“As leis da natureza não mudam em função das nossas necessidades”. A frase tem sido repetida pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Marina Silva, em alerta sobre a iniciativa do Congresso Nacional contra o licenciamento ambiental no Brasil. Segundo a ministra, o governo avalia ponto a ponto do projeto de lei (PL) 2159, para decidir sobre o que vetar. O prazo para a sanção ou veto encerra na próxima sexta-feira (8).
A ministra recebeu a equipe do Brasil de Fato em seu gabinete, em Brasília, para entrevista exclusiva na qual abordou também os ataques que sofreu de parlamentares da Câmara dos Deputados e Senado, as previsões para o período de secas que apenas começa, e os desafios para a realização da Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o Clima (COP30), em novembro deste ano em Belém (PA).
Assista à entrevista na íntegra no player abaixo:
Brasil de Fato: Ministra, estamos na iminência do prazo para sanção ou veto do PL 2159, que ficou conhecido como PL da Devastação. O que pensa em relação ao futuro desse PL?
Marina Silva: Bem, primeiro eu acho que esse é um tema que cala tão no fundo, diante dessa emergência climática que a gente está vivendo, em que a gente precisa de mais proteção e não de menos proteção. E pelo fato do licenciamento ambiental ser uma espécie de coluna vertebral da proteção ambiental no Brasil, eu acho que esse PL que foi aprovado, nos termos em que foi aprovado, é um PL da Devastação.
Isso é uma coisa que transbordou para vários segmentos da sociedade, pelo menos é o que eu tenho observado. Eu vi que 36 bispos da Igreja Católica, que mandaram manifestações para o Congresso Nacional, a SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], que representa diferentes espectros, a comunidade científica se movimentando, setores do empresariado brasileiro.
Então, para nós, que muitas vezes nos sentimos sozinhos nessas lutas, é muito bom saber que outros setores e segmentos da sociedade estão se mobilizando por ter a compreensão de que com esse PL, na forma em que ele foi aprovado, o Brasil vai perder as suas melhores oportunidades e o Brasil vai prejudicar de forma injusta e ainda mais injusta aqueles que são os mais vulnerabilizados, as mulheres, os indígenas, as populações ribeirinhas, as populações periféricas.
Então são dois movimentos: uns porque serão extremamente prejudicados em função de suas condições sociais e outros que até mesmo as suas condições econômicas serão igualmente prejudicadas. Por exemplo, o acordo da União Europeia com o Mercosul já está sendo questionado por alguns segmentos.
Uma outra questão importante é que desde que o presidente Lula reassumiu o governo, foram abertos mais de 380 mercados para a agricultura brasileira. E isso se dá, com certeza, por um forte componente da política ambiental de redução do desmatamento, de desintrusão de terra indígena, de retomada de políticas sociais que se preocupam com a vulnerabilidade, com gerar emprego, gerar renda, melhorar a vida das pessoas, a recriação até do Ministério [do Desenvolvimento Agrário] e Agricultura Familiar. Então, esse PL precisa ser reparado e se ele não for reparado, ele é um tiro no pé, porque ele não vai resolver o problema de dar agilidade aos processos de licenciamento e ainda vai agravar, porque muitas questões serão inegavelmente judicializadas.
Sobre o possível veto do presidente Lula ao PL, qual sua expectativa? Seria um veto parcial ou integral ao projeto?
O governo está comprometido em não permitir que o licenciamento ambiental brasileiro seja desfigurado. O PL tem mais de 60 artigos com mais de 300 dispositivos. E a análise que está sendo feita desse universo todo de artigos, parágrafos, incisos, é ver o que prejudica, de fato, a coerência interna e externa do licenciamento à luz de várias leis existentes e que se combinam. Tanto a lei de proteção à biodiversidade [Lei nº 13.123], a lei que criou o sistema nacional de unidade de conservação [Lei nº 9.985], toda a parte do Código Florestal [Lei nº 12.651], toda a parte da lei de crimes ambientais e os compromissos internacionais que o Brasil assumiu, tanto de reduzir emissões de CO2, quanto de zerar desmatamento até 2030, os compromissos que nós temos em relação à convenção da biodiversidade de desertificação, tudo isso fica muito difícil de ser cumprido se esse PL permanecer nos termos em que está.
Então, todo o trabalho do Ministério do Meio Ambiente, que é o ministério de mérito dessa questão, junto com a Casa Civil que faz a coordenação política e a articulação institucional no Congresso, para que a gente veja aquilo que é determinante dentro do projeto e levar para o presidente Lula aquilo que nós entendemos ser os melhores caminhos.
A orientação do presidente é que a gente leve um trabalho minucioso para preservar o que é essencial e estratégico do licenciamento ambiental brasileiro, até porque tem coisas que são inaceitáveis, como, por exemplo, que cada município, cada estado estabeleça as regras, as tipologias e os procedimentos para o licenciamento ambiental. Aí você vai fazer uma verdadeira guerra pelo caminho de baixo, como eu costumo dizer, e abrir um processo de judicialização generalizada, sem falar no prejuízo que é para o meio ambiente, a saúde pública e para os cidadãos de um modo geral.
Defensores desse projeto afirmam que mais de 5 mil obras estariam paradas no Brasil à espera de licenciamento ambiental. Essas obras existem?
Olha, essas estatísticas precisam ser entendidas no conjunto da obra. O Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente] emite milhares de licenças a cada ano, inclusive, a maior parte delas, na área de carvão, petróleo e gás, concedidas à Petrobras, por exemplo.
Então o Ibama aumentou muito sua capacidade de resposta. O problema é que isso não depende só da ação dos técnicos do Ibama. Um projeto precisa mostrar que ele tem viabilidade ambiental, que ele responde aos aspectos de viabilidade ambiental, viabilidade social, em alguns casos, até cruzamentos em termos de viabilidade econômica daquele empreendimento.
A qualidade dos licenciamentos é muito importante. Instrumentos que dão suporte ao licenciamento são fundamentais. Quando você tem um empreendimento que atendeu adequadamente ao termo de referência, aquilo que era exigido que fosse feito no processo do estudo de impacto ambiental, isso ganha muito mais velocidade. Quando você faz estudos mais completos, como é o caso da avaliação ambiental, estratégicas para uma rodovia, uma hidrovia, isso ajuda a ter agilidade sem perda de qualidade. Quando você faz os estudos para a área de uma bacia onde está sendo feita exploração de petróleo, que é a avaliação ambiental para a área sedimentar, isso ajuda os técnicos a ganharem mais condições de trabalho.
E na maioria das vezes, quando isso não acontece, tem que pedir complementação de informação, tem que pedir que faça melhorias nesse ou naquele aspecto, então não se pode jogar isso na conta do órgão licenciador. E a saída para isso é que todos possamos ter mais capacidade de resposta, tanto o órgão licenciador quanto os empreendedores, os que estão demandando a licença, em lugar de achar que a gente tenha que passar por cima das regras, como alguns propõem, por exemplo, que você não precisa ouvir os quilombolas das comunidades indígenas se o empreendimento estiver a 16 km do empreendimento. Eu não sei da onde aparece esse número cabalístico de 16 km. Para que se faça essa exigência, você tem que olhar aspectos de natureza técnica, não é no achômetro.
Um outro aspecto: se o projeto é estratégico por interesses públicos do Estado, então ele não passa por todas as fases da licença, que é a licença de instalação e a licença de operação, e propõem que seja um processo simplificado. As leis da natureza não mudam em função das nossas necessidades. Se você jogar metal pesado em um rio, não importa se aquilo está sendo feito porque tem uma emergência das nossas necessidades econômicas e sociais. O rio vai se contaminar do mesmo jeito. Você pode até priorizar o empreendimento, você pode mobilizar equipes para que eles andem com mais celeridade, mas você não pode tirar o rigor do processo.
Entre os projetos estão alguns de grande impacto como a autorização para os estudos de exploração de petróleo na Foz do Amazonas, a BR 319 ou a Ferrogrão. Suas declarações não têm sido contrárias a nenhum desses projetos, mas sempre na defesa da imposição de condicionantes, previstas em lei, a partir de estudos técnicos. É possível minimizar os impactos de uma rodovia que corta a Amazônia ao meio, passando por 13 municípios, 28 unidades de conservação e 69 comunidades indígenas?
Olha, a postura do Ministério do Meio Ambiente, pelo menos durante o governo do presidente Lula, que eu estou tendo a oportunidade de ser ministra pela terceira vez, é sempre de dar condições para que os técnicos se manifestem. As licenças são técnicas, não são tomadas em função de decisões políticas ou de pressões políticas.
Inclusive nos governos anteriores do presidente, tivemos até alguns empreendimentos que nós negamos a licença definitivamente, como foi o caso lá de São Paulo, a hidrelétrica do Tijuco Alto. Era um empreendimento para uma hidrelétrica e embaixo acho que ficava o quilombo.E o processo já durava mais de 12 anos. Quando eu assumi com a minha equipe no Ibama, nós dissemos: “Não tem como dar essa licença, definitivamente não há viabilidade ambiental?”. Na época, o ministro da Casa Civil, que era o José Dirceu, e isso foi totalmente compreendido. Então, a gente olha para os aspectos técnicos e quando é possível, por meio de condicionantes, como foi o caso da Hidrelétrica de Santo Antônio, que foram 42 condicionantes. Aí fizemos o licenciamento. Infelizmente, depois, essas condicionantes foram abandonadas, não na minha gestão, mas em outras gestões que vieram.
No caso da Hidrelétrica de Belo Monte, durante a minha gestão, nós encaminhamos para estudos e foi dada posteriormente a licença. E por não considerar as condicionantes, Belo Monte é um problema. Um problema ambiental e um problema social grave. Então, nesses casos todos que nós temos em análise, há um esforço técnico para que a viabilidade ambiental seja mostrada, seja com condicionantes, com medidas de mitigação dos impactos. Num governo republicano você tem que seguir os processos, os protocolos.
É claro que numa situação como a transposição do [rio] São Francisco, havia o risco de um colapso de atendimento de milhões de pessoas que iam ficar sem água. O presidente Lula priorizou esse projeto. O que nós fizemos? Eu, juntamente com o [Então] ministro Ciro Gomes, com o vice-presidente José de Alencar, andamos, tanto a bacia doadora quanto a bacia receptora, falando com os comitês de bacia, fizemos um conjunto de ações que viabilizou a licença, porque havia a necessidade das duas coisas, da proteção e da transposição. Infelizmente, depois, aquilo que ficou acordado, que era priorizar a transposição e no mesmo nível a revitalização, foi abandonado em governos posteriores e isso está sendo retomado agora. Então, é preciso ter viabilidade social, viabilidade ambiental e não deixar que a viabilidade puramente econômica se sobreponha às demais.
Ataques de parlamentares
A tramitação deste PL e a posição do Ministério do Meio Ambiente foi o que levou a senhora a comparecer por duas ocasiões no Congresso Nacional, e que rendeu uma série de cenas lamentáveis de ataques e desrespeito à senhora. O parlamento não é um lugar estranho à senhora, que é deputada licenciada e foi senadora por 16 anos. Lhe assusta esse momento da política brasileira em que parece se naturalizar a violência?
É um momento muito desafiador, mas infelizmente os ataques que eu sofri não são diferentes dos ataques que historicamente mulheres no espaço da política vêm sofrendo e que as minhas colegas e companheiras sofrem o tempo todo dentro do Congresso Nacional, de formas diferentes, mas sofrem igualmente.
Naquele momento ali, o que estava sendo atacado não era apenas uma pessoa, era também uma causa, era também um gênero, também uma raça, era uma série de fatores que se entrecruzam e fazem com que essa violência política de gênero venha de forma tão acentuada e inaceitável, na forma que veio, tanto na Câmara como no Senado.
Mas nós, mulheres, aprendemos e sabemos reagir à altura. E uma das formas de reagir à altura é a solidariedade entre nós. Ato contínuo àquela barbárie, foi uma onda de solidariedade. As deputadas inclusive vieram todas aqui para se solidarizarem. E eu sempre digo que mulheres pioneiras, como Benedita da Silva, Jandira Feghali, [Luiza] Erundina, eu mesma e tantas outras, sabemos que isso vem de muito, muito longe, essa forma de quererem dizer qual é o nosso lugar. E o nosso lugar é onde a história que nós mesmas ajudamos a construir, estamos construindo, nos diz que nós devemos ficar. E até para a gente poder escolher esse lugar, a gente tem que construir o lugar. O lugar não está dado como se fosse uma bandeja em que a gente tem que escolher as oportunidades. A gente tem que imaginar as oportunidades olhando para a realidade e construir as condições que nos levará a ele e, às vezes, construir o próprio lugar que ainda não existe.
Como por exemplo, quando eu cheguei em 1995 no Congresso Nacional, uma mulher que tinha filhas pequenas. Talvez crianças pequenas nunca tivessem entrado no plenário do Senado. E um dia, eu ia saindo para o Acre depois da sessão de sexta-feira, e geralmente no final de semana eu levava elas comigo lá para o gabinete porque queria ter um tempinho maior com elas antes de viajar para o estado ou para um outro compromisso.
E nesse dia, a Mayara não quis de jeito nenhum ficar no gabinete brincando com a irmã e ela foi para o plenário comigo. E o plenário estava vazio, praticamente quatro, cinco senadores, e ela sentou na cadeira ao meu lado. E de repente, o secretário da mesa toca aquela campainha e diz: “Peço que pessoas estranhas saiam do plenário, da cadeira dos senadores, alguma coisa assim. Aí eu ainda chamei a pessoa que trabalhava comigo para tirar e levar ali para aquele lado onde ficam a imprensa e os assessores, mas ela não quis ir, começou a chorar, então eu deixei ela ficar perto de mim. E aí ele disse: se não sair, vou pedir para os guardas tirar. Aí realmente é o absurdo do absurdo do absurdo do absurdo.
Ainda bem que o senador Pedro Simão e outros intervieram, mas ninguém nunca ia tirar minha filha dali, porque seria um ato de selvageria. Então, até nessas coisas que não acolhem a maternidade, que não acolhem a singularidade das mulheres, é uma forma de agredir, de inibir. Os espaços são feitos para que você não seja você, você tem que abrir mão de ser você para poder ocupá-los. E nós ocupamos sendo nós mesmas, da nossa forma, do nosso jeito e mostrando que o que precisa é respeito. Respeito por esse lugar que nós estamos conquistando há mais de um século a duras penas.
Novo normal
Ministra, há alguns anos nós temos assistido a situações dramáticas, ora por inundações e enchentes em algumas regiões e longos períodos de seca que, em 2024, levou o país a viver uma das maiores emergências por conta de incêndios e queimadas em praticamente todos os biomas. Esse é o novo normal do clima no nosso país e o que nos resta é lidar com essa realidade da melhor forma possível?
Infelizmente, esse é o novo normal. E esse novo normal é uma tragédia, porque nós nem sabemos como ele é. A nossa vida, a nossa condição humana, ela surge em uma situação praticamente estabilizada em termos das grandes regularidades cósmicas. Só que a nossa ação humana acabou intervindo decisivamente em uma dessas regularidades, que é o clima, os regimes de chuva, os grandes tempos, como diziam os antigos.
Então agora, a gente está tendo que descobrir na prática, e uma prática muito dolorosa, as consequências de tudo isso. E o ano passado foi totalmente fora da curva. Agora [4 de agosto], nós já estávamos sobre uma espessa nuvem de fumaça. Esse ano, comparado com o ano passado, no Pantanal, até agora, a diferença é de quase 90% em termos das queimadas. Mas nós sabemos que a partir de agora, vamos ter um período intenso de seca na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal, em várias regiões do país.
E nós procuramos nos preparar para isso. Aumentamos a nossa frota. Hoje nós temos 11 aeronaves à disposição do Ibama. Isso aumentou em mais de 70% nossa capacidade de fazer transporte dos brigadistas. Aumentamos significativamente as nossas brigadas. São mais de 4 mil brigadistas para essa ação. Sem falar do Corpo de Bombeiros dos estados, das brigadas voluntárias, das comunidades que, uma boa parte delas é treinada por nós e trabalhamos em parceria.

Aumentamos a nossa frota com mais de 800 novos veículos para o atendimento das diferentes regiões, cerca de 600 veículos voltados só para as áreas de difícil acesso. Sem falar nos esforços que a gente consegue integrar na sala de situação, que é uma sala permanente desde o ano passado, com a Marinha, o Exército e a Aeronáutica em trabalhos de suporte logístico. Então a gente se preparou, conseguimos aprovar a lei do manejo integrado do fogo [Lei nº 14.944], que já foi sancionada pelo presidente Lula, e está sendo implementada. É um trabalho constante. Além da sala de situação, nós temos toda uma parte do acompanhamento no PrevFogo, e todas as análises que nós fazemos é que de fato temos que nos preparar para evitar com que aconteça o que aconteceu no passado. Mas esse ano, por enquanto, ainda temos uma situação que está bem diferente do que aconteceu o ano passado.
Essas ações preventivas têm alguma relação com a portaria de emergência climática que foi assinada pela senhora em fevereiro deste ano?
Sim, porque a partir dela que nós damos o comando para que os estados, à luz dos dados que são trazidos pelas instituições de avaliação meteorológica, possam fazer os decretos governamentais de proibição do fogo. E é a partir dela que nós começamos o manejo integrado do fogo, fazendo a queima prescrita, evitando inclusive que aquela matéria orgânica venha a queimar num período de baixa umidade e alta temperatura. Então, antecipadamente, enquanto é possível fazer isso de forma controlada, você vai eliminando essa matéria orgânica. Então são milhares e milhares de quilômetros que passam por esse processo de queima prescrita para evitar descontrole de fogo.
Mas a melhor coisa é você não começar o fogo. Quando ele começa, é algo que pode ficar fora de controle. E se ele começa, a melhor coisa é conseguir atacá-lo no começo. Por isso que chega o momento que tem que proibir e quem põe fogo está cometendo um ato criminoso.
Quando eu vejo as pessoas dizendo que é culpa do governo federal, nesse caso, no governo anterior eles não tomavam medida nenhuma, nenhuma, aliás, nem acreditavam que existe mudança do clima, por isso nem se preparavam para ela. No nosso caso, nós trabalhamos com dados e evidências. No nosso caso, desde a transição [de governo], nós começamos a nos preparar, e se não tivéssemos nos preparado, o ano passado teria sido algo completamente inimaginável. Nós reduzimos o desmatamento em 46%. Se não fosse isso, teríamos algo avassalador.
Pela primeira vez na história, o desmatamento por incêndio é maior do que o desmatamento, por corte raso. Isso é uma demonstração de que a mudança do clima é uma realidade. Esse novo normal já se instalou, porque a floresta perdeu umidade e ela agora é altamente vulnerável aos incêndios.
Isso compromete de alguma forma a meta do desmatamento zero até 2030?
É um risco, com certeza. Não se pode estabelecer que você vai fazer uma estrada de qualquer jeito. Quando você abre uma estrada, pelo menos um raio de 50 km de um lado e de outro vai ser impactado com essa estrada. Aumenta o desmatamento, o corte seletivo de madeira, a pressão sobre as comunidades locais, indígenas e tradicionais, aumenta a grilagem de terra…
Quando o Bolsonaro, no apagar das luzes do governo dele, deu a licença prévia da BR-319, só isso já fez o desmatamento aumentar em mais de 140%, o que é muito grave, porque é só o anúncio. Agora imagine se você faz isso sem regras. Então, nesse momento, o presidente Lula recomendou, desde o lançamento do PAC, que empreendimentos como a Ferrogrão, tinha que ir primeiro para estudos, BR-319 tinha que ir para estudos, margem equatorial teria que ir para estudos.
Agora então, que nós temos um leilão de mais de 19 blocos na margem equatorial, é fundamental que se faça avaliação ambiental para a área sedimentar. Isso são os estudos que precisam ser feitos. Eu estou dizendo isso há quase 20 anos. Os estudos de avaliação ambiental estratégica da BR-319, por exemplo, as pessoas querem um mundo sem senões. Quando você diz: “É preciso fazer isso, isso e aquilo para ver se por aí dá para fazer”. Aí as pessoas já dizem: “Você é contra o progresso, o desenvolvimento”. Mas ser contra o progresso e o desenvolvimento no contexto que nós estamos vivendo no Brasil e no mundo, é destruir floresta, destruir o nosso sistema hidrológico, é secar os nossos rios. Aí não vai ter agricultura, não vai ter nada. Isso é o que tem que ser pensado. E ainda inviabilizar os acordos com os quais o Brasil está comprometido, como o acordo da União Europeia com o Mercosul.
O Brasil é um país que pode se beneficiar muito das suas vantagens comparativas, tanto para grandes quanto para pequenos. Aliás, um dos nossos grandes esforços é abrir também os mercados para a bioeconomia, para a agricultura familiar. O Brasil tem um potencial de produzir com eficiência no campo da agroecologia, dos bioinsumos, tudo aquilo que a gente sabe que é a demanda que o mundo precisa para poder ter segurança alimentar.
COP30
Em alguns meses, o Brasil vai sediar a Conferência da Organização das Nações Unidas para o Clima (COP 30), e nesse momento há todo um debate sobre a infraestrutura necessária para a realização do evento em Belém (PA), sobretudo pelos altíssimos preços das hospedagens. Além das delegações de países em desenvolvimento, a participação dos movimentos populares do Brasil também pode ficar prejudicada por essa situação?
Quando o presidente Lula decidiu que a COP seria em Belém, até criou uma secretaria extraordinária na Casa Civil só para cuidar dessa parte de infraestrutura e logística. O Ministério do Meio Ambiente, junto com o Ministério de Relações Exteriores, se atém aos aspectos de conteúdo, negociação e mobilização. E obviamente que uma COP, como a COP30, não tem como prescindir da participação da sociedade, muito menos dos países mais vulnerabilizados, que são os mais afetados pela mudança do clima.
A COP vai ser precedida de um processo muito intenso de mobilização, onde as pessoas estão fazendo suas pré-COPs. A própria Conferência de Meio Ambiente já tratou dos temas da COP. Nós estamos trabalhando com os círculos, o círculo dos povos, o círculo de ministro de finanças, de ex-presidente de COP, o balanço ético global, os enviados especiais, como é o caso inclusive da nossa primeira-dama, exatamente para ir dando capilaridade e que essas articulações levem suas representações para a COP30, inclusive para a Cúpula dos dos Povos que nós vamos ter lá em Belém. É um esforço muito grande, porque o Brasil tem essa tradição. O Presidente Lula fez o G20 Social, o Brics Social, é uma tradição dos governos dele.
Obviamente que uma COP na Amazônia tem suas limitações em termos de infraestrutura e de suporte, mas são bilhões já que foram investidos para tentar resolver esses problemas. Mas uma coisa que está acontecendo lá é uma verdadeira extorsão em relação aos preços de acomodação. Claro que uma boa parte dos movimentos sociais tem tecnologia de como fazer essa participação, é diferente. Mas é preciso assegurar a dignidade e o acesso a uma estada digna para um processo dessa magnitude. Todos os esforços da Casa Civil, todos os esforços da presidência da COP30, de todos nós, é para que tenhamos condições de participação. Se o G20, que não tinha participação social, a gente fez questão de que tivesse, não vai ser na COP que historicamente precisa dessa participação que vai deixar de ter.
As últimas conferências deixaram a desejar e terminaram sendo mais uma espécie de carta de intenções, sem compromissos de implementação, e com metas tímidas em relação ao financiamento do enfrentamento às mudanças climáticas. A senhora tem a expectativa de que a COP30 possa trazer resultados nesse sentido?
Isso não é nem uma expectativa, é um imperativo. Não tem mais como protelar. Essa tem que ser a COP da implementação. Implementar os acordos que já foram feitos, viabilizar US$ 1,3 trilhão (R$ 7,3 tri) para ajudar os países vulneráveis, duplicar a eficiência energética, e duplicar [a produção de] energia limpa, renovável, e fazer a transição para o fim do uso de carvão, de petróleo, de gás, a transição para o fim do desmatamento, viabilizar os recursos de reparação para quem já é prejudicado na agenda de perdas e danos.
É a COP da implementação. Claro que a implementação não é mágica. Por isso que eu advogo que a COP30 tem que mandatar um grupo para que possamos fazer um mapa do caminho para o fim de combustível fóssil, o fim de desmatamento e, ao mesmo tempo, e junto com os ministros de Finanças, nosso ministro Fernando Haddad, trabalhar pela meta de US$ 1,3 trilhão.