A expectativa de vida para quem trabalha com o garimpo ilegal na região amazônica é de 55 anos. O número, revelado pelo estudo “Impactos da Mineração Ilegal na Amazônia”, feito pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil) e o Instituto Conviva, é 28% menor que o da média nacional. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população brasileira vive, em média, até os 76,4 anos.
As principais causas de morte destes garimpeiros, referidos pela pesquisa como “proletários da lama”, são acidentes de trabalho, conflitos armados e falta de atendimento médico. Afogamento, soterramento, ataques de animais, picadas de cobras, ferroadas de insetos e picadas de aranha são listados, nesta ordem.
“As causas dessas mortes estão muito relacionadas à violência”, salienta Marcia Oliveira, doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), integrante da REPAM-Brasil e uma das organizadoras do levantamento.
“Nós entendemos, por exemplo, que ao ser picado por uma cobra, não receber tratamento e vir a óbito é uma violência institucional. Morrer de fome ou de acidente no trabalho sem receber nenhum tipo de assistência também é uma violência institucionalizada nos garimpos. Ou seja, o modo de vida no garimpo não permite um aumento da expectativa de vida dos trabalhadores”, argumenta Oliveira. “A possibilidade de morte de alguém que está há mais de 10 anos trabalhando no garimpo é altíssima”, resume.
De acordo com a pesquisa, o impacto do garimpo ilegal na Amazônia — que cresceu cerca de 650%, entre 2016 e 2022 — vai, portanto, além da destruição ambiental. “Está no centro de uma cadeia de violações de direitos humanos, exploração sexual, tráfico de pessoas, trabalho análogo ao escravo e violência sistemática contra povos indígenas e trabalhadores migrantes”, assinala a Repam.
Os “proletários da lama” trabalham “em condições precárias, descartáveis, sem direitos trabalhistas e frequentemente submetidos a jornadas exaustivas, riscos de morte e doenças graves”, aponta o estudo, feito por uma equipe de sociólogos, comunicadores e antropólogos. Foram feitas entrevistas com 389 pessoas em Manaus (AM), Altamira (PA), Porto Velho (RO) e Boa Vista (RR).
Os pesquisadores encontraram um padrão, entre os garimpeiros, de doenças crônicas, muitas das quais resultantes da exposição ao mercúrio. Em 2024, as enfermidades mais frequentes foram gota (24%), malária (19%), tuberculose (14%), bronquite (13%), pneumonia (11%) e reumatismo (10%).
“Muitos reclamam de doenças relacionadas à artrite, desgastes ósseos, questões vinculadas também ao modo de trabalho: trabalhar no barro, molhado o tempo todo, sem nenhum equipamento de segurança: tudo isso contribui para que a expectativa de vida seja muito abaixo da média nacional”, avalia Márcia Oliveira.
“Se amanhecer vivo, já está no lucro”
“No garimpo, a gente aprende a não esperar nada da vida. Se amanhecer vivo, já está no lucro”, relata Adriano*, um dos entrevistados da pesquisa. Ele saiu de casa no Mato Grosso aos 14 anos, depois de uma briga com os pais. Sem muitas alternativas de sustento, foi apresentado aos serviços ilegais do garimpo e a isso se dedicou quase toda a vida. Hoje, aos 66 anos, abandonou o trabalho e vive há oito anos nas ruas de Manaus.
“O garimpo faz a gente se perder da vida. Um dia a gente ganha, no outro a gente perde tudo. Um dia a gente bamburra, no outro a balsa é destruída. E assim a gente se acostuma a correr de um canto a outro. Assim, sem paradeiro”, afirmou.
Rosa, outra entrevistada e também moradora de Manaus, dedica 18 dos seus 54 anos de vida na busca pelo filho, Israel. Aos 16, ele foi levado pelo pai para trabalhar no garimpo. “Aquele inferno”, descreve ela. Ali, o menino sumiu, nunca mais voltou.
“Meu coração de mãe sente que ele já está com nosso Pai Redentor. Mas nunca parei de procurar por ele. É muito difícil, sabe. Não tem nenhuma pessoa que seja responsável por ninguém no garimpo. Você não sabe para quem perguntar. Eu nunca consegui perdoar o meu ex-marido por ele ter perdido nosso menino. Ele também se embrenhou por esse mundo afora e nunca mais retornou. A gente não sabe o que aconteceu. Não tem nem como denunciar na polícia, porque eles não podem entrar nos garimpos. É terra de ninguém, sabe?”, relatou Rosa.
Quando estamos trabalhando dentro da área, só podemos sair se não estivermos devendo nada”, explica Vicente*, garimpeiro cuja entrevista coletada pelo sociólogo Francisco Silva é citada no estudo.
“Eles impedem a saída daqueles que estão devendo e só os deixam sair por motivo de doença. Isso inclui a todos trabalhadores braçais e as meninas que estão na corrutela [no contexto de garimpo, são locais de prostituição]. Mesmo assim, a pessoa fica devendo”, descreve Vicente. “Nos últimos anos, está ocorrendo muita leishmaniose e muitos tumores cutâneos. Tem muito mosquito e nenhum remédio, e a gente toma água de grota, aparentemente limpa, mas toda contaminada com as fezes dos garimpeiros e com o mercúrio”, conta.
Mulheres no garimpo
A pesquisa identificou, ainda, 309 casos de pessoas em situação de tráfico humano. Entre elas, 57% mulheres migrantes e 78% de brasileiras.
“Há muitos anos pesquisamos a mineração na Amazônia e, neste último mapeamento, o que nos chamou mais atenção é o crescimento da presença das mulheres nas áreas de garimpo, o aumento da violência em todos os sentidos, tanto na exploração do trabalho análogo à escravidão, como nas relações de dominação muito fortes, de modo especial contra as mulheres e os povos indígenas, que vivem nos arredores, e o recrutamento de crianças indígenas para trabalho nos garimpos”, destaca Márcia Oliveira.
De acordo com a pesquisadora, outro ponto de atenção é o “aumento da cumplicidade do Estado”. “Políticos locais e em nível nacional estabelecem apoio. Não só com a omissão da fiscalização, mas também com financiamento: muitos políticos da região estão tremendamente envolvidos com o garimpo”.
*Nomes usados são fictícios para proteção das pessoas mencionadas