Ainda se lembra da profunda impressão que sentiu na primeira vez em que viu Haydee. Foi na própria Casa das Américas, durante uma das muitas visitas que fazia quando ainda era apenas um menino. Ele a via sentada em uma escada, conversanndo com total naturalidade com um grupo de trabalhadores.
“Eu não conseguia parar de pensar na heroína do Moncada”, relembra Jorge Fornet, que na época era só uma criança. Achava desconcertante que aquela figura, que estudava nos livros escolares, fosse ao mesmo tempo alguém tão próxima, acessível, que dedicava tempo para conversar com quem se aproximasse.
“Como podia ser, ao mesmo tempo, a pessoa que aparece no livro didático e também uma pessoa real, que a gente pode encontrar?”, comenta entre risos. Talvez seja nessa tensão entre o extraordinário e o profundamente humano, entre o heroico e o cotidiano, que se encontrem algumas chaves para compreender uma figura como a de Haydee.
Como poucas, a vida e a obra de Haydee Santamaría estão intimamente ligadas à história da Revolução Cubana. Ela foi uma figura central tanto nos momentos decisivos da luta revolucionária como na posterior consolidação do processo.
No último 28 de julho, completaram-se 45 anos de sua morte. Por ocasião do aniversário, o Brasil de Fato conversou com Jorge Fornet, diretor do Centro de Pesquisas Literárias da Casa das Américas, sobre aquele que talvez seja um dos maiores legados de Haydee: ter concebido a política como um ato profundamente cultural.
“Uma instituição que faz política a partir da cultura”
Fornet explica que, nos primeiros meses de 1959 — em meio ao fervor e à urgência de transformar a sociedade —, a Revolução fundou três instituições-chave: o Instituto Cubano da Arte e Indústria Cinematográficas (ICAIC), a Imprensa Nacional e a Casa das Américas.
Apesar de não ter formação acadêmica formal, Haydee foi a fundadora da Casa das Américas. A partir dali, não apenas criou uma maneira particular de pensar a arte, a cultura e a Revolução, como também transformou a Casa em um espaço essencial para projetar ao mundo o que significava a experiência revolucionária cubana. Foi, ainda, um lugar a partir do qual a intelectualidade do continente pôde se reconhecer — e reconhecer-se mutuamente — como latino-americana e caribenha.
“De certo modo, o Instituto de Cinema e a Imprensa eram previsíveis”, observa. “Que uma revolução sonhe em fazer seu próprio cinema, ter suas próprias editoras e publicar seus próprios livros é absolutamente inevitável. Mas… o que é a Casa das Américas?”
Desde sua origem, foi uma aposta política radical. A Casa não seria apenas uma ferramenta de difusão cultural, mas uma experiência que, em seu próprio desenvolvimento, foi moldando o significado de cultura dentro do projeto revolucionário.
Sua fundação implicou “um salto no que se quer ou se entende por cultura”, ao propor uma reflexão sobre como Cuba deveria se pensar em relação à América Latina e como a Revolução deveria ser compreendida em diálogo com as lutas do continente.
“Justamente naquele momento — quando a Revolução tem tanto a observar sobre si mesma —, por que ela está pensando em se enxergar com os outros e a partir dos outros?”, questiona Fornet. Poderia parecer uma contradição: em meio à efervescência revolucionária — com tantas transformações internas em curso, da reforma agrária à campanha de alfabetização —, “por que dedicar energia para olhar para fora, para os outros, para estabelecer relações com escritores e artistas do continente? Que sentido fazia criar uma instituição como a Casa?”
“A Revolução costuma ser vista pelo viés econômico ou político. É natural, isso é o mais chamativo. Mas também foi uma revolução profundamente cultural”, afirma. E não apenas no sentido artístico ou intelectual, mas nos modos de vida, nas formas de se relacionar, de habitar o mundo, de nos pensarmos como sujeitos históricos.
“A Casa das Américas é uma filosofia da Revolução. Não se pode entendê-la sem considerar que é uma instituição cultural dentro da Revolução Cubana. Haydee Santamaría sempre fazia questão de destacar isso: é uma instituição que faz política a partir da cultura, sem esconder sua vocação política, mas compreendendo o que há de cultural no político e de político no cultural.”
Nesse contexto mais amplo, a Casa das Américas ganha seu verdadeiro sentido. Não é um projeto fechado nem concluído. “Trata-se de processos: nada acontece do agora para sempre”, explica Fornet. A Casa, como a própria Revolução, “vai se redescobrindo”. Ainda que permaneça fiel ao impulso original de integração cultural de Nuestra América, passa a assumir novas questões, novas formas de pensar o latino-americano, em diálogo com o mundo.
“Ao repensarmos a nós mesmos, temos que nos descolonizar”, afirma Fornet. “O que isso significa no nosso mundo, que é a América Latina, mas também o Terceiro Mundo?” Começam a surgir questionamentos que a Casa não se fazia em seus primeiros anos, mas que passou a formular em diálogo com o que acontecia no cenário internacional.
“Buscar respostas para o presente”
Fornet conta que, recentemente, ao revisar a correspondência entre Haydee Santamaría e Mario Vargas Llosa — quando o escritor mantinha uma relação próxima com Cuba — encontrou uma carta datada de 1964. Nela, Haydee convidava o peruano vencedor do Nobel de Literatura a fazer parte do júri do Prêmio Literário Casa das Américas. Vargas Llosa aceitou o convite e viajou a Cuba em janeiro de 1965 para cumprir esse papel.
“O único que pedimos é que escolha a melhor obra, a melhor literariamente falando”, escrevia Haydee. Fornet ressalta que essa era uma exigência que ela fazia a todos os convidados.
Santamaría tinha plena consciência da suspeita que poderia surgir entre os intelectuais estrangeiros convocados. Era natural que se perguntassem se deveriam premiar uma obra alinhada com a Revolução, que expressasse certos conteúdos políticos ou ideológicos. Mas Haydee, com lucidez, antecipava essas inquietações. “Ela cortava isso pela raiz”, diz Fornet.
Compreendia — talvez melhor que ninguém — que a Casa não podia se reduzir a um aparelho limitado a repetir slogans. “Se fosse feita uma arte, digamos, por encomenda no pior dos sentidos: uma arte subjugada, sob a ideia de uma postura política prévia que a condicionasse. Simplesmente a Casa não teria feito sentido algum. Mas não só isso, provavelmente não teria sobrevivido todos esses anos.”
“Haydee era alheia a essa maneira de entender a cultura — afirma Fornet —, mas também de ver a política, de ver o mundo.” O que a distinguia era justamente seu repúdio a toda forma de instrumentalização da vida, da qual a arte é parte essencial.
Ao pensar na figura de Haydee Santamaría, Fornet não hesita em sublinhar seu caráter excepcional. Ele a descreve como uma personagem intensa, capaz de ser “arrasadora” quando necessário, dotada de uma “inteligência sobrenatural” e, ao mesmo tempo, de uma honestidade radical. Não buscava agradar nem fingia simpatia. Sua força não vinha da diplomacia ou do carisma complacente, mas de uma convicção profunda.
“Não se pode evitar recorrer a figuras como ela em momentos como os que estamos vivendo”, reflete. “O que ela faria hoje? Como enfrentaria os desafios atuais? Que decisões tomaria diante das tensões que marcam o presente?”
“Quando a gente recorre a essas pessoas, quando as lê, não está buscando só o que disseram sobre o passado, mas também o que têm a dizer sobre o presente”, ressalta.
Sob essa perspectiva, Haydee não é só uma figura histórica, mas uma presença viva. “Nesse sentido, Haydee é uma figura do presente”, afirma. Uma referência ativa, uma consciência à qual inevitavelmente voltamos “em busca de pistas para responder às perguntas que hoje nos fazemos”.