A derrota do partido Movimento ao Socialismo (MAS) nas eleições da Bolívia escancarou um problema que a esquerda boliviana terá que enfrentar nos próximos anos. Além de uma divisão interna profunda, o partido terá que reconquistar a confiança da militância e promover uma rearticulação com as organizações populares para propor um novo projeto político ao país.
Essa é a avaliação do ex-ministro de Governo da Bolívia Hugo Moldiz. Ao Brasil de Fato, ele diz que é muito difícil que o partido consiga uma união após um racha tão grande internamente. Além disso, segundo ele, será preciso, também, uma reaproximação do MAS com a sua base social, formada pelos movimentos indígenas e populares do país.
“Eu acho que o MAS tem um desafio que é muito difícil: voltar às suas origens e construir a relação com o tecido social onde nasceu. É pouco provável, se não impossível, um encontro de todos esses atores do MAS, desde Evo Morales até Luis Arce e Andrónico Rodríguez. Isso me parece quase impossível. Tem feridas muito profundas que são difíceis de cicatrizar em pouco tempo”, opina o ex-ministro.
A avaliação de quem compôs o primeiro escalão de Evo é de que o elemento central para a derrota do MAS é uma crise política em que a população deixou de acreditar no partido e nas suas diferentes correntes e, ao mesmo tempo, não acredita nos partidos tradicionais da direita.
Devido a esse conflito interno, a sensação da militância era de que a derrota estava dada há meses e que, mesmo com esse sentimento, conforme relata Moldiz, as tentativas de unidade fracassaram. Uma das esperanças para alcançar alguma unidade era o presidente do Senado, Andrónico Rodríguez, que não conseguiu aglutinar a militância e o apoio dos principais agentes dessa disputa, Evo e Arce.
Evo condicionou a unidade à sua candidatura e optou por convocar seus apoiadores ao voto nulo. A adesão nas urnas foi de quase 20%, o maior índice da história do país e a terceira maior votação do pleito de domingo (17). Já o presidente Luis Arce não só desistiu da candidatura, como insistiu para que seu rival de partido abrisse mão do desejo de ser candidato, uma vez que havia uma decisão da Justiça que impedia seu registro.

Apesar do índice histórico de votos nulos, para Moldiz, a votação expôs a baixa capacidade de mobilização de Evo, uma vez que não conseguiu superar os votos dos dois candidatos de direita que foram ao segundo turno, o senador Rodrigo Paz e o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga.
“Mesmo dando os votos nulos para Evo, se viu a pouca mobilização dele. A derrota foi geral na esquerda, de quem colocou o nome na urna e também de quem convocou o voto nulo. O nível de apoio foi surpreendente a Paz, o que mostra que frente a uma crise política, há uma ascensão de tendências autoritárias e neofascistas”, afirmou.
Derrota de um projeto de 20 anos
A crise no MAS, seguida da derrota eleitoral, coloca em risco um projeto conquistado ao longo de duas décadas pelo partido e pelos movimentos populares bolivianos. Liderado por Evo Morales, o país promoveu uma série de transformações na sociedade com programas e políticas públicas que mudaram a Bolívia.
O governo investiu em projetos para ampliar o acesso dos bolivianos à água e energia, aumentar a alfabetização, ampliar a cobertura das aposentadorias, reconhecer a informalidade dentro da legislação trabalhista e manter os preços baixos dos combustíveis.
As gestões do MAS também promoveram uma estabilização profunda na economia boliviana. As políticas sociais conseguiram reduzir a pobreza extrema que, em 2006, atingia 38,2% da população, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas (INE). Depois de 15 anos de governos de Evo e Arce, o índice caiu para 11,2%.
A nacionalização dos recursos naturais também foi uma vitória das gestões de esquerda a partir de 2008. A reestatização da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), em 2006, permitiu que os investimentos e as exportações na área fossem voltados à estrutura pública do país. A soma desses fatores garantiu uma inflação controlada e um câmbio estável. Segundo o Banco Central (BC) do país, o índice de preços acumulado em 12 meses sempre esteve abaixo dos 8% desde 2011 e, em alguns anos, chegou a registrar 0,5%.
Mas além da transformação por meio de políticas públicas, o país também teve mudanças radicais na sua estrutura. A principal delas foi a criação do Estado Plurinacional, que reconhece a coexistência de povos indígenas e seus direitos dentro da Constituição.

Moldiz destaca que outros dois pontos importantes foram o desenvolvimento de uma política externa soberana e a “nacionalização do governo”. Ele afirma que os Estados Unidos pautavam não só a chancelaria boliviana, mas também a política interna do país. Houve uma mudança nessa postura com a chegada do MAS, com menor influência estrangeira e aumento da presença boliviana em blocos como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e o Brics.
“Mesmo que Evo não tenha falado isso, o grande mérito foi ‘desestrangeirizar’ o governo e transformá-lo em nacional, popular, indígena e trabalhador. Teremos que defender tudo isso agora. Quando há um nível de consciência alta, se reduz a tendência para a privatização e esse tema está à prova agora. A pergunta é se, mesmo com a derrota, existe o nível de consciência social e política para defender isso”, questiona.
O analista político boliviano Manoel Mercado, militante do MAS, concorda com essa tese e entende que os setores de esquerda terão que promover um novo cálculo e apresentar um projeto político que consiga dialogar com os bolivianos sem se aproximar do centro.
“É um golpe muito duro, porque, na realidade, a esquerda perde o governo e, portanto, põe em risco a continuidade do Estado Plurinacional. Não por virtudes da oposição de direita, mas por debilidades próprias que se aprofundaram a partir da divisão e um fogo cruzado entre os diferentes grupos. É preciso ressaltar que Arce não respondeu nunca aos ataques de Evo Morales à sua gestão e à família, mas não quer dizer que em outros níveis não tenha havido uma guerra interna dura”, diz.
Além do racha interno, ele entende que há outras questões a serem resolvidas internamente no partido, como a organicidade do MAS e a adoção de uma estratégia mais pragmática e menos otimista.
“Para os movimentos, ficou uma grande aprendizagem nos últimos 20 anos, de que é preciso estar ativo para estar no poder. Se o MAS não apresentava isso, os movimentos buscaram Paz. A separação das elites partidárias também foi um erro. A burocratização e o aburguesamento do partido foi muito expressivo. E o último erro foi a soberba. Se considerou que o MAS era imbatível e menosprezaram a direita”, pontua.
Esquerda como oposição
A avaliação de ambos os analistas ouvidos pelo Brasil de Fato é de que Paz, em caso de vitória, pode ter um governo um pouco mais equilibrado do que o de Quiroga, que planeja uma série de “retrocessos” na política boliviana, com a privatização dos recursos, venda de empresas estatais e congelamento de salários.
Outro ponto indicado é a exclusão de diferentes setores sociais. Eles entendem que no golpe de 2019, que derrubou Evo, os representantes do empresariado que assumiram naquele momento deixaram evidente a intenção de “apagamento dos movimentos indígenas e populares” no palácio do governo.

“Nesse momento há uma crise de liderança individual e coletiva, e a militância está desorientada. A dor que se manifestou com os resultados vai depender dos dirigentes e dos quadros mais esclarecidos para transformar isso em força política. Os meses mais duros para os movimentos sociais e o MAS serão agora. Terão que colocar à prova sua capacidade de recuperação. Do contrário, estaremos assistindo um ciclo longo de exploração”, conclui Moldiz.
O segundo turno que vai decidir o novo presidente da Bolívia está previsto para o dia 19 de outubro. A nova gestão vai governar o país pelos próximos cinco anos.