Atendendo ao pedido do Ministério Público Federal (MPF) em ação cautelar, a Justiça Federal determinou, na última sexta-feira (11), a suspensão imediata da autorização concedida pelo estado de Goiás para atividades agropecuárias em área pertencente ao território quilombola Kalunga. A região está situada no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, o maior quilombo em extensão territorial do Brasil, localizado no município de Cavalcante, na Chapada dos Veadeiros (GO).
A denúncia foi uma iniciativa da Associação Quilombo Kalunga (AQK), apresentada em maio deste ano ao MPF contra a Fazenda Alagoas, empreendimento da empresa Apoena Agropecuária e Comércio Ltda., localizada nas proximidades do Complexo do Prata, dentro da área quilombola da comunidade Engenho II. Na época, a AQK solicitou a investigação da legalidade da licença ambiental concedida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), em fevereiro deste ano.
Em 3 de junho, o MPF ajuizou a ação na Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Formosa (GO), solicitando medida cautelar com urgência para a suspensão das atividades de pecuária extensiva e agricultura de sequeiro na Fazenda Alagoas.
O MPF apontou que a Semad desembargou o uso de 530 hectares da fazenda — área que já havia sido desmatada ilegalmente pela mesma empresa entre 2019 e 2020 — sem realizar consulta prévia, livre e informada à comunidade Kalunga, em descumprimento à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à Constituição Federal e a leis estaduais que protegem o Sítio Histórico Kalunga.
Diante da violação de normas constitucionais e internacionais, o MPF requereu a suspensão imediata dos efeitos do desembargo, a proibição de atividades econômicas na área e a adoção de medidas para prevenir danos ambientais irreversíveis e impactos ao modo de vida da comunidade Kalunga.
As empresas envolvidas alegaram a legalidade do desembargo, sustentando que não havia ocupação quilombola na área, que não existia impacto ambiental imediato e que havia anuência da comunidade local. Também afirmaram que cumpriam um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o próprio MPF, a Semad e a AQK. Argumentaram ainda que, segundo manifestação do Incra, não haveria impedimento legal para uso da área enquanto não formalizada a desapropriação. O estado de Goiás, por sua vez, alegou que o desembargo não configurava licenciamento ambiental nem autorização para atividade econômica, mas apenas resultado da celebração de Termo de Compromisso Ambiental e Declaração Ambiental do Imóvel.

Decisão da Justiça
A Justiça reconheceu que o território é tradicionalmente ocupado pela comunidade Kalunga e que, mesmo sem o título formal de propriedade, o direito à posse tradicional e o dever do Estado de proteger o território devem ser garantidos. “A simples presença da Associação Quilombo Kalunga (AQK) em um termo de ajuste de conduta firmado com as empresas não substitui a consulta exigida pela Convenção 169 da OIT”, afirma a decisão, que destaca a necessidade de diálogo estruturado e consentimento consciente da comunidade.
O juiz também apontou risco de danos ambientais e sociais, já que a área em disputa abriga nascentes e vegetação nativa já suprimida, com possibilidade de impactos diretos sobre os recursos utilizados pelas famílias Kalunga. Diante da incerteza sobre os efeitos das atividades, a decisão destaca a importância do princípio da precaução, previsto na legislação ambiental brasileira.
Com base nisso, a Justiça determinou a suspensão da autorização para uso da terra até que seja comprovado o cumprimento integral das normas legais e convencionais relacionadas à consulta à comunidade Kalunga. Também determinou que as empresas Trillium Empreendimentos Ltda. e Apoena Agropecuária e Comércio Ltda., rés na ação, se abstenham de realizar quaisquer atividades agrícolas, pecuárias ou de manejo ambiental na área no prazo de 15 dias, sob pena de multa diária em caso de descumprimento.
Vitória parcial
Para Damião Moreira dos Santos, quilombola e assessor da Associação, a decisão representa uma vitória parcial, mas significativa.
“Essa pequena vitória, pra gente, significa ver que não estamos sós, né? Que não estamos largados à própria sorte. Dá uma sensação de que a lei sabe que a gente existe, que reconhece que temos direitos. Apesar de ainda haver muitas pessoas que talvez não entendam o que significa essa riqueza natural pra gente, pro território, pro povo Kalunga, pra existência de um futuro saudável pra essa comunidade”, afirmou.
Embora o território Kalunga tenha sido reconhecido oficialmente em 1996, até 2024 menos de 10% da área total havia sido titulada. Um decreto federal publicado em 2009 autorizou a desapropriação de terras para garantir a titulação coletiva, reconhecendo o direito à terra previsto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. No entanto, o processo segue incompleto.
Com isso, cerca de 8 mil quilombolas seguem vulneráveis à grilagem, desmatamentos e conflitos fundiários, mesmo após décadas de luta pelos seus direitos territoriais. “Desde os anos 1980 a gente vem lutando por essa desapropriação. Mas a gente tem avançado, sim. Não dá pra negar. Essa vitória agora, nesse processo do Ministério Público Federal, é um reconhecimento. É uma evolução importante nesse caminho”, disse Damião.
Para ele, a desapropriação das terras quilombolas é essencial para garantir paz e segurança à comunidade. “O que vai resolver de fato essa situação pra gente é a desapropriação dessas áreas que ainda estão em disputa, onde ainda há interesse de terceiros. Só com isso é que vamos poder viver em paz”, concluiu.