Quem é corredor de rua já percebeu como fica mais difícil treinar ao ar livre no inverno. Os músculos ficam contraídos, o ar entra gelado nos pulmões, o corpo parece não responder aos comandos e demora muito mais para aquecer. E ainda há sérios riscos à saúde. O treinador de triatlo Rodrigo Quevedo, doutor em Ciência do Movimento Humano, com ênfase em Fisiologia do Exercício pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), explica que em baixas temperaturas “há algum risco aumentado em relação a acidentes cardiovasculares, principalmente agudos, como é o caso do infarto, e também do Acidente Vascular Cerebral (AVC), mas, geralmente, em indivíduos com fatores de risco já associados”.
Apesar desse risco aumentado ser mais comum em quem tem alguma comorbidade, o professor, que também tem licenciatura em Ciências Biológicas, salienta que quem pratica esporte com orientação de um profissional sabe que é fundamental fazer um bom aquecimento antes da prática esportiva, seja ela corrida, escalada, ciclismo ou qualquer outra atividade. “O aquecimento promove o aumento gradual da temperatura muscular e assim evita contraturas e, até mesmo, eventos mais graves como o estiramento muscular, que pode levar ao rompimento das fibras”.

O treinador explica que as cápsulas articulares, que contém líquido sinovial, quando bem aquecidas e feita uma boa prática de mobilidade, melhoram nossa estrutura física e ajudam na corrida, porque colaboram no recebimento do impacto da pisada no solo, não distribuindo toda carga só nos músculos mas também nos ossos e outros tecidos moles, como tendões e ligamentos, por exemplo.

“Ou seja, o trabalho de mobilidade articular gera mais maleabilidade para que o músculo dê início ao processo de aumento da temperatura corporal, fazendo com que haja um aumento da ventilação e também o aumento da frequência cardíaca para promover a melhor irrigação sanguínea dos tecidos, porque o frio faz o contrário, ele contrai a musculatura e as artérias, o que chamamos de vasoconstrição”.
No frio, com a vasoconstrição, o sangue fica mais próximo dos órgãos nobres, como o coração, para proteger o organismo. A temperatura baixa promove a liberação de adrenalina e noradrenalina, aumentando a resistência vascular periférica e provocando a diminuição da circulação sanguínea, o aumento da pressão arterial e a uma maior demanda por oxigênio. Quevedo adverte que “é importante termos alguns cuidados com a alimentação e a hidratação porque no frio é comum as pessoas sentirem mais fome e menos sede, mas isso não significa que o corpo não precise de água, precisa tanto quanto em ambiente quente”.
O cardiologista César Jardim, do Hospital do Coração, em São Paulo, confirma as recomendações do treinador Rodrigo Quevedo. “No inverno, o risco de infarto pode ser até 30% maior do que em outras épocas do ano e um dos principais motivos é a vasoconstrição, que reduz o fluxo sanguíneo provocando um desequilíbrio entre a oferta e a demanda de oxigênio no organismo”. O médico recomenda um bom aquecimento antes da prática do esporte, alimentação balanceada e muita hidratação.
Homem de gelo
O Cara da Sunga, nascido Eduardo André Viamonte, há 29 anos corre “pelado” nas ruas de Porto Alegre e também em locais com neve e gelo. Para conseguir esse efeito, o Cara, como prefere ser chamado, foi treinando aos poucos e lendo muito artigo técnico sobre a prática de esportes em baixa temperatura, nutrição e condicionamento físico. Ele não tem assessoria, é um autodidata na área. No calor, ele corre de sunga, boné e tênis. No frio, acrescenta uma touca e luvas de lã para proteger as extremidades do corpo.
Figura conhecida no meio esportivo e também cultural, o Cara corre em dois turnos diários, somando 20 km com sol, chuva, vento ou neve, não importa o clima. O Cara é professor de inglês e trabalha com Tecnologia da Informação (TI) em um banco, além de ser musicista. Ele participou de três maratonas (42 km) e pratica diversos treinos no frio no Vale Nevado, no Chile, em Bariloche e Ushuaia, na Argentina, além da cidade gaúcha de Gramado.
O Cara conta que nunca sofreu lesão alguma nesses 29 anos de corridas e, para não ter queimaduras provocadas pelo frio, usa protetor solar e manteiga de cacau. Responsável com a saúde de seus seguidores nas redes sociais, que chegam a quase 20 mil, o Cara sempre publica vídeos alertando para que ninguém inicie a prática esportiva sem fazer um bom aquecimento antes e ir aumentando as distâncias aos poucos, depois de muito treino.
O Cara da Sunga não é a única exceção a regra. Nos países nórdicos, como a Finlândia, por exemplo, onde a temperatura pode chegar a -50 graus C no inverno, é comum a prática do mergulho na água gelada. É aberto um buraco no gelo onde a pessoa entra na água e depois vai direto para uma sauna bem quentinha. Mas esses banhos duram apenas 30 segundos. Praticantes muito treinados conseguem ficar na água por até um minuto. Também há competições de mergulho em lagos que têm a superfície congelada, mas essas provas também não passam de um minuto e exigem, além de resistência física, muito controle mental.
A história mais fantástica de resistência ao frio aconteceu na Islândia, em março de 1984, com o pescador Guölaugur Friöpórsson, então com 23 anos. O barco em que ele estava adernou a 5km da costa. A temperatura da água estava em torno de 3 graus C. Em tese, uma pessoa pode sobreviver por 75 minutos nessa temperatura. Mas, Friöpórsson não só nadou à noite por horas até alcançar a costa, como caminhou durante a madrugada com temperatura de menos 10 graus C, até ser resgatado às 7h da manhã quando encontrou uma casa.
O pescador conta que se manteve alerta e tomando decisões conscientes durante todo o tempo. Quando foi encontrado, Friöpórsson, de 1,93 de altura, estava com algumas queimaduras provocadas pelo frio, desidratado mas sem sinais de hipotermia. Quando sofreu o acidente, ele pesava 125 quilos e a gordura em seu abdômen era de 2,5 cm. Segundo os médicos, foi essa gordura que o manteve vivo e ela foi “queimada” durante o esforço da natação e da caminhada pelo litoral até encontrar abrigo. Avaliações médicas realizadas em Friöpórsson após o resgate confirmaram que ele manteve a temperatura corporal constante durante a provação a que foi submetido.
