de uma família formada por mais quatro irmãos, que vive instigada por suas reflexões e pelo medo de possíveis mudanças e perdas da vida.
Na trama, as partidas se tornam algo comum na vida de Kaylane. Ela vê o tempo passar em um ritmo diferente do imposto pela produtividade do capitalismo, nutrindo uma curiosidade única pela vida e permeada não só pelo instinto de sobrevivência, mas também sua sensibilidade, imaginação e sua forma singular de se relacionar com a natureza e os insetos que encontra durante suas andanças.
Sozinha em um cenário ocre e destruído pela inconsequente ação das mineradoras na região, ela se torna vítima do êxodo de sua própria história, buscando caminhos e direções para seguir em frente.
A personagem é vivida por Lavínia Castelari, na infância, e Bárbara Colen, na fase adulta. Bárbara Colen, que já tem quase duas décadas de carreira no cinema, contou que o convite para o filme veio logo após uma experiência anterior com o diretor: “A gente tinha feito um telefilme para a Rede Globo Minas em 2018. Depois disso, o Marcos me chamou para um café e me contou sobre o projeto. Eu já fiquei muito emocionada com a história”.
A atriz mergulhou profundamente na construção da personagem, que descreve como sensível e julgada por ser diferente. Na pele da Kailane adulta, Bárbara Colen interpreta uma mulher atravessada por perdas e deslocamentos.
“A Kailane tem uma maneira muito particular de se expressar. Ela é observadora, escuta mais do que fala. Isso exigiu de mim um trabalho corporal intenso — entender como ela se move como ela olha o mundo”, conta a atriz. “É uma personagem julgada por ser diferente. O mundo não compreende sua sensibilidade. E eu quis honrar isso.”
Momento marcante
Colen revela um momento marcante das filmagens em Paracatu de Baixo, uma das áreas destruídas pela lama do rompimento da barragem de Mariana.
“A gente filmou numa escola destruída. No trajeto até o set, o motorista — que foi um dos socorristas na tragédia — me contou o que viveu. Ele chorava muito. Chorava ao lembrar. Foi ali que tive a dimensão do que estávamos contando. É indescritível a dor dessas histórias,” cita.
“Ele ainda disse que resgatava as pessoas num Uno, levando para o alto do morro. E quando perguntei se houve algum sistema de alerta antes da lama chegar, ele respondeu que não. Não houve aviso. As pessoas foram pegas de surpresa”, relatou Colen.
“Este filme é para que pare de ter “ex-montanhas”
O filme equilibra a poesia das imagens reais presentes na natureza com a denúncia silenciosa do abandono. Com locações reais, elenco sensível e uma estética visual rigorosa, O Silêncio das Ostras retrata um Brasil ferido, mas também resistente.
“A gente se retroalimentava da realidade o tempo todo, mesmo numa trama ficcional”, comenta Pimentel. “Havia um jogo constante entre os corpos e os espaços. Filmávamos com crianças, animais, natureza viva. Apesar de termos um roteiro definido, nos permitimos mudar. Incorporamos o que o espaço nos oferecia. É um filme que se construiu em contato direto com a realidade. Filmamos o caminho da lama, reconstruímos cenários baseados nos desastres. O cinema permite isso: esculpir a história à medida que ela vai acontecendo.”
Pimentel também destaca a importância de registrar espaços em desaparecimento. “Filmamos em 2022 e, de lá para cá, algumas montanhas já não existem mais. A gente precisa lembrar que essas tragédias aconteceram. O Silêncio das Ostras é uma luta contra o esquecimento e contra a naturalização do desastre,” diz
Mais do que um retrato das tragédias, o filme é um alerta para que não se esqueça — e não se repita. “A luta é para que deixemos de ter montanhas que viram memória. Que parem de existir categorias como ‘ex-montanha’”, desabafa o diretor.
Bárbara Colen reforça a necessidade de sensibilizar as novas gerações: “Tem uma garotada aí que talvez não tenha memória direta do que aconteceu. Mas é uma geração que vai viver ainda mais intensamente as mudanças climáticas. Eu penso no meu filho, que tem dois anos, e me pergunto: que mundo ele vai encontrar? Esse filme é um alerta, um pedido de ação.”