Às vésperas da oficialização de nova intervenção militar no país, lideranças haitianas rejeitam a medida como sendo outra decisão visando subjugar os interesses do país aos de outros mais poderosos.
O estadunidense Erik Prince – fundador da Blackwater, empresa conhecida pela acusação de torturar iraquianos na invasão do país – disse que enviará centenas de mercenários ao Haiti para “combater o problema da violência de gangues no país e restaurar seu sistema de arrecadação de impostos”.
“Somos contra a chegada desses mercenários que aprofundam o caos que estamos vivendo agora”, afirmou ao Brasil de Fato Camille Chalmers, economista e líder popular.
O dirigente do partido Rasin Kan Pèp la (reagrupamento socialista por uma nova iniciativa nacional) afirma que este é outro exemplo da “”tática do bombeiro incendiário”, usada com frequência no Haiti.
“Cria-se o problema para vender a preços altos a solução”, diz Chalmers, lembrando que tal tática foi usada inclusive pelo Brasil, que enviou o general Augusto Heleno para comandar a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), em 2004.
A força comandada pelo bolsonarista que hoje é réu por cinco crimes, entre eles tentativa de golpe de Estado, acumulou denúncias de massacres, estupros e de ter contribuído para a chegada de um surto de cólera ao Haiti, sem reduzir os índices de violência do país caribenho.
A crise é projeto
Chalmers diz que as gangues armadas – justificativa para a chegada dos mercenários – são criação tanto dos EUA como da vizinha República Dominicana, que fornecem armas, munições e apoio para os quase 300 grupos que levam caos ao Haiti.
“Criaram as gangues armadas que atuam contra a população haitiana destruindo hospitais, escolas, espaços patrimoniais, universidades, ao mesmo tempo em que enfraqueceram as forças de segurança do Haiti”, explica ele.
“O governo dos EUA bloqueou a importação de armas compradas pela Polícia Nacional. Com o plano migratório de [Joe] Biden[,ex-presidente estadunidense], organizou a saída de nosso país de mais de 4 mil oficiais de polícia experimentados em uma força que está amplamente subdimensionada.”
Blackwater: histórico de abusos
Erik Prince é um dos principais doadores da campanha do atual presidente dos EUA, Donald Trump, e detalhou como sua empresa Vectus Global vai atuar no Haiti, combatendo gangues e assegurando a arrecadação de taxas, dentro do prazo de um ano.
“Uma medida fundamental do sucesso para mim será poder dirigir de Porto Príncipe a Cabo Haitiano em um veículo de baixa cilindrada sem ser parado por gangues”, disse ele à agência de notícias Reuters, afirmando também que o contrato é de dez anos, sem comentar valores.
A Vectus Global já atua no Haiti desde março, principalmente com drones, e irá enviar ao país centenas de mercenários treinados nos EUA, Europa e El Salvador, como atiradores de elite e especialistas em inteligência e comunicação, além de barcos e helicópteros.
A empresa anterior de Prince, a Blackwater, teve quatro funcionários condenados pelos assassinatos de 14 cidadãos iraquianos na Praça Nisour, em Bagdá, em setembro de 2007, além de inúmeras acusações de torura. Os contratados foram posteriormente perdoados por Trump durante seu primeiro mandato na Casa Branca.
Prince vendeu a Blackwater em 2010, mas permaneceu ativo no setor de segurança privada. Desde o retorno de Trump à Casa Branca, ele tem consultado o Equador sobre como combater a violência de gangues.
“Recorrer a empresas militares privadas não pode ser visto como uma solução para a insegurança no Haiti”, disse Gedeon Jean, chefe do Centro de Análise e Pesquisa de Direitos Humanos do Haiti, à AP. “O uso de empresas privadas frequentemente resulta em violações de direitos humanos.”
Romain Le Cour Grandmaison, chefe do programa para o Haiti da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional, com sede em Genebra, disse à AP que a missão da Vectus Global no Haiti violaria a lei dos EUA, a menos que tivesse permissão de Washington para prosseguir.
Ele disse que seu envolvimento provavelmente complicaria a crise no Haiti em vez de resolvê-la.
“Na ausência de uma estratégia haitiana e internacional coerente e liderada em conjunto, o uso de empresas privadas tem mais probabilidade de fragmentar a autoridade e a soberania do que de promover a resolução da crise”, disse ele.
A correspondente da Telesur no Haiti, Cha Dafol, disse que a ideia de aumentar a atuação dos mercenários da empresa estadunidense é polêmica dentro do governo de transição haitiano. Desde 2024, o Executivo do país é comandado pelo Conselho de Transição Presidencial, com comando rotativo de cinco meses para cada presidente.
“O premiê Alix Didier Fils-Aimé, de direita, teria assinado o acordo com a Vectus Global, mas o ex-presidente Fritz Alphonse Jean, que deixou o cargo em 6 de agosto, negou a existência do contrato”, diz ela ao Brasil de Fato.
“A questão deve aprofundar o atrito entre os integrantes dessa adminstração nos próximos tempos”, conclui.
*Com Telesur, Reuters e AP