Sou amazônida. Nascida em Manaus, no ano 1974, mas gerada muito antes — nas águas do rio Javari. Eu vim do ventre de uma linhagem feminina que atravessou rios, seringais, desafios e silêncios. Trago comigo a herança indígena da minha avó materna, nascida no lado peruano da tríplice fronteira com o Brasil e a Colômbia, oeste do Amazonas. Uma indígena Kokama de cabelos longos e pretos, com uma braveza que não se curvava. Maria da Conceição era essa peruanita cheia de força e coragem, pequena apenas na estatura.
Meu avô materno, Manoel Rodrigues do Nascimento, nasceu em Baturité, no Ceará. Ainda menino, foi levado para os seringais da Amazônia — e, como tantos outros nordestinos que migraram em busca trabalho e sobrevivência, também virou soldado da borracha. Mas não veio sozinho: trouxe passos, coragem e outro ciclo migratório que se fundiria com a floresta. Foi ali, nesse encontro entre os filhos do Norte e Nordeste, que conheceu minha avó, aquela guerreira Kokama peruana. Entre barracões de madeira e paneiros de farinha, nasceu dona Zenilda, minha mãe.
Ela veio ao mundo no seringal Boa Vista, às margens do rio Javari, no município de Benjamin Constant. Criada em família numerosa, cresceu ouvindo o som do remo na canoa indígena de vovó — que, aliás, de tão brava que era, só ela podia remar. Tempos depois, vovô ouviu dizer que, no Médio Solimões, a vida era mais próspera, com terra boa para a roça e fartura de peixe. Desceram o rio até o município de Manacapuru, onde se estabeleceram com a família na Ilha do Arraia.
Aos 19 anos, minha mãe, viúva e com dois filhos para criar, conheceu outro descendente do Ceará, meu pai — um galego de olhos azuis. E mais um ciclo começou. Fui criada na cidade de Manaus, ouvindo palavras soltas em espanhol e comendo “tacaqui” (banana-da-terra amassada) com café — receita tradicional da minha mãezinha, com gosto de afeto e saudade. Nas férias, voltávamos à Ilha do Arraia, onde a ancestralidade soprava mais alto: nos banhos de igarapé com os primos, na farinhada, no cheiro do peixe assando, no milho cozido, na canjica e no pé de moleque. Tudo me dizia que aquele era o meu lugar — mesmo antes de eu saber.
A ancestralidade sempre morou em mim
Hoje eu sei: minha ancestralidade nunca me abandonou. Ela sempre esteve no meu corpo, nas memórias da minha mãe, no ritmo dos rios, no silêncio da floresta. Estava comigo quando passei no vestibular da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) para Engenharia Florestal e na seleção para o mestrado em Ciências de Florestas Tropicais, no INPA. Achei que a ciência era um caminho racional — mas era só o mapa. Quem me guiava mesmo era a floresta e os encantados.

Durante onze anos, atuei como servidora pública no Governo do Estado do Amazonas, coordenando um programa de revitalização da produção de borracha — uma tentativa de resgatar a dignidade das comunidades tradicionais e valorizar os saberes e a história de sobrevivência dos seringueiros. Na época, eu não tinha clareza do quanto essa missão era também pessoal. Hoje, entendo: cada viagem aos 44 municípios do estado do Amazonas que eu visitei e cada conversa com os seringueiros era um reencontro com o território dos meus avós. Eu estava, sem saber, percorrendo as pegadas deixadas nos seringais.
Foi também nesse tempo que minha história se entrelaçou com a de Mariazinha Baré — mulher indígena de força ancestral e irmã de alma. Nos conhecemos em 2005, trabalhando juntas na Fundação Estadual dos Povos Indígenas do Amazonas, atual Fepiam. Desde então, caminhamos lado a lado. Mariazinha sempre foi ponte e raiz para mim — uma liderança que me ensinou, com firmeza e ternura, que o pertencimento não se improvisa, se vive.
Ela me lembrou que nosso lugar é onde nossa voz ecoa junto com as vozes de nossas ancestrais. Sempre estivemos juntas trabalhando pelos povos da floresta.
Atuar, por mais de duas décadas, na Amazônia com povos indígenas e comunidades tradicionais me reconectou com algo profundo. Por um tempo, até tentei fugir desse chamado — fui morar no Sul, depois fora do país. Mas o canto ecoava forte. Em 2023, voltei ao Amazonas.
Minha autodeclaração Kokama
Em 2024, iniciei o processo de autodeclaração como mulher indígena do povo Kokama. Um passo político, simbólico e espiritual. Uma retomada de mim mesma. Fui acolhida pelo povo que guarda minha origem. E naquele momento, tudo se alinhou. Meu nome, minha história, minha pele, meu trabalho — tudo fez sentido. Eu estava com minha avó e minha mãe.
Ser reconhecida como Kokama é reconhecer que carrego um legado de resistência cultural, de luta pela terra, pela vida e pela floresta. É saber que minha história pessoal se entrelaça com a de um povo inteiro — e que minha voz carrega também as vozes dos que vieram antes. É transformar cada decisão em cuidado. Cada passo, em rezo.
Hoje, atuo na ACT-Brasil como responsável pela captação de recursos. Aqui, minha trajetória técnica se alinha com minha verdade ancestral. A cada projeto escrito, a cada parceria construída, a cada escuta com os povos indígenas — especialmente com as mulheres — eu sei que estou respondendo ao chamado dos meus. É uma alegria trabalhar ao lado de quem compartilha o compromisso com os povos indígenas e com a floresta viva!
Este é o meu caminho: entre ciência e espiritualidade. Entre a técnica e o pertencimento. Um caminho de volta para casa — de volta para mim.
Me chamo Marirani, do clã Tsamia, povo Kokama.
Estou com elas.
E elas, comigo.
Eu não ando só.
À Maria da Conceição Rodrigues e Dona Zenilda Rodrigues do Nascimento, minhas ancestrais.
*Marilane Nascimento Irmão / Marilane Kokama
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.