A Justiça do Rio Grande do Sul autorizou, no sábado (28), a retirada das sete famílias que ainda viviam sobre o dique do Sarandi, na Rua Aderbal Rocha de Fraga, zona norte de Porto Alegre.
A decisão do Núcleo de Justiça 4.0 – Enchentes 2024 acolhe o pedido da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, do Departamento Municipal de Habitação (Demhab) e do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) com base em laudo técnico que apontou risco elevado de colapso da estrutura e comprometeu a continuidade das obras emergenciais de reforço. O documento foi assinado pelo juiz Mauro Evely Vieira de Borba.

“A desocupação imediata das casas é condição indispensável à segurança da população, à integridade da obra e à estabilidade da estrutura”, afirma o juiz, com base no laudo técnico apresentado pelo Município.
“Mais uma vitória importante para a proteção de cheias de Porto Alegre. Essa nova decisão da Justiça nos permite avançar em uma etapa essencial para a segurança da cidade diante dos eventos climáticos extremos. Todas as famílias impactadas terão garantia de reassentamento com respeito e dignidade, conforme o plano apresentado à Justiça. Seguiremos firmes nas ações que priorizam a vida e a proteção da população”, declarou o prefeito Sebastião Melo.
Apesar da decisão, as famílias ainda não conseguiram se mudar. Mesmo contempladas com o programa federal Compra Assistida, enfrentam entraves burocráticos, incertezas e denunciam abandono por parte do poder público.
No final de maio deste ano, o Brasil de Fato RS acompanhou uma reunião da Anistia Internacional com as famílias remanescentes, na ocasião elas afirmaram não ser contra à remoção, contudo esperam garantia de moradia.
Laudo aponta risco geotécnico e bloqueio das obras
Segundo o laudo anexado ao processo, a presença das moradias sobre a crista do dique representa risco geotécnico elevado. “A continuidade da obra de reforço, nas condições atuais, representadas pela presença de edificações no entorno da crista, não é tecnicamente possível”, diz o parecer.
O documento destaca que até mesmo obras de menor porte podem provocar fissuras, deslizamentos e agravamento da instabilidade estrutural. O juiz cita que a permanência das moradias compromete não apenas a segurança dos ocupantes, mas de toda a comunidade adjacente. “A tentativa de execução da obra sem desocupação integral representaria responsabilidade objetiva por eventuais sinistros”, advertiu o magistrado.
Na decisão o juiz determina que o município deverá: adotar, às suas expensas, todas as providências necessárias à realocação das famílias e de seus animais de estimação, incluindo transporte, guarda e proteção dos seus bens; transportar as pessoas, seus animais e pertences para os locais por elas indicados ou, se necessário, providenciar depósito temporário para os bens; alojar, nos locais indicados, as pessoas que não tiverem para onde ir; providenciar o Cadastro Social dos atingidos, se ainda não realizado, para inclusão em programas de habitação; e o canil municipal deverá ser disponibilizado, se necessário, para apoio aos animais.
Plano de reassentamento atenderia exigências legais
A decisão aponta que o plano de reassentamento habitacional apresentado pela prefeitura “cumpre as exigências estabelecidas por este Juízo (…) em conformidade com as diretrizes fixadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 828)”. Entre os itens citados, estão módulos provisórios prontos, acesso a serviços públicos, transporte e apoio logístico para a mudança.
“As evidências técnicas inequívocas e as providências administrativas eficazes (…) autorizam a reconsideração da decisão inicial”, escreveu o juiz.
Ao final, a decisão reconhece o conflito entre direitos fundamentais e afirma que a medida busca conciliá-los: “A permanência das famílias sobre o dique, em área instável e de risco geotécnico que foi provado por laudo técnico, coloca em grave ameaça o direito à vida e à segurança. Assegura-se, com esta decisão, a conciliação entre o respeito à dignidade das famílias e a proteção à vida e à segurança pública”.
Contudo, segundo os relatos das famílias, a situação na prática é outra: há demora na liberação dos imóveis, cortes nas avaliações e ordens de saída antes da garantia de moradia definitiva.
“Agora é sair com as crianças e ir para o abrigo”
A moradora Marianne Friedrich, 34 anos, que mora há 20 anos no local, conta que, após meses de espera, está prestes a assinar os papéis do novo apartamento, mas teme ser retirada antes disso. “A gente lutou muito pra conseguir nos manter aqui até pegar a nossa chave definitiva. Só que agora a ordem judicial que nos mantinha aqui foi dispensada. A qualquer momento a gente pode ser retirada com nossas crianças dentro de casa e levadas para o abrigo”, desabafa.
Ela explica que está marcada para assinar a documentação na quarta-feira (2), mas não sabe se haverá tempo. “Tenho uma filha de 9 anos. Só peço que tenham sensibilidade e nos deixem ficar até podermos nos mudar direto pro imóvel. Já esperaram tanto, custa esperar mais uns dias?”, questiona.
A situação de Solange Avillaneda Melo Dias, 45 anos, moradora do bairro desde que nasceu, é ainda mais delicada. Sua casa foi reprovada na vistoria da Caixa, e o imóvel que havia sido escolhido acabou desconsiderado. “O engenheiro achou um monte de problema na caixa d’água e dentro de casa. Avaliou por R$ 170 mil, sendo que vale mais de R$ 200 mil. Agora estou prestes a ser despejada, com uma criança de 5 anos, sem saber para onde ir”, relata.
Ela destaca que não tem parentes para acolhê-la e que os aluguéis estão muito acima dos R$ 1 mil pagos pelo programa de auxílio temporário. “Aonde forem minhas coisas, eu tenho que ir junto. Voltei pra estaca zero.”
“Eles falam uma coisa e fazem outra”
As moradoras alertam outras famílias que ainda serão removidas sobre o que chamam de contradições do poder público. “Eles te dão um tapinha nas costas, mas por trás entram com liminar pra te tirar. Dizem que estão ajudando, mas na prática estão empurrando a gente pra fora sem garantia de nada. Quem não tá na frente da Justiça ou da mídia, então, é invisível.”
Dias reforça que apostou todas as fichas no imóvel negado. “Desde janeiro estamos tentando resolver isso. Quando negaram, veio logo a ordem de reintegração. É cruel.”
Questionadas sobre o que deixam para trás, as moradoras mencionam vínculos comunitários, estabilidade dos filhos na escola e o sentimento de pertencimento. “A gente perde a nossa história, os amigos, a escola das crianças. Vamos ter que achar nova escola no meio do ano, pensar pra onde vamos. É uma coisa muito incerta”, diz Friedrich.
“Eles vão ganhar nossas casas. E a gente tá perdendo tudo. Tudo de uma vida virando destroços”, conclui Dias.

MAB afirma que seguirá acompanhando situação no Sarandi
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) segue mobilizado junto às famílias da comunidade Aderbal, no bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre. Segundo a coordenadora Maria Aparecida Castilhos (Cida), o movimento acompanha a situação desde o início das enchentes no Rio Grande do Sul, e também desde janeiro, quando os moradores receberam uma notificação judicial para desocuparem a área até o dia 28 de fevereiro.
“Desde então, a gente se mobilizou: fizemos cartazes, colocamos nas portas das casas, fizemos visualizações para que a população soubesse da luta das famílias. Levamos a pauta para a imprensa, fizemos vários depoimentos, participamos de audiências na Câmara de Vereadores e na associação de moradores, organizamos caminhadas. Foi uma grande luta, e as gurias lutaram muito até o fim”, relatou.
Apesar dos esforços, Cida afirma que a situação sofreu um revés após uma visita do prefeito Sebastião Melo ao dique, onde teria alegado um rompimento que estaria provocando vazamento de água. A justificativa foi usada para reforçar a necessidade de retirada das famílias, mas, segundo o MAB, não houve clareza sobre as condições reais da estrutura.
“Nessa situação, ele colocou o restante da população do Sarandi, que mora mais para dentro, contra essas famílias que estão na beirada”, criticou Cida. “O juiz acabou deferindo a liminar para a retirada das famílias.”
A remoção está prevista para acontecer nesta quarta-feira (2), quando duas famílias serão encaminhadas para um abrigo da prefeitura. As demais já saíram por conta própria, indo para casas de parentes ou alugando outros locais, ainda sem receber as chaves das moradias prometidas.
“Finalizaram dessa forma com essa liminar que diz para retirar, não tivemos mais como ter recursos. Hoje a gente estava lá para garantir que os direitos delas fossem respeitados. A prefeitura vai fornecer caminhão para a mudança e encaminhar os animais para abrigo. As famílias vão para um espaço tipo containers, onde poderão levar os móveis e permanecer ali temporariamente”, explicou.
Mesmo diante das remoções, o MAB afirma que seguirá mobilizado na região. “Continuamos na luta, porque ainda existem cerca de 1.700 famílias que precisam sair. Vamos continuar lá, dando apoio, até a última pessoa sair”, concluiu.
