Cerca de 50 indígenas Mbya Guarani participaram, na noite desta terça-feira (12), de uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O encontro foi promovido pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH), presidida pelo deputado Adão Pretto Filho (PT), com a presença das deputadas Stela Farias (PT) e Luciana Genro (Psol).
O debate girou em torno do Projeto de Lei 280/2025, encaminhado pelo governador Eduardo Leite (PSD) em regime de urgência, que autoriza a doação de 88 hectares de um terreno da antiga Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro) à Prefeitura Municipal de Viamão. A administração pretende repassar a área à iniciativa privada para a construção de galpões e um centro logístico.

No local, vivem 57 famílias da aldeia Tekoa Nhe’engatu que desde fevereiro de 2024 mantêm moradias, uma escola e recebem atendimento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). A ocupação, chamada pela comunidade de “retomada”, transformou um espaço que, segundo o cacique Eloir de Oliveira, estava abandonado.

“Quando a gente chegou, não tinha mais vida. Prédios construídos com recursos públicos, tudo derrubado, queimado. Hoje, a área tem vida. A água começou a ter vida, peixes, a mata ter esses animais”, contou. Ele criticou a proposta do governo, afirmando que ela “tira o direito de sobreviver da população guarani” e representa “a destruição do natural que ainda existe”.

A tramitação em regime de urgência estabelece prazo até 8 de setembro para votação, sem análise pelas comissões legislativas. Para Adão Pretto Filho o projeto foi apresentado “de forma apressada, sem discussão com a comunidade e sem diálogo com as lideranças”, durante o recesso da Assembleia Legislativa.
O território é alvo de disputa judicial desde julho de 2024, quando o governo estadual ingressou com ação de reintegração de posse. O pedido foi negado pela Justiça Federal e a decisão mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que garantiu “proteção possessória” à comunidade, abrindo espaço para um processo de conciliação.
Paralelamente, existe um termo de cooperação técnica firmado entre o Estado e a União para transferência de áreas ocupadas por indígenas à União, como forma de abatimento da dívida estadual. “Tem um acordo de cooperação técnica que o Estado assinou com a União para passar os territórios de retomada para a União”, afirmou Eloir, lembrando que o PL foi apresentado sem consulta à comunidade.

O procurador da República Ricardo Gralha, do Ministério Público Federal, reforçou que há um protocolo formal para negociação e questionou a pressa do Executivo: “Ora ele pediu o prazo de 60 dias para informar o poder Judiciário, mas pediu à Assembleia Legislativa um regime de urgência que expira agora dia 27 de agosto”. Ele também apontou que “o Estado historicamente tratou de exterminar os indígenas” e que “infelizmente, o indígena sempre foi visto como um empecilho ao avanço”.
Apoio à comunidade
Outras lideranças reforçaram a preocupação. Irene, representante das mulheres indígenas, questionou: “Até quando nós, mulheres indígenas, vamos estar com nossos filhos na beira de faixa? Isso não pode mais acontecer. A gente só quer sair da beira de faixa e ter um lugar digno para criar os nossos filhos”. O professor Antônio Neto, da escola Fàg Nhin Kaingang, afirmou que a exclusão dos indígenas de espaços institucionais é uma expressão de racismo, lembrando que ele e outros caciques não foram recebidos no Palácio Piratini: “Foi assim que nos receberam, na calçada, na margem outra vez”.

Para o cacique Abílio Padilha da Silva, a disputa ultrapassa a questão territorial e está ligada à preservação ambiental. “Esse é um ataque sobre a vida da humanidade. As áreas mais preservadas do Rio Grande do Sul e do Brasil são exatamente as ocupadas pela população indígena”, disse. Já Roberto Liegbott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), evocou a memória de anciãos da comunidade e afirmou: “Eu nunca vi uma tekoá tão feliz. A felicidade brilha nos olhos deles”.
Parlamentares e representantes de órgãos de direitos humanos também se manifestaram. A deputada estadual Luciana Genro (PSol) afirmou que a área “já é uma tekoá guarani” e que a comunidade está “retomando um direito que é seu”. A deputada estadual Stela Farias (PT) criticou a contradição de o governo destinar R$ 50 milhões às celebrações dos 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis e apenas R$ 300 mil para ações voltadas à população indígena, enquanto muitas famílias não têm água encanada. Júlio Alt, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS, comparou a situação a outros projetos que, segundo ele, “impõem déficit democrático e impedem a discussão nesta Casa”.

O debate também contou com falas de apoiadores. A ativista Lecia Albani destacou que direitos básicos, como acesso à água, saneamento e segurança alimentar, ainda não são garantidos. A médica indigenista Roselaine Murlik afirmou que “saúde é território” e que “se o território estiver saudável, água limpa, ar puro e terra viva, eu estarei saudável”.
João Maurício Farias, do Observatório Indigenista, reforçou que o Estado precisa reconhecer o direito da comunidade de permanecer na área, alertando que a postura do governo pode gerar novos conflitos. O estudante José Eduardo, do Instituo Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), classificou a escola indígena Estiva como “historicamente negligenciada” e considerou o PL 280/2025 como mais um projeto que marginaliza comunidades indígenas e quilombolas em benefício de empresários.

Ausências e contrapontos
Apesar do convite, nenhum representante do governo compareceu à audiência, o que foi classificado por Pretto como “desrespeitoso à Assembleia Legislativa”. Em contraponto, o deputado Valdir Bonatto (PSDB), ex-prefeito de Viamão, afirmou em plenário que a ocupação é “uma estratégia política” e que a comunidade está sendo usada como “massa de manobra”. O deputado Guilherme Pasin (PP) disse que “há normas que precisam ser seguidas”.

Ao final, a audência anunciou encaminhamentos como o pedido de suspensão de qualquer ação de remoção até a conclusão do processo de mediação, solicitação de audiência com os Ministérios dos Povos Indígenas e da Justiça, reforço ao Ministério Público Federal para ingresso de Ação Civil Pública, mobilização de entidades e movimentos sociais e envio de relatório oficial ao Congresso Nacional.
O procurador Ricardo Gralha informou que o MPF deverá propor medidas judiciais diante da urgência. A expressão repetida por diversas lideranças resumiu o tom do encontro: “Terra indígena não se vende, se defende”.