Milhares de assentamentos da reforma agrária estão sob ameaça direta de grandes empreendimentos instalados sem qualquer escuta das comunidades. Esse é o alerta feito pela Defensoria Pública da União (DPU) em uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada contra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a União. A ação pede que novos projetos de mineração, energia e infraestrutura em territórios da reforma agrária sejam suspensos até que se garantam mecanismos efetivos de consulta prévia, livre e informada, conforme prevê a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
A ACP é fruto de um processo que durou mais de um ano e meio e mobilizou dezenas de organizações populares, segundo relata a defensora nacional de Direitos Humanos à época da formulação da ação, Carolina Castelliano. O ponto de partida foi a publicação, em 2021, da Instrução Normativa nº 112 pelo Incra, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que passou a permitir, sem garantias de participação social, a instalação de grandes empreendimentos em territórios da reforma agrária.
“A omissão estatal quanto ao cumprimento do dever de realizar consulta prévia, livre e informada às comunidades assentadas não é pontual, mas sistemática, reiterada e institucionalizada”, diz a petição inicial assinada por Castelliano e pelo defensor regional de Direitos Humanos substituto no Pará, Pedro Wagner Assed.
A DPU aponta que os impactos da ausência de consulta se desdobram em uma série de prejuízos concretos à vida das famílias assentadas: insegurança nos territórios, deslocamentos compulsórios, degradação ambiental, aumento de conflitos agrários e deterioração dos modos de vida comunitários. Em diversos casos, empreendimentos avançam sobre terras coletivas com uso de empresas privadas de segurança, em contextos de intimidação e violência.
“A gente está falando de comunidades vulnerabilizadas sendo removidas ou vigiadas por empresas de segurança privada, de conflitos locais intensificados, de destruição do solo, de contaminação da água, de impossibilidade de acesso a crédito rural e de políticas públicas da reforma agrária sendo inviabilizadas”, afirma Castelliano.
Questionado pela reportagem do Brasil de Fato, o Incra declarou, por e-mail, que “reconhece a necessidade de protocolos específicos para garantir o direito à participação social e à consulta em empreendimentos que impactam assentamentos” e que as recomendações da DPU estão “sendo analisadas pela área técnica responsável”. A autarquia afirmou ainda que a mera revogação da norma nº 112/2021 geraria “maior vulnerabilidade” aos assentamentos e que um Grupo de Trabalho foi criado para promover sua revisão.
Na manifestação judicial já anexada aos autos da ACP, o Incra sustenta, porém, um entendimento distinto. Para o órgão, não haveria omissão normativa, mas sim “inaplicabilidade da Convenção 169 da OIT ao caso concreto”, uma vez que, segundo a autarquia, apenas comunidades quilombolas estariam sob o escopo da convenção no âmbito de sua competência. Tal interpretação, diz o Incra, caracteriza “impossibilidade jurídica do pedido”.
A ACP da DPU, por sua vez, argumenta que residentes de assentamentos da reforma agrária são, sim, sujeitos de direitos da Convenção 169, e que a ausência de consulta fere tanto normas internacionais quanto preceitos constitucionais como a publicidade, a transparência administrativa e a segurança jurídica.
Como pedido final, a ação busca a “condenação da União e do Incra à obrigação de adotar medidas de caráter estrutural com cronograma público de implementação destinados a assegurar o direito à efetiva participação social e à consulta prévia, livre e informada”.
Norma do governo Bolsonaro e o flagelo da mineração
Enquanto isso, no mundo dos negócios, mineradoras cobiçam a exploração em terras públicas destinadas à reforma agrária. Dados oficiais reunidos pela Defensoria Pública da União (DPU) apontam que mais de 17 mil projetos de mineração foram autorizados em áreas de assentamento.
“Não é exagero dizer que, na atual conjuntura, residir em áreas de assentamento rural no Brasil significa estar submetido a um grave e iminente risco de deslocamento compulsório ou de comprometimento da própria subsistência e dos modos de vida”, alerta a ACP.
Até janeiro de 2022, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), havia cerca de 20 mil requerimentos minerários ativos incidentes sobre áreas de assentamentos do Incra – número que desconsidera os setores de energia e infraestrutura. Do total de 8.372 assentamentos oficialmente reconhecidos no país, pelo menos 3.309 (39%) estavam sob disputa por interesses minerários. Destes, 1.480 (44,7%) se localizavam na Amazônia Legal.
A ofensiva se intensificou a partir da edição da Instrução Normativa (IN) nº 112/2021 do Incra, ainda no governo Jair Bolsonaro (PL). Desde então, foram abertos 982 novos processos com 1.337 sobreposições a áreas de assentamento. Alguns processos atingem mais de uma área.
A normativa trata da anuência do uso de áreas em projetos de assentamento por grandes empreendimentos, mas, segundo a DPU, não contempla garantias mínimas de participação social nem mecanismos de consulta prévia, livre e informada. O texto limita-se a prever, de modo genérico, a possibilidade de audiência pública – e ainda assim apenas em caso de “conflito declarado”.
“A ação teve início há mais de um ano, um ano e meio, mais ou menos”, explica a defensora pública Carolina Castelliano. “Fomos acionados por algumas entidades e organizações a respeito da publicação da IN, em 2021, no governo Bolsonaro.”
Segundo ela, a DPU chegou a apresentar um relatório ao Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU para o Estado brasileiro rever a IN, além de tentar diálogo direto com a direção do Incra. “A modificação seria muito melhor do que a simples revogação”, afirma. Mas, diante do que chamou de “esgotamento da tentativa administrativa de resolução”, a Defensoria optou por judicializar o caso.
Em abril deste ano, antes de ir à Justiça, a DPU havia solicitado formalmente ao Incra e à ANM a revogação imediata da norma sob argumentação de que a mesma ignora critérios técnicos de compatibilidade entre os empreendimentos e os objetivos da política agrária.
Na ação protocolada, a Defensoria reconhece que não se trata de discutir a constitucionalidade da normativa, mas, sim, sua incompatibilidade com normas de hierarquia superior, como a Convenção 169 da OIT. A DPU defende que a omissão quanto à consulta às comunidades atingidas por megaempreendimentos não é pontual, mas parte de um padrão.
“Trata-se de um quadro institucional grave, caracterizado por omissões reiteradas, ausência de diretrizes técnicas mínimas e completa desconsideração dos parâmetros estabelecidos pela Convenção”, aponta o documento.
Já o Incra, em manifestação enviada à Justiça e em resposta a questionamentos enviados pela reportagem do Brasil de Fato, argumenta que a IN 112 representa um “importante avanço normativo”. Segundo a autarquia, a norma foi elaborada por um grupo técnico e submetida à avaliação de diversos órgãos federais.
“Pela primeira vez, ela instituiu parâmetros mínimos para a atuação institucional do Incra”, afirma. Além disso, defende que a revogação da norma geraria “maior vulnerabilidade dos projetos de assentamento”.
O Incra reconhece, no entanto, a necessidade de revisão da norma. Um grupo de trabalho foi criado para esse fim. “A norma deve ser aperfeiçoada para atender os anseios das comunidades”, diz a nota. O órgão também reconhece a importância de garantir protocolos específicos para assegurar o direito à participação social e à consulta prévia.
Segundo a DPU, a falta de avanços mesmo após a troca de governo não é casual. “Existem interesses econômicos, internacionais, transfronteiriços, gigantescos, e que, de certa forma, legitimam e blindam a existência da IN”, afirma Castelliano. A atuação envolve diversos ministérios, entre eles a Casa Civil e o Ministério de Minas e Energia.
Exemplos são muitos
Como gesto simbólico, a ação foi protocolada na Justiça Federal do Pará. O estado já havia sido palco, anos antes, de uma atuação emblemática da DPU contra a instalação do projeto da mineradora canadense Belo Sun, na região de Altamira. A iniciativa empresarial pretendia ocupar parte do território do Projeto de Assentamento Ressaca, onde vivem famílias da reforma agrária, sem qualquer processo de consulta ou participação popular.
O histórico de violações no caso motivou a escolha do Pará como ponto de partida para a nova ação. Além da ausência de escuta às famílias, o processo envolvendo a Belo Sun foi marcado por relatos de intimidação e conflitos no território. Segundo a DPU, empresas privadas de segurança contratadas pela mineradora atuaram de forma ostensiva na região, contribuindo para um cenário de medo e tensão entre os assentados. A situação permanece sob apuração em procedimento sigiloso.

A ACP é recheada de outros exemplos. No Mato Grosso, os Projetos de Assentamento Laranjeiras 1 e Ipê Roxo, no município de Cáceres, estão ameaçados por requerimentos de uma empresa de exploração de mármore. Os títulos minerários podem atingir até 4.780 hectares, conforme os dados reunidos pela Defensoria, sem qualquer garantia de consulta ou informação às famílias residentes nas áreas.
No Piauí, a realidade não é diferente. No município de Piripiri, o Projeto de Assentamento Residência enfrenta os impactos da atividade de uma mineradora. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) foram elaborados por uma consultoria contratada pela própria empresa, sem qualquer salvaguarda de participação social das famílias diretamente afetadas.