A instalação da Comunidade Kaingang Vēn Ga na antiga área da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), em Santa Maria (RS), marca mais um episódio na disputa por reconhecimento de direitos territoriais de povos indígenas no Brasil. Doze famílias vivem atualmente no local, que pertence ao governo estadual e se encontra desativado desde a extinção da autarquia.
A ocupação teve início após um período marcado por inundações no estado, em 2024, que agravaram as condições de moradia de grupos indígenas na região. Parte das famílias afetadas passou a reivindicar a área, argumentando se tratar de território ancestral e buscando estabelecer ali moradia e meios de subsistência.
Segundo o líder Kaingang Erni Amaro, a decisão de ocupar o local está relacionada à necessidade de garantir segurança para as famílias, especialmente para as crianças. “A gente precisa abrigar bem essas crianças para que elas não passem frio. Chuveiro a gente não tem, só estamos tomando banho na água fria. A elétrica também: só temos acesso à energia do lado de fora”, afirma.

Apesar da limitação na infraestrutura e da existência de uma ação de reintegração de posse, ajuizada sem notificação formal à comunidade, o grupo afirma que pretende permanecer na área e seguir dialogando com o poder público. “Nosso objetivo aqui é permanecer e preservar o que já está aqui”, declara Amaro.
O Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao governo estadual que garanta energia elétrica e acesso básico à subsistência para as famílias, mas até o momento não houve avanço nas negociações. Paralelamente, tramita uma proposta de venda da área para a iniciativa privada, iniciada após a extinção da Fepagro.
Em nota pública divulgada em 27 de julho, a Comunidade Kaingang Vēn Ga afirmou que a retomada da antiga área da Fepagro, em Santa Maria (RS), é uma resposta direta à crise territorial agravada pelas enchentes de 2024.
“As enchentes de 2024 intensificaram a urgência dessa reivindicação: muitas famílias perderam habitação e fonte de sustento, enfrentando riscos e vulnerabilidades. Em resposta à omissão do Estado, retomamos uma área pública devoluta, que pertence a todos os cidadãos do Rio Grande do Sul”, diz o texto. O comunicado destaca ainda que a retomada “não é uma ocupação oportunista”, mas parte de um processo legítimo de retorno a territórios tradicionais, em consonância com os direitos reconhecidos pela Constituição de 1988. Leia a carta na íntegra.

Histórico de presença indígena em Santa Maria
O povo Kaingang está presente na região de Santa Maria há gerações, com registros históricos que precedem a Constituição de 1988. A ocupação tradicional se dá em áreas próximas às bacias dos rios Jacuí e Vacacaí-Mirim. Reivindicações formais por reconhecimento da posse tradicional na cidade datam de pelo menos 1999.
A Constituição de 1988 reconhece o direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais, ainda que sem titulação formal. Esse direito é fundamentado no princípio do “indigenato”, segundo o qual a posse tradicional independe de concessão estatal.
Além da área da Fepagro, a luta por terra em Santa Maria também envolve a comunidade Kaingang da Aldeia Três Soitas (kētyjūg tēgtu), que ocupou por duas décadas um terreno de quatro hectares. Em 2018, foi firmado um acordo de transferência para uma área de 24 hectares no distrito de Arroio Grande. No entanto, a medida não foi implementada devido a questionamentos sobre a validade do decreto municipal e ao não cumprimento de compromissos financeiros, levando à desistência da doação.
Práticas culturais e preservação ambiental
Na área da antiga Fepagro, as famílias Kaingang vêm buscando conciliar o modo de vida tradicional com práticas de preservação ambiental e uso sustentável do território. Segundo relatos dos moradores, o local pode abrigar atividades como cultivo de plantas medicinais, manejo agroflorestal e produção artesanal, além de servir como base para a transmissão de saberes culturais.
Um integrante da comunidade, que preferiu não se identificar, destaca a dimensão cultural da retomada: “Essa luta da gente não é de agora. Isso já vem há muito tempo. Cada dia mais, procuramos novos espaços não só para uma pessoa, mas para várias pessoas do nosso grupo étnico”.
Ele afirma que a ocupação também representa uma oportunidade de acesso à educação. “A gente quer buscar mais oportunidades de estudo também, porque aqui tem uma grande universidade, que também dá apoio para a gente nos estudos. Isso é para dar um bom futuro para nossos filhos, não pensando só no artesanato, mas sim em crescer futuramente, estudando e buscando qualificação.”

Educação e intercâmbio de saberes
Na Aldeia Três Soitas, a Escola Estadual de Ensino Fundamental Augusto Opê da Silva adota o Kaingang como língua de ensino prioritária, utilizando o português como segunda língua. A prática pedagógica é voltada à valorização da identidade cultural indígena.
No entorno da antiga Fepagro, a comunidade também expressa interesse em manter e dialogar com instituições de ensino. A intenção é fortalecer o intercâmbio de saberes com base na Lei nº 11.645/2008, que prevê a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena nas escolas brasileiras.
Há, ainda, o desejo de garantir a permanência da Escola Municipal de Ensino Infantil Boca do Monte na região, como parte da proposta de convivência e troca entre os diferentes grupos que habitam a área.
A mobilização em contexto nacional
A retomada da Comunidade Vēn Ga ocorre em um momento de mobilização nacional dos povos indígenas diante de pautas legislativas que impactam diretamente seus direitos. A chamada tese do “Marco Temporal”, atualmente em debate, propõe limitar o reconhecimento das terras indígenas àquelas que estivessem ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Em entrevista no Youtube do Sindicato dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria (Sedufsm), a diretora executiva da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmmiga), Josiléia Kaingang, observa que as retomadas se tornaram uma das principais estratégias de afirmação territorial dos povos indígenas. “Hoje, as retomadas acabam sendo a única possibilidade de a gente continuar vivendo culturalmente. Os povos indígenas como um todo precisam de território para poder ter sua vida cultural salvaguardada”, afirma.
Ela também destaca o papel das mulheres indígenas nas ações de cuidado e preservação ambiental. “As mulheres indígenas têm feito todo um advocacy no enfrentamento às emergências climáticas e temos mostrado como conseguimos fazer o manejo dos nossos territórios conservando as florestas, produzindo alimentos de forma sustentável.”
Josiléia aponta ainda para a responsabilidade social no processo eleitoral e seus impactos sobre políticas ambientais. “É urgente que as pessoas aprendam a votar. Será que as pessoas impactadas pelo alagamento que aconteceu na região de Porto Alegre, na região Metropolitana, mas também no restante do estado, vão votar a favor desses candidatos que defendem a flexibilização no licenciamento ambiental? A gente precisa criar uma consciência política importante da nossa sociedade, porque somos nós quem elegemos eles.”
Apoio institucional e articulação local
A ocupação conta com o apoio de organizações sociais, sindicatos, coletivos e universidades da região. Estão entre os apoiadores a Teia dos Povos, a Ocupação Vila Resistência, a Sindicato dos Docentes da Ufsm (Sedufsm), o Movimento Negro Unificado (MNU) e o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM).
A articulação entre esses grupos busca ampliar o debate público sobre o uso da área e garantir a permanência da comunidade no local, com base em marcos legais de proteção aos direitos indígenas e à função social da terra pública.
O futuro da área ainda depende de decisões judiciais e políticas. Enquanto isso, a comunidade Kaingang Vēn Ga permanece no território, buscando assegurar meios de subsistência e a continuidade de práticas culturais, diante de incertezas sobre o destino da antiga área da Fepagro.