Há algum tempo vivemos, no Brasil e no mundo, sob o signo da crise. Crise econômica, crise política e da representação, crise ambiental, crise sanitária. Como se costumava dizer à época da pandemia, situações críticas parecem ser o novo normal. Assim tem sido a condição natural do sistema político brasileiro ao menos desde 2013. Sem fazer juízo de valor sobre as Jornadas de Junho daquele ano, parece consensual que as manifestações de rua que ocorreram em diversas cidades brasileiras tiveram impacto significativo sobre o comportamento político da sociedade e sobre a atuação institucional de atores dos três poderes da República. Naquele contexto, acompanhamos a contestação das eleições de 2014, a emergência da Operação Lava-Jato, um processo de impeachment carente de legitimidade, a ascensão da extrema direita nas ruas e nas instituições e um consequente desarranjo das regras formais e informais que asseguravam a estabilidade política no país.
Obviamente, encontramos inúmeras interpretações sobre o atual cenário da política brasileira. Há desde aqueles que não identificam mudanças significativas em relação ao presidencialismo de coalizão que vigorou até o início dos anos 2010, até os que sugerem o fim da Nova República, inaugurada com a aprovação de Constituição de 1988. A tese do presidencialismo de coalizão, simplificando muito as coisas, sustentava que o modelo de relações entre o Executivo e o Legislativo no Brasil, diferentemente do que afirmava a literatura no início dos anos 1990, conferia ao presidente da República recursos suficientes para a formação de uma coalizão relativamente estável de apoio no Congresso Nacional. Recursos como a distribuição de cargos e prebendas na estrutura do Estado, o poder de emitir Medidas Provisórias e a prerrogativa exclusiva sobre matérias orçamentárias, somados à centralização dos trabalhos na Câmara e no Senado, assegurada pelo Colégio de Líderes e a autoridade das lideranças partidárias, constituíam um arranjo no qual o Poder Executivo dispunha de forte capacidade de aprovação de sua agenda. Pesquisas realizadas durante os governos FHC, Lula e o primeiro mandato de Dilma atestavam a governabilidade do presidencialismo brasileiro, a despeito da fragmentação partidária e dos pontos de veto do sistema político.
Não é preciso ser apocalíptico para perceber que algo mudou. O impeachment de Dilma Rousseff, o interregno Temer, o governo Bolsonaro e o atual governo Lula dão sinais mais do que evidentes de que o Poder Executivo perdeu ao menos parte de seu poder de atração de aliados para a formação de uma base de apoio estável no Congresso Nacional. Tem se tornado cada vez mais comum a rejeição de projetos do interesse do governo, do que são exemplos o atraso na aprovação da Lei Orçamentária Anual e, na última semana, a derrubada de um Decreto Presidencial, o que não ocorria desde o governo Collor. Refiro-me, aqui, ao decreto elaborado pelo governo que aumentava a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).
Durante o período de festividades de São João, em que o Congresso tende a ficar esvaziado e as negociações entre o governo e os parlamentares esfriam, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), anunciou, em sua conta no X, que colocaria em votação a derrubada do decreto. Em uma manobra à socapa, no que parece ter sido uma bola nas costas dos ministros responsáveis pela articulação política do governo, Motta e diversas lideranças do Congresso viabilizaram a derrota do Poder Executivo e impediram mais uma vez o aumento da tributação que incidiria principalmente sobre a parcela mais privilegiada da sociedade.
A derrota acontece em um momento em que o presidente Lula enfrenta dificuldades para construir uma imagem positiva de sua administração, em que pese a divulgação de resultados positivos no emprego e na renda da população. E ocorre quando o tema da justiça tributária aparece como um elemento importante para viabilizar a reeleição de Lula em 2026. Há ao menos duas questões relevantes sobre o modelo de presidencialismo vigente no Brasil que emergem da votação ocorrida na semana passada.
O primeiro se refere ao impacto das emendas orçamentárias sobre a governabilidade. Em 2015, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), aprovou mudança legislativa que tornou impositiva a execução de parte das emendas individuais apresentadas pelos parlamentares. Com isso, o Poder Executivo perdeu um relevante instrumento de barganha com o Congresso Nacional, que se sustentava na prerrogativa de definir sobre a afetação do orçamento público. Os parlamentares, hoje, não dependem mais do governo federal para enviar recursos para as suas bases. Essa medida, ao mesmo tempo em que conferiu autonomia ao Legislativo, permitiu que fossem erigidas barreiras que impedem à sociedade uma fiscalização adequada da aplicação de recursos públicos. Ainda que as emendas orçamentárias sejam instrumentos para a representação de interesses legítimos por parte dos parlamentares, a sociedade brasileira perdeu um dispositivo crucial para assegurar a prestação de contas dos seus representantes, o que enfraquece a própria representação política.
Esta seria a segunda questão a que fiz referência anteriormente. Os líderes do Congresso Nacional, na figura dos presidentes da Câmara e do Senado, argumentaram que a derrubada do decreto do IOF teria sido uma expressão da vontade do povo por meio de seus representantes. É evidente que deputados e senadores foram eleitos e têm a prerrogativa de agir em nome daqueles que os elegeram. No governo representativo moderno, não cabe a reivindicação de um mandato imperativo, isto é, os representantes eleitos dispõem de relativa autonomia para tomar decisões de acordo com o que consideram ser o melhor interesse da sociedade.
Contudo, certas ações recentes dos parlamentares brasileiros, impondo dificuldades para a aprovação de matérias para a realização da justiça tributária ou para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores (como o fim da escala 6×1), colocam em dúvida a sua representatividade. Elas nos levam a duvidar se, de fato, os nossos representantes no Congresso Nacional agem de acordo com o que consideram o melhor interesse da população, ou se, por outro lado, estão representando as próprias preferências e os interesses da parcela mais privilegiada da sociedade. O enfraquecimento dos mecanismos de prestação de contas, ao criar um ambiente menos transparente para a afetação dos recursos públicos, dificulta o escrutínio público e abre espaço para se questionar quem, de fato, deputados e senadores representam.
O processo eleitoral, por si só, não é suficiente para constituir um vínculo de representação. Dados de pesquisas recentes sugerem certo descompasso entre o que pensa a população e as preferências do Congresso. Em temas como o fim da escala 6×1 e o fim dos salários que ultrapassam o teto do funcionalismo público, sociedade e parlamentares apresentam preferências opostas. Já no que se refere à isenção de impostos para quem ganha até R$ 5.000,00, sociedade e Poder Legislativo têm preferências semelhantes. No entanto, até o momento, a votação do Projeto de Lei que cria a isenção não foi à pauta do Congresso. Reconhecer a legitimidade dos mandatos eletivos não pode significar fechar os olhos para as ações dos nossos representantes. Cabe à sociedade, por meio de suas organizações de base e da sua conscientização, fiscalizar e pressionar os atores investidos de mandato para que considerem o interesse público pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
As eleições de 2026 estão em aberto. Evitar o retorno de uma extrema direita sob nova roupagem impõe não apenas apoiar candidatos aos cargos majoritários que estejam comprometidos com a população mais vulnerável, mas também estarmos muito atentos aos candidatos a deputados e senadores. Sem um parlamento comprometido com os valores da justiça e da igualdade, há pouco espaço para a construção de políticas que realmente favoreçam o interesse público.
*Renato Francisquini é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e diretor-administrativo da APUB-Sindicato.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.