As provas do baccalauréat, um exame nacional haitiano equivalente ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) no Brasil, encerraram, na última semana, um ano conturbado para a educação no país caribenho, que vive uma crise política e humanitária complexa e teve centenas de instituições de ensino fechadas ou destruídas pelos grupos armados. O Haiti conseguiu realizar de maneira exitosa quatro dias de provas para 109 mil alunos do último ano de ensino médio.
Para estudantes e professores haitianos ouvidos pelo Brasil de Fato, o feito simboliza a resiliência de um sistema educativo fortemente abalado, seja pela violência ou pelo descaso do Estado.
A organização foi especialmente desafiadora em regiões assoladas pela violência das gangues armadas. Em Porto Príncipe, capital do país, novos centros tiveram que ser abertos para receber os candidatos, às vezes em espaços que não ofereciam as melhores condições para esse tipo de atividade. Em outras cidades da região sudoeste, as autoridades optaram por manter os locais de prova nos colégios habituais, mesmo sendo em zonas onde grupos irregulares impedem a entrada das forças de segurança do Estado.
No fim, mais de 95% dos inscritos em todo o país compareceram efetivamente ao exame e, apesar do clima de medo e tensão em alguns municípios, não houve registros de incidente durante a semana.
A reportagem do Brasil de Fato esteve na região de Pignon, no departamento do Norte do país, onde conversou com alunos que se mostraram satisfeitos pela organização e impressionados pela quantidade de participantes. O exame valida a finalização do ensino médio e é um diploma em si, mas também é indispensável para ingressar na universidade, ainda que a prova não varie em função do curso escolhido. Ou seja: é uma prova nacional e universal de avaliação dos conhecimentos do ensino médio.
Educação em crise: desigualdade cresce
A conjuntura do Haiti, atualmente, obedece a uma geografia definida pelos grupos armados e o sistema educativo não escapa à regra. Na capital, muitas escolas e colégios tiveram que fechar suas portas ao longo dos últimos anos, quando não foram parcialmente destruídos pelas gangues.
Outros estabelecimentos, em zonas de livre circulação, tiveram que adaptar seus horários e infraestruturas para acolher diversas instituições num só local.
“Infelizmente, escolas foram expulsas, pais foram expulsos, alunos foram expulsos. Hoje, temos escolas que funcionam em outras escolas. O colégio Alexandre Pétion, em Bel-Air, por exemplo, o mais antigo do país e fundado em 1816, hoje funciona em outro município”, explica o professor de filosofia e politólogo Edmond Tony.
Em consequência, haitianos apontam um aumento na desigualdade, principalmente entre as crianças refugiadas em abrigos, que precisam se deslocar entre municípios para frequentar a escola em locais improvisados, e os jovens que moram em bairros mais abastados e protegidos.
O pouco que resta do setor público tem sofrido danos maiores devido à falta de amparo por parte das autoridades. Outrora considerada de excelência, a escola pública tem perdido do seu prestígio nos últimos anos, em comparação às instituições privadas – congregadas ou laicas.
Professores protestam
Em janeiro deste ano, sindicatos de professores convocaram uma greve geral pedindo melhores condições de trabalho, reajuste salarial, pagamento de salários atrasados e, sobretudo, garantias de segurança mínima para a realização das aulas em boas condições – reivindicações que foram apoiadas também por movimentos estudantis.
Sem resposta concreta por parte do governo, a greve foi se arrastando por meses e impactou diversas entidades regionais e educativas no país.
Na última terça-feira (15), no entanto, durante a realização das provas do “baccalauréat”, o ministro da Educação, Augustin Antoine, finalmente apareceu numa tentativa de trazer respostas. Na rede Rádio e Televisão Nacional Haitiana (RTNH), ele tornou público o que chamou de “desmoronamento” do sistema educativo.
“A escola haitiana já não está mais formando cidadãos, mas sim jovens fracos, desorientados, sem referências”, disse o ministro, citando dados alarmantes: de um milhão de crianças que ingressam no ensino fundamental, apenas 188 mil (menos de 20%) chegam ao nono ano.
A reação dos sindicatos veio após o fim do exame nacional. Em coletiva de imprensa realizada na última sexta-feira (18), representantes da Central Unitária dos Trabalhadores dos Setores Público e Privado do Haiti (CUTSPPH) se disseram “estarrecidos” e denunciaram “a atitude irresponsável” do ministro.
“A população não quer escutar análises, mas quer ação, quer respostas. Hoje, os professores, alunos e pais precisam de um ministro que traga soluções para fazer da escola um espaço confortável de aprendizagem”, disseram os grevistas.
Ao Brasil de Fato, o politólogo Edmond Tony disse que se as declarações do ministro são verdadeiras em termos de dados, há de “reconhecer a resiliência dos profissionais e alunos da escola haitiana”.
“Se no lugar de 10 meses de aula, são dados apenas 8 ou 6 meses, é óbvio que não se estuda a integralidade dos programas. Mas nem por isso se pode dizer que a escola desapareceu. Continuamos com uma escola universal, com um baccalauréat que tem diversas especialidades […] e alunos que brilham quando são enviados no exterior”, disse.