Uma fazenda símbolo de violência e medo está em vias de se tornar um marco histórico de justiça agrária na Amazônia. O ponto de virada se deu na semana passada, 26 de agosto, quando a Justiça federal reconheceu que o governo federal não precisa do aval do proprietário para dividir a terra entre 200 famílias de trabalhadores que ali moram e produzem há oito anos.
O imóvel em questão é a fazenda Santa Lúcia, no sudeste do Pará, palco do segundo maior massacre rural da história do país, a chacina de Pau D’Arco. Este será o primeiro caso na Amazônia de “desapropriação rural por interesse social”, modalidade em que o proprietário não pode se recusar a vender a terra para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). “O peso simbólico e político é muito grande”, afirma José Batista, advogado e especialista em disputas rurais da CPT (Comissão Pastoral da Terra). “A decisão abre uma possibilidade jurídica de solução para dezenas de conflitos na região, onde centenas de famílias estão ameaçadas de despejo”.
A decisão da Justiça reconheceu como válido um decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em março deste ano que declarou a Fazenda Santa Lúcia como de interesse social, para fins de desapropriação.
O histórico de violência foi peça central do argumento do governo para classificar a área como de interesse social, afirma Claudia Dadico, diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Incra. “O fundamento não é só da desconcentração fundiária, mas sobretudo dos conflitos sociais”.
Em 2017, policiais civis e militares do Pará renderam, torturaram e mataram dez trabalhadores sem-terra que ocupavam o local. Essa foi a conclusão do inquérito assinado pela Polícia Federal com base no depoimento de testemunhas, delação premiada de dois policiais, perícia balística nos corpos e a maior reconstituição já feita pela instituição.
Apesar da fartura de evidências, os policiais réus pela chacina respondem em liberdade e na ativa, trabalhando na mesma região onde vivem as testemunhas. Em 2021, Fernando dos Santos Araújo, principal testemunha do caso, foi assassinado com um tiro na nuca. Dias antes, ele relatou à Repórter Brasil ter recebido ameaças e recados para mudar o seu depoimento.
A história de como Fernando sobreviveu à chacina, virou testemunha e foi assassinado anos depois é o mote central de “Pau D´arco”, documentário da Repórter Brasil e Amana Cine em coprodução com a RioFilme. O filme estreou em abril e deve ser lançado ao público em 2026 (saiba mais sobre o filme).
Obstáculo (quase) intransponível
Quando ocorreu, em 2017, a chacina mobilizou instituições públicas, organizações do terceiro setor e a imprensa. Enquanto as investigações avançavam, revelando detalhes de como as vítimas foram rendidas e torturadas pelos policiais antes de morrer, o Incra passou a elaborar um plano de ação para transformar o local em assentamento.
Mas um obstáculo parecia intransponível: a vontade do proprietário. Embora a fazenda estivesse ocupada e inacessível, o dono negava as ofertas e tentativas de aquisição vindas do governo.
O oposto do que se imagina de um pecuarista, o dono da Santa Lúcia é um homem jovem que se apresenta como ator nas redes sociais. Morando em uma cidade distante da Amazônia, ele herdou a área de seu pai em 2013. Procurado pela reportagem, seu advogado afirmou que não pretende comentar a decisão judicial.
Embora negasse as ofertas do Incra, circulava na região um boato de que ele teria vendido a fazenda a uma compradora individual. Como a área estava ocupada, a venda teria sido feita de modo informal.
De fato, a suposta compradora entrou com um questionamento ao Supremo Tribunal Federal argumentando ser a legítima proprietária. Mas seu pleito foi negado depois que a Advocacia Geral da União demonstrou que o contrato de compra e venda não havia sido registrado em cartório.

Meio século depois
Para resolver o impasse da fazenda Santa Lúcia, o governo Lula resgatou uma lei aprovada pelo então presidente João Goulart em 1962. A Lei 4.132 trata da “desapropriação por interesse social”, modalidade usada no decreto presidencial de março deste ano que declarou o imóvel como de interesse social — e que foi reconhecida pela Justiça na semana passada.
“É simbólico porque essa lei fazia parte das Reformas de Base [propostas por João Goulart], que serviram de esteio ao golpe militar de 1964”, afirma José Vargas, advogado que defende os sem-terra da Santa Lúcia desde a primeira ocupação, quatro anos antes da chacina. “E também é esperançoso pensar que estamos conseguindo retomar as ideias daquele momento, mesmo que 50 anos depois”.
Após o golpe, a ditadura militar reprimiu com violência os pleitos pela reforma agrária, promovendo perseguições, prisões e “sumiços” de líderes e sindicalistas rurais. Mas nunca revogou a lei em questão.
“A decisão histórica da Justiça do Pará em favor do Incra no caso da fazenda Santa Lúcia é consequência da política adotada pelo governo do presidente Lula de levar a paz ao campo”, afirma o ministro do Desenvolvimento Agrário Paulo Teixeira, que também assina o decreto. “Que os fatos de violência contra trabalhadores rurais, como ocorrido em Pau D’Arco, nunca mais aconteçam”.


Muitas mãos
A solução encontrada pelo governo e a mais nova decisão da Justiça são o resultado de um longo processo de reconstrução e resistência que envolve muitas mãos. Em junho de 2017, semanas depois da chacina, dezenas de trabalhadores sem-terras voltaram a ocupar a fazenda — entre eles, familiares e amigos das vítimas.
Eles deram ao local o nome popular de Projeto de Assentamento Jane Júlia, em homenagem à líder do grupo, morta na chacina ao lado do seu marido e outros cinco membros da família. O grupo que ocupa o local não tem vínculo com movimentos sociais.
Com os barracos colados um no outro e vigília noturna, desde o início a reocupação sofria graves ameaças. Uma lista anônima circulava com os nomes das próximas vítimas. Um mês depois, o novo líder do grupo foi executado com uma arma com silenciador. Outro nome que figurava na lista é o do advogado José Vargas, que teve de retirar sua família do local depois que mataram os cachorros de sua casa.
A Comissão Pastoral da Terra foi outro ator importante que passou a acompanhar de perto a reocupação, promovendo uma romaria anual no dia da chacina. “Sabemos que o massacre foi um recado para intimidar todos os sem-terra da região”, afirma Andréia Silvério, que acompanhou o caso como advogada da CPT. Há dois anos, junto com Vargas, ela ajudou a fundar um coletivo de advogados, o coletivo Veredas, que defende sem-terras e indígenas no sul do Pará. “Agora entendemos que a destinação da fazenda para a reforma agrária é uma mensagem contra a violência, um ato de reparação histórica”, afirma.
“Mais de 30% dos conflitos agrários do país se concentram aqui e este é o caso mais emblemático”, afirma Andreyk Maia, o superintendente do Incra em Marabá. Ele ressalta que os diversos atores envolvidos nas 200 áreas ocupadas em sua região olham para Pau D´arco como uma referência.
Apesar do clima de comemoração entre quem acompanha o caso, a festa ainda não começou na ocupação. “Já esteve pior, agora parece que a notícia é boa. Mas vamos ver”, disse, relutante, uma das trabalhadoras que vive e produz no local desde 2017.
Há oito anos, as cerca de 200 famílias moram em casas de teto de palha e chão batido. Sem nenhum apoio do Estado, elas plantam ampla variedade de alimentos, que tiram da terra com as próprias mãos para seu sustento ou para vender em feiras. Hoje, o local sequer conta com energia elétrica. As casas que conseguiram puxar fios improvisados correm risco de perder tudo em incêndios, como já aconteceu mais de uma vez.
“Essa decisão judicial reforça que só a luta coletiva funciona para o acesso à terra, não existe política pública sem ela”, afirma o advogado José Vargas. “Mas ela também mostra que o Estado é sim capaz de cumprir seu papel e que a violência é incapaz de derrotar a resistência organizada dos trabalhadores”.
