O cantor e compositor Zé Ibarra lança seu novo álbum Afim, uma obra que expande sua sonoridade ao misturar texturas, orquestrações e diferentes ritmos, sem perder a melancolia e a beleza que marcam seu trabalho. Para o artista, a pluralidade sonora acompanha sua carreira desde sempre e reflete as complexidades do mundo contemporâneo. “O que é estar vivo, o que é ser um jovem no século 21, com a internet, as imagens, a velocidade, a falta do corpo?”, questiona. Segundo ele, a música é um espelho que reflete esse bombardeio de estímulos e múltiplas experiências.
Zé Ibarra também destaca o papel da arte em provocar reflexão e desconforto em tempos marcados pela polarização e pela superficialidade das redes sociais. “A arte tem como valor fundamental dar a possibilidade de nós vivermos vidas sem que precisemos vivê-las”, afirma. Para ele, o belo tem um “poder político único”. “No mundo distópico, claustrofóbico, vigiado, narcísico e solitário, o deslumbramento é uma coisa muito importante, porque as pessoas se maravilham e saem dali melhores.” Em sua música, o artista busca esse lugar, oferecendo um estímulo que considera “poderoso e politicamente quase necessário”.
Sobre o momento atual da música brasileira, Ibarra observa a força cultural das periferias, sobretudo no funk, e a importância da troca entre gerações e estilos. “Eu bebo muito dos que foram, do tradicionalismo da MPB, mas me inspira muito a galera de hoje em dia, que é a minha galera, que sou eu também”, diz. Apesar do mercado privilegiar músicas mais comerciais e menos críticas, ele acredita que a MPB ainda ressoa e que é fundamental que o artista não tenha medo de se expressar. “Digo para mim e para os outros: digam o que quiserem, não importa. É sobre ser você na sua essência.”
Leia a entrevista na íntegra:
O seu novo álbum, Afim, expande sua sonoridade, misturando texturas, orquestrações e também diferentes ritmos, mas sem perder a melancolia e a beleza única do seu trabalho. Como você enxerga a busca por essa pluralidade sonora como um reflexo das complexidades emocionais e sociais do Brasil de hoje?
Acho que todas essas coisas que acabam aparecendo no meu trabalho. Tem gente que tem um caminho muito racional e estratégico; eu não, sou mais espontâneo. A pluralidade sonora está na minha carreira desde sempre, desde a Dônica [banda brasileira de rock fundada por Zé Ibarra], depois no Bala Desejo [álbum da banda Dônica], depois no meu disco solo [Marquês, 256.], na escada do meu prédio, tocando voz e violão, e agora no Afim.
Isso tem a ver não necessariamente com as questões emocionais e sociais do Brasil, mas mais do mundo: o que é estar vivo, o que é ser um jovem no século 21, com a internet, as imagens, a velocidade, a falta do corpo… Para onde nós vamos com isso? De alguma forma, neste disco e nos outros, perpassa essa coisa múltipla, vasta, que aponta para milhões de lugares. Até porque nós somos bombardeados com milhões de coisas. Então, para mim, é natural que o que sai de mim também seja um reflexo, um espelho invertido no outro.
No seu novo álbum Afim, você transita entre gêneros. Tem reggae, samba e também experimentações que remetem a Caetano Veloso. O quanto essa mistura é uma escolha consciente de dialogar com a diversidade da cultura brasileira e o quanto é fruto dessa sua inquietação artística?
É muito mais fruto da inquietação artística que me move e do que eu consumo porque eu consumo muita coisa. Gosto de muitos tipos de músicos. Para mim, cada música pede para ser de um jeito. Tem músicas que me pedem para ir para um lugar, tem outras que me pedem para ir para outro lugar, e eu só as respeito. Tento ouvi-las, mantendo certas coisas que prezo: questões harmônicas, melódicas, tipo de instrumentação, estética em termos de textura… Mas eu vou pelo que a música me pede e, ainda bem, consigo transitar.
Tenho a habilidade técnica para falar “isso aqui talvez seja um reggae”. Eu pego o violão, toco, olho para os músicos e nós vamos. Tem coisas, por exemplo, Transe [canção do álbum Afim]: não dá para classificar, eu não sei o que é aquilo ali. Esses são os lugares que mais me orgulho quando dá para chegar. É algo que não cabe em nome. O pessoal fala: “Isso aqui nunca vi”. Claro, é uma mistura de um monte de coisas, mas acaba gerando algo quase novo.
Suas letras frequentemente abordam temas como um amor mal resolvido, uma saudade, inquietações existenciais. Você acredita que a arte tem o papel de provocar esse desconforto e essa reflexão no público, especialmente em tempos de polarização e superficialidade das redes?
Acho que a arte tem como valor fundamental dar a possibilidade de nós vivermos vidas sem que precisemos vivê-las. Quando você vê um filme, você viveu aquele filme. Acaba que você se modifica. Essa é a grande loucura da arte: apontar caminhos, liberar opções também. Hoje estamos muito focados nos discursos, e eles têm que existir, sempre existiram, e são importantes. Mas o belo também é muito importante. O belo fala por si só, de alguma forma, tem um poder político único, que é o deslumbramento. No mundo distópico, claustrofóbico, vigiado, narcísico e solitário, isso é muito importante porque as pessoas se maravilham e saem dali melhores.
Sua trajetória passa por encontros com ícones da MPB tradicional e também por experimentações com artistas da cena indie, por exemplo. Como você vê o papel da música na construção de pontes entre diferentes gerações e movimentos culturais do Brasil?
Sempre foi assim. Quem está ligado na matéria-prima artística, na matéria viva artística, que são pessoas inquietas, com muito prazer e dor ao mesmo tempo, querendo dizer alguma coisa, entender o mundo, consegue ver isso em todos os lugares, tratos sociais, idades. Eu bebo muito dos que foram, do tradicionalismo da MPB, mas me inspira muito a galera de hoje em dia, que é a minha galera, que sou eu também. Com novos temas, reflexões, atitudes, inquietações. É natural, o único jeito de ter uma rede real de produção de cultura, que não abata.
Hoje em dia há uma amnésia, uma coisa de achar que o que passou não é válido. Mas eu não acho isso, tem muita coisa maravilhosa. É um empilhamento de informação e fica infinita a construção cultural. Para isso, sempre existiu essa troca internacional. Tem beleza igual nos dois [no antigo e no novo]. É uma coisa doida.
O Brasil vive um momento de redescoberta de ritmos regionais e valorização da música feita fora dos grandes centros. Como artista, como você enxerga a importância de trazer vozes e sons periféricos para o centro do debate da cena musical?
É absolutamente importante e está acontecendo muito. É impressionante. O que acho mais vanguarda no Brasil é o funk: é uma revolução estética. É uma pena que o Brasil esteja tão focado no Rio de Janeiro e em São Paulo porque perde-se muito. Mas com a internet e as facilidades e democratização dos meios de produção, isso está mudando. Não que as oportunidades estejam iguais, mas a força cultural que sai das periferias hoje está claramente dominando, e de forma muito rica, porque realmente o Brasil pode muito mais.
O espaço para a chamada MPB tradicional está cada vez mais restrito no mercado, enquanto o mainstream privilegia outros estilos. Você acredita que há algum tipo de projeto político por trás dessa marginalização da música de conteúdo mais crítico e reflexivo, enquanto o que vira sucesso, por exemplo, são músicas que defendem o agro?
Eu não tenho certeza se algum dia foi diferente. Naquela época em que a gente ouvia Chico Buarque falar da ditadura, quem sustentava a gravadora não era ele. Sempre tivemos artistas populares que falavam sobre amor e eram considerados alienados. Temos que entender o mundo cada vez mais pela perspectiva do algoritmo e da internet. Aprofundamento, complexidade, liberdade não combinam com algoritmo, não combinam com a internet. Acho natural que a massificação provoque um reducionismo de conteúdo, uma coisa cada vez mais alienada.
Mas, ao mesmo tempo que isso acontece na música, emergem coisas que contradizem. A MPB é um mistério. Quando vejo meu disco, falo: “o que estou fazendo da vida?” Mas sou fruto disso também, estou imerso naquilo e vejo uma beleza profunda no que se chama MPB. Do pouco espaço que ela ainda ocupa, fico feliz de, de alguma forma, fazer parte e ver que ainda ressoa muito.
Você já afirmou querer deixar sua marca e indicar caminhos para a música brasileira. Como é para você equilibrar esse respeito à tradição do MPB com o desejo de transgredir, experimentar novos rumos sonoros?
Acho que as coisas não são opostas. O respeito à tradição não é contradição com a inovação. João Gilberto revolucionou tudo cantando os sambas dos anos 20, 30, porque mudou o jeito de cantar aquilo, fez uma fusão das duas coisas. Caetano olhou para trás e para frente o dia inteiro. Não penso muito sobre esse paradoxo.
Eu tendo a me sentir livre para ir para onde eu quiser. Se começo a me aproximar muito da galera de São Paulo, da música indie, experimental, se achar que tenho que ir para aquilo, alguma coisa clássica minha, o jeito que canto, o tradicional, vai continuar, vai perdurar. E talvez eu crie algo diferente no meio do caminho. Não tenho intenção consciente de manter as coisas e misturar. Só sai assim.
A música sempre foi ferramenta de resistência e transformação social. Em tempos de ataques à cultura, cortes de investimento e discursos conservadores, qual o papel do artista na defesa da democracia, diversidade e direitos humanos?
Não ter medo. Cada vez mais, o ambiente em que temos a percepção da realidade – que não é a realidade, mas uma percepção – que é a internet, é hostil. Para nós artistas, que dependemos de visualizações, curtidas, seguidores, ingressos, pode parecer um ambiente muito venenoso. Dá muito medo, porque você pode ser odiado, pois as pessoas estão nessa moda. O mundo gira assim. Acho que é para não ter medo de falar qualquer coisa que vier. Não só em termos políticos, mas porque são assuntos complexos num Brasil polarizado, um mundo emburrecido por causa da forma como nos relacionamos hoje.
Falo isso para mim o tempo todo. Até para fazer uma canção, um gesto, o que quiser. Não pensar no que aquilo pode dar. Tem que fazer, porque quando fizer sem pensar, será mais verdadeiro. E sendo mais verdadeiro, você terá mais força para encarar o que vier. Melhor do que fazer algo falso, querendo agradar alguém e depois, quando der merda, porque pode dar, você não terá a verdade dentro de si, dependerá do que um dia falou.
Eu tenho medo, todo mundo tem medo. Ainda mais nesse Brasil, com a maluquice de impunidade na internet, de que as pessoas falam o que quiserem. É complexo. Digo para mim também, e para os outros: digam o que quiserem, não importa. É sobre ser você na sua essência.
O Brasil dos anos 90, período que inspira parte do seu trabalho, foi marcado por avanços democráticos e desafios sociais. Como sua música dialoga com as esperanças e desilusões daquele tempo e o que ela pode oferecer de esperança para o Brasil de hoje?
Eu adoraria dizer agora sobre o que penso politicamente, mas vivo inscrito um pouco nesse medo, em certas dificuldades, porque o mundo é complexo. Hoje minha música atua muito mais num lugar de experiência do belo num mundo tão tóxico, em todos os sentidos, devastado, distópico. A presença de grandes belezas e de amor também, porque só faço música por isso e sei que isso transparece nela. Isso é um estímulo poderoso e politicamente quase necessário. Até agora, minha música foi muito mais nesse lugar do que em discursos políticos explícitos, músicas de protesto.
Mas amor é esperança. Tem tudo a ver uma coisa com a outra. Não falo só porque falo, não é só falar sobre amor. É mais sobre coisas incrivelmente bonitas que, quando você vê, lembra que a vida pode ser diferente. Quando ouço algo assim, uma canção ou um filme que, às vezes, não é político, mas é político por esse lugar, me tira da realidade e me lembra. Quando volto, penso: quero caminhar nesse caminho, ir para cá. Aí você muda sua vida.
Se tivesse escola de teatro, música, cinema no Brasil profundo, não seria assim, porque as pessoas estariam vendo, desde a infância, uma subjetividade que olha para o que importa na vida. As coisas bonitas, o que temos de melhor para dar como espécie, bichos, seres pensantes, criativos. Só que não é assim. Nós vivemos aqui.
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