Como muitos brasileiros, Noêmia Magalhães e o marido Valmir Batista, o Birica, guardaram o dinheiro de uma vida inteira de trabalho para desfrutar na terceira idade. Encontraram o refúgio ideal em São João da Barra, no norte fluminense, onde passaram a cultivar alimentos orgânicos, plantar árvores, fazer caminhadas. Assim viveu o casal por anos até a chegada do Porto do Açu, maior empreendimento portuário da América Latina, interromper o modo de vida de toda a comunidade formada por pequenas propriedades de terra.
Mais de dez anos depois, o Sítio do Birica resiste praticamente ilhado em meio a um deserto de terrenos vazios cercados com arame farpado. Um oásis verde que segue produtivo, carregado de árvores frutíferas, símbolo da persistência do casal. Aos 78 anos, dona Noêmia é uma liderança respeitada, mas sabe que a luta contra as desapropriações incomoda. Ao Brasil de Fato, a agricultora defende que “houve grilagem de terras no local”.
Segundo estimativas, um terço do município foi desapropriado pelo governo fluminense sob pretexto do projeto Minas-Rio, um complexo portuário-industrial idealizado pelo homem mais rico do país na época, o empresário Eike Batista. Apesar desse histórico, as desapropriações no Porto do Açu ainda se arrastam na Justiça, com cerca de 500 processos indenizatórios em andamento.
“A gente entende que houve grilagem, porque é uma terra tomada dos pequenos agricultores, cercada com sete fios de arame farpado que eles não vendem, alugam por um preço absurdo. Um aluguel da terra que eles tomaram dá para pagar a indenização todinha daquela terra”, afirma Noêmia do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA).
Na última semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) esteve no Porto do Açu para cerimônia de inauguração da maior térmica a gás natural do país com recursos do Novo PAC. A Gás Natural Açu (GNA) tem entre os acionistas a Prumo, do fundo americano EIG e dona de mais de 90 km² de área do porto; além da alemã Siemens Energy, da chinesa Spic e a petroleira inglesa BP. A usina recebeu R$ 7 bilhões do governo federal, sendo considerada prioritária para segurança energética nacional.
Para dona Noêmia, que endereçou uma carta ao presidente em nome dos agricultores, a reparação dos atingidos deveria ser a prioridade do governo. “Entendo que como presidente ele tem que olhar os dois lados, mas tem que resolver primeiro a questão dos pequenos, de quem perdeu as terras e precisa ser indenizado, e depois aplaudir o projeto”, lamentou a agricultora.
‘Devolvam as terras do Açu’
Por meio de decretos do então governador Sérgio Cabral, entre 2008 e 2010, mais de 7 mil hectares de terra foram desapropriados no 5º distrito de São João da Barra em favor da Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (Codin) para receber projeto do distrito industrial.
No entanto, apenas 10% da área planejada é utilizada pelo empreendimento, segundo pesquisadores. “Nosso grito é que devolvam as terras do Açu, não têm necessidade de tanta terra”, constata a produtora de orgânicos Noêmia Magalhães. Com a instalação do porto, impactos ambientais como a salinização das águas e a consequente perda de plantações também não foram indenizadas.
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Para a agricultora do MPA, as perdas não foram apenas financeiras. “A princípio a gente até sonhou com o Porto, mas durou pouco. Principalmente na época do Eike Batista, a violência foi muito grande. O uso do Estado com todo o aparato policial, algemando agricultores, derrubando casa com eles ainda quase que dentro, ameaças. Todos que perderam a terra e que tiveram que sair deixaram de exercer a sua função, é um impacto muito grande, não é só financeiro. Atrapalhou o modo de vida das pessoas”, completou Magalhães.

Quase dez anos depois, o ex-governador já preso confessou que recebeu propina para realizar as desapropriações e favorecer a empresa LLX, de Eike Batista. O empresário considerado mais rico do Brasil na época assinou um cheque de R$ 37,5 milhões ao estado do Rio pela área avaliada em mais de R$ 1,2 bilhão.
Depois de um período de crise, em 2013, a empresa de Eike transferiu o controle acionário do megaempreendimento – e as dívidas com indenizações – para um novo grupo: a Prumo Logística Global, do fundo americano EIG Global Energy Partners. A promessa de um complexo industrial, no entanto, não se concretizou como o planejado. Além das duas térmicas, e empresas prestadores de serviço, sobretudo do setor de petróleo, o terreno do porto compreende apenas uma indústria, a TechnipFMC.
‘Reforma agrária às avessas’
Na avaliação do engenheiro e pesquisador aposentado do Instituto Federal Fluminense (IFF) Roberto Moraes, as desapropriações do Porto do Açu abriram caminho para o que chamou de “reforma agrária às avessas”. “O que aconteceu ali foi uma espécie de reforma agrária às avessas: tirou dos pequenos e passou para um grande proprietário que ganhou valor com essa renda da terra para fazer dinheiro com os negócios nessa base logístico-portuária”, afirmou ao Brasil de Fato.
“O negócio da Prumo é basicamente ceder o terreno e algumas outras facilidades para que as empresas se instalem lá, quase como se fosse uma imobiliária. Ela ganha fundamentalmente com aluguel das áreas, que em boa parte foram desapropriadas dos pequenos produtores da região do Açu”, completa Moraes, membro da Rede Latino-americana de Investigadores em Espaço-Economia: Geografia Econômica e Economia Política (ReLAEE).
Guilherme Vasconcelos, economista e doutorando em Sociologia Politica da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) explica que atuação do porto como plataforma de exportações de commodities e produção de energia é essencialmente excludente, o que expõe as contradições do modo de desenvolvimento capitalista.
“O Porto do Açu é um empreendimento simbólico do padrão de desenvolvimento seguido pelo Brasil no início do século 21. Isso implica na escolha de sustentar o desenvolvimento pela exploração da natureza, extração de recursos naturais e investindo na infraestrutura logística que viabiliza a comercialização dessas mercadorias. Na prática, isso pressionou e segue pressionando os locais onde se realizam esses empreendimentos. Ainda que seja possível haver mitigação dos impactos, é um padrão de reprodução do capitalismo por essência excludente”, afirma o pesquisador.
Especulação fundiária
Na época das desapropriações, os agricultores do 5º distrito de São João da Barra foram surpreendidos com a venda compulsória das suas terras. A partir da instalação do porto, o município teve uma queda de 84% na produção agrícola, de 185 mil toneladas, em 2009, para 30 mil em 2015, nos quais se destacavam o maxixe, o abacaxi, a goiaba e a cana-de-açúcar.
A professora e pesquisadora Ana Costa, da Universidade Federal Fluminense (UFF-Campos), acompanha a luta dos agricultores desde o início, e afirma que os valores irrisórios das indenizações contrastam com a especulação fundiária que esse processo desencadeou.
“Com a incorporação das terras pela LLX (e posteriormente pela Prumo Logística) como ativos de mercado, as áreas foram alugadas para diferentes empresas de logística e de apoio offshore, gerando um enorme processo especulatório, rentista e concentrador, à custa do sofrimento social de centenas de famílias. O mesmo metro quadrado desapropriado pelo estado a preços irrisórios e ainda não totalmente pagos às famílias supervalorizou no interior da dinâmica de apropriação de terras no Açu e passou a ser uma alternativa financeira do empreendimento”, afirma Costa.

Segundo a Defensoria Pública em São João da Barra, 476 processos desapropriatórios tramitam no Fórum do município. Dos 229 agricultores alvos de processo ajuizados só na 2ª Vara da Comarca local, menos de 5% receberam o valor total. Além deles, um grupo de menos de 10% obteve 80% da quantia a qual tem direito.
Roberto Moraes, que pesquisou o Porto do Açu na sua tese de doutorado, pondera que a holding [Prumo] “organiza um investimento estratégico de energia e logística portuária com característica da nova ordem global dos tempos atuais com multilateralidade”, mas é inaceitável que os impactos do megaempreendimento não foram solucionados depois de 11 anos em operação.
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“A medida que novos empreendimentos vão se consolidando nessa região logístico-portuária do Porto do Açu, que permite mais lucros, mais investimentos que chegam de diferentes empresas, países, agentes, fundos financeiros, etc., fica mais grave e mais inaceitável que os pequenos proprietários atingidos por esse grande projeto não sejam ressarcidos”, opina o engenheiro.
Outro lado
Em nota à reportagem, a assessoria de imprensa do Porto do Açu se limitou a respondeu que a desapropriação de terras para a implantação do Distrito Industrial de São João da Barra foi realizada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.
“O Porto do Açu efetuou o depósito judicial da indenização prévia em todos os processos de desapropriação e vem pagando regularmente as eventuais indenizações adicionais apuradas nos prazos e forma fixados pelo Poder Judiciário”, afirmou a empresa.
O Brasil de Fato também procurou a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços (SEDEICS), pasta que a Codin é vinculada, para um posicionamento sobre as indenizações dos atingidos do Açu, mas não teve retorno até o fechamento desta reportagem.