Nesta segunda-feira (4), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) solicitou formalmente à Advocacia-Geral da União (AGU) que ingresse na Justiça como assistente da Comunidade Quilombola da Fazenda Antinha de Baixo, localizada em Santo Antônio do Descoberto (GO), entorno do Distrito Federal. O pedido tem como objetivo suspender imediatamente a reintegração de posse que provocou o despejo forçado de cerca de 400 famílias — mais de 1,6 mil pessoas — em um território tradicionalmente ocupado.
A petição produzida pela Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra (PFE/INCRA) — assinado pela procuradora Patrícia Rossato, requer a suspensão imediata da liminar de reintegração de posse e a transferência do caso para a Justiça Federal, dado o reconhecimento da área como território quilombola em processo de regularização fundiária.
A base jurídica do pedido do Incra inclui o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Convenção 169 da OIT e a Resolução nº 599 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reconhecem o direito à posse e proteção dos territórios quilombolas mesmo antes da titulação definitiva.
Despejo: comunidade denuncia irregularidades e violência
A ação de despejo foi executada na manhã desta segunda (4), por volta das 6h, com o uso de tratores e forte presença da Polícia Militar de Goiás (PMGO). Apenas 16 famílias, consideradas em situação de vulnerabilidade, não tiveram suas casas demolidas. A operação contou também com a presença do Corpo de Bombeiros (CBMGO) e da Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO).
O despejo foi autorizado pela 1ª Vara Cível de Santo Antônio do Descoberto, no último dia 28 de julho, por decisão favorável ao desembargador Breno Caiado, primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (UB). O magistrado já atuou como advogado dos autores da ação: Maria Paulina Caiado de Castro, Murillo Caiado de Castro e Marcelo Caiado de Castro, todos parentes do governador.
Francisco Porfírio, presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Antinha de Baixo, denuncia a arbitrariedade da decisão judicial e o conflito de interesses envolvendo o Judiciário goiano:
“Eles estão demolindo a casa das pessoas. Isso é um absurdo, porque além de ser arbitrária a decisão, você tem direito de retenção, que não está sendo observado. O governo do estado está sendo omisso. As pessoas não têm para onde ir, e o governador é da família envolvida no processo. Isso precisa ser denunciado”, afirma ele.
Porfírio destaca ainda a longa trajetória da comunidade e a fragilidade do processo judicial.
“É um processo muito antigo, iniciado em 1945 e julgado em 1990. Trata-se de uma ação divisória, que não dá direito à imissão de posse. Mesmo assim, estão forçando um despejo. É algo grave, que precisa ser levado à Comissão de Direitos Humanos”, ressalta.
“Esse território foi sempre ocupado. Há famílias que vivem lá há mais de 100 anos. Tem resquício de quilombo”, afirma Porfírio. Anteriormente o quilombo se chamava Antinha dos Pretos.
O deputado estadual Mauro Rubem (PT-GO), e um dos parlamentares que têm acompanhado o caso de perto e denuncia os abusos do que vem acontecendo na região. “A comunidade vive um momento muito tenso e perigoso. Desde a semana passada, seguranças armados contratados pela família Caiado estão colocando terror na região”, denuncia Mauro Rubem. “Essa noite foi especialmente grave, com relatos de pessoas armadas circulando pela comunidade,” diz ele.
Segundo o deputado, o caso é agravado pela atuação do desembargador responsável pelo caso, que seria parente e ex-advogado da família autora da ação. “Aqui em Goiás, o governador nomeou o próprio primo para o cargo de desembargador — o mesmo que hoje atua no caso da Fazenda Antinha de Baixo e tem poder sobre instâncias inferiores da Justiça Goiana. É preciso acabar com esse tipo de prática de nepotismo”, defende Mauro Rubem.
Parlamentares acionam STJ para conter despejo forçado

O pedido do Incra ocorre em articulação com parlamentares e movimentos populares. A deputada federal Erika Kokay (PT-DF), vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, e o deputado estadual Mauro Rubem (PT-GO) têm atuado diretamente no caso, em parceria com organizações da sociedade civil. Segundo eles, há indícios de grilagem de terras e inserção de informações falsas no processo, o que, segundo os parlamentares, reforça a necessidade de revisão da decisão judicial.
Os parlamentares também buscam uma intervenção do Supremo Tribunal da Justiça (STJ) no caso. Nesta segunda-feira (4) o grupo esteve reunido com uma audiência de urgência com o ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro para que o órgão também possa intervir no caso.
Para Kokay, o caso expõe vícios processuais e conflitos de interesse. “Hoje tivemos reunião com o relator da matéria no STJ para garantir que esses embargos sejam aceitos. Temos um Caiado como desembargador e um evidente conflito de interesse”.
A deputada conta que estudam formas de provocar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para intervir no caso. “Estamos estudando como podemos acionar o CNJ para assegurar que esse processo, cheio de vícios e envolvendo uma área quilombola, não continue caminhando da forma como está”, defende.
Rubem se mostra confiante na reversão da liminar. “É muito importante que nós acreditemos muito que vamos conseguir reverter essa decisão liminar de despejo. A Fazenda Antinha de Baixo é, de fato, uma comunidade quilombola. Existem falhas processuais graves, e agora o Incra entrou no processo”.
Ele ainda revelou um fato novo que está sendo avaliado com cautela: a possível existência de jazidas de terras raras na área em disputa. “Uma análise preliminar aponta essa possibilidade, o que pode levar o caso a outra esfera de análise. Isso só reforça a importância de paralisar imediatamente essa reintegração até que tudo seja devidamente esclarecido, ” afirma o parlamentar.
A Comunidade Quilombola de Antinha de Baixo foi reconhecida oficialmente pela Fundação Cultural Palmares por meio da Portaria FCP nº 209, de 1º de agosto de 2025. O processo de regularização fundiária no Incra foi instaurado em 21 de julho. Apesar de ainda em estágio inicial, o território é considerado de posse tradicional consolidada, habitado há décadas por descendentes de quilombolas.

A reportagem do Brasil de Fato DF procurou a Superintendência de Segurança, Ordem Pública e Mobilidade (Sesom) do Governo de Goiás para questionar quais providências estão sendo tomadas em relação às famílias despejadas e o posicionamento do estado sobre o reconhecimento da área como território quilombola, as denúncias de intimidação por parte de policiais e seguranças privados, e quais serão os encaminhamentos do governo caso o processo seja federalizado.
Em nota, a Secretaria Estadual de Comunicação se limitou a dizer que os órgãos do Governo de Goiás, incluindo a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros e demais instituições estaduais, “atuam com absoluto respeito às decisões judiciais. Cabe ao Estado apenas o cumprimento dessas determinações, em estrita obediência ao que foi estabelecido pelo Poder Judiciário”.
A Defensoria Pública do Estado do Goiás também foi procurada para prestar informações sobre os encaminhamentos dados ao caso, mas até a publicação desta reportagem não houve retorno. O espaço segue aberto para manifestação.